quarta-feira, 14 de julho de 2010

A PELADA E O TUBERCULOSO

Vou contar uma história quase verídica. Eu diria até melhor do que verídica, pois, verdade é coisa muito real. Coisa que não inspira atenção. Faz perder a imaginação e o sonho que todos nós temos dentro de nós mesmos. Mas vamos a ela, pois esta merece ser contada em seus mínimos detalhes.

Toda vez que vou a um campo de futebol me lembro do Alvarenga. Que craque ele poderia ter sido? Não sei exatamente porque me sinto teimosamente arraigado, presente e intimamente integrado em meu escasso mundo de reminiscências, sejam elas verdadeiros ou apenas produtos de minha imaginação. Hoje que mais de 40 anos já se passaram, ainda nisto penso. Não sei se foi verdade ou não. Não importa. A versão é sempre mais agradável que a realidade. Mas, já que falamos de fictícia realidade, diria que a verdade é que sempre me preocupei com o Alvarenga. Sentia-me como responsável por ele. Se ele existiu ou não, pouca importância tem perante a magnitude de sua história.

Meu zelo para com o Alvarenga era tanto que meu apelido passou a ser Ranchinho, entre os garotos do bairro. Mas eu tinha minhas razões. Alvarenga era órfão, vivia com uma tia de poucas posses e quando menino era franzino e sempre atacado com qualquer tipo de doença. Teve sarampo, catapora, meningite, caxumba, coqueluche, piolho... bem piolho não pode ser considerado doença, mas é chato para burro, e naquela época todos os tiveram. Aliás, chato ele também teve em suas partes íntimas. Não eu! Enfim, o Alvarenga era um estacionário de doenças. Qualquer uma que pintasse em nossa cidade, ele era o primeiro a pegar. Qualquer que fosse a epidemia que aflorasse, era no Alvarenga que ela incubava. Dai partia para o resto da humanidade. Mas em momento algum ele reclamava ou se deixava abater. Nunca se viu tomado, como muitos, por iniludíveis sintomas que determinassem que sua vida estava por um fio. Tinha força de vontade, acreditava em Deus e pensava que no dia seguinte estaria melhor. E sempre esteve.

Alvarenga era quieto, pois, sabia que as pessoas o evitavam, com medo de pegar a doença da vez. De sua boca poderiam ser expelidos bacilos e outras coisas mais. Ademais tinha mal hálito. Resignava-se com o fato. Enquanto os demais meninos se divertiam lendo a revista da Luluzinha, Alvarenga lia bulas. As conhecia décor e salteado. Seu conhecimento era tanto que o senhor Fagundes, o farmacêutico local, sempre que tinha uma dúvida o chamava. E o pequeno Alvarenga relatava ao cliente as vantagens e as contra indicações de todo e qualquer remédio existente da farmácia Santa Alice.

O senhor Fagundes depois de alguns meses o contratou em regime de meio-expediente, já que Alvarenga as aulas nunca faltou. Até de maca assistiu a algumas. Alvarenga não pode conter sua felicidade. Finalmente estaria cercado por aqueles que o ajudavam a combater as suas doenças: os remédios. O cheiro de éter para ele soava qual um perfume francês. Aquelas tarjas coloridas nos invólucros dos remédios o atraíam. As seringas lhe traziam prazeres inolvidáveis. Johnson & Johnson, Byer, Squibb e Norvatis soavam para ele como Balzac, Machado de Assis e Beethoven para outros. Era avesso a qualquer tipo de esporte. Mas um dia o convenci a jogar futebol. 

Lembro de nossa primeira partida oficial, pelo Ameriquinha. Foi ali no terreno baldio do senhor Ananias, um filho de português de poucas maneiras, mas que fazia vistas grossas para a garotada, quando esta queria se divertir. Depois descobrimos que ele era boióla. Mas, tinha seus escrúpulos. Só atacava aos de mais de 15 anos. Nós estávamos na época com por volta de 12 anos, logo tínhamos 3 anos ainda de carência.

Pois bem, confesso que convidei o Alvarenga, não por remorso ou diletantismo. Na verdade faltou um para completar o time e o pavor juvenil de ter menos um – em qualquer que fosse a situação - me fez trazer o Alvarenga, que nunca havia sequer, treinado conosco. E muito menos colocado seu pé em uma bola. O senhor Garcia – nosso técnico honorário por ser dono do jogo de camisas adquirido na casa dos esportes - o olhou de cima a baixo e não acreditou que ele pudesse dar um peteleco em uma bola, porém, não tendo outra alternativa o escalou na ponta esquerda. E foi claro em sua preleção: menino fica ali na ponta esquerda fixo e bem aberto, pois assim pelo menos você prende o lateral deles”. E o Alvarenga obedeceu. Ficava ali pela ponta tossindo e tirando sua temperatura com aquele termômetro que sempre tinha pendurado no peito, como não quisesse nada. Assistia a peleja em de uma posição privilegiada. O jogo corria e ele não pegava na bola. Aos poucos foi totalmente esquecido pelo lateral direito. E quando isto aconteceu, não sei porque e propriamente quem o acionou, o milagre se deu.

Foi um lançamento a distância. O Alvarenga saiu qual um raio em direção a bola e quando nela chegou de primeira soltou um tirambaço em diagonal. A bola chegou até a furar a rede de nossos adversários, e todos nós do time, tanto quanto os adversários ficamos totalmente abismados. De onde aquela coisa franzina, molengona e doente conseguia tirar tanta energia e força para dar um tiro como aquele?

Abraçado, ele sufocou-se. Arrastou-se até o banco em convulsões e lá chegando utilizou-se de seu aparelhinho particular de combate a asma. Ali ficou sentado por uns dez minutos, até refazer suas forças e então voltou quieto que nem um coelho velho. O lateral que não estava mais afim de levar outra por suas costas não o largava. O olhou no fundo dos olhos e ele todo sem jeito sorriu de forma amarela, quase desculpando-se. A partir deste momento, passaram a ser dois postes inanimados.

Termina o primeiro tempo. Todos sentados a volta do senhor Garcia, que além de técnico era o genitor do Júlio beque central, do Otacílio que jogava no meio campo e do Elias – em seus 132 quilos ainda em crescimento - que não tinha jeito para o negócio mas que era escalado, para não reclamar em casa que seus irmãos mais velhos eram protegidos do pai, na ponta direita. Entediados ouvíamos aquela mesma história de sempre. “Otacílio não prende a bola, solta de primeira”. “Zeca para de coçar o saco, presta atenção no jogo e cola no meia deles, que é quem está distribuindo toda a armação”. “Julião entra mais manso que o juiz já está de olho em você”. “Ranchinho fica mais fixo dentro da área e espera um cruzamento...Alvarenga, se der faz outro como aquele...”

Cruzamento? Cruzamento de quem se em uma ponta estava o Elias e do outro o Alvarenga? Mas mesmo sabendo que na hora eu teria que procurar o jogo e sair da área, aquiesci com a cabeça. Técnico é para ser ouvido fora do campo e desobedecido dentro do mesmo. Foi exatamente nesta hora que o Alvarenga teve aquele surto de tosse. Foi sangue para todo o lado. Não satisfeito, constatou-se que ele havia igualmente pego uma tuberculose.

O seu Garcia, o acudiu. Usou o seu próprio lenço e avisou que ele teria que ir para casa. Jogaríamos a partir dali com apenas 10. Ou melhor com 9, pois o Elias não contava. Mas Alvarenga fez que não com a cabeça. Não conseguia sequer falar, mas deixar o time na pior, neca de pitibiriba. Ele iria continuar. Manteve-se irredutível e assim voltou ao campo, com a camisa toda vermelha de seu próprio sangue.

Começada a segunda etapa o lateral direito adversário, um tal de Djalma Santos, que do craque da seleção tinha apenas a cor e o lóbulo da orelha esquerda, notou a camisa do Alvarenga empapada em sangue. Sorriu de alegria. Poderia apoiar seu ataque, já que o cara que tinha que marcar, estava prestes a colocar o pé na cova.

E o time do Flamengo de Itapecirica da Serra, passou a nos pressionar. Foi bola na trave, espalmada pelo Saca-rolhas, nosso goleiro e até uma salva em cima da linha pelo Julião. Outrossim num córner, o Julião vai lá em cima e cabeceia para fora da área e a bola cai em meus pés. Eu estava em nossa intermediária. A matei e  senti ela mansinha sobre o meu domínio. Girei o corpo. Olhando para o ataque, vi que o beque central deles vinha em minha direção. Apenas um pequenino, que defendia a posição do quarto zagueiro que fora para a nossa área, estava a espera do que eu ia fazer. Passar para o Elias aberto na direita, para o Alvarenga todo ensanguentado na esquerda ou driblar aquela locomotiva enraivecida? Se ele fosse mais atento saberia que o Elias estava fora de qualquer suposição e que eu nunca tivera vocação para herói.

Juro que me apavorei ao ver aquela locomotiva bufando e vindo em minha direção e só por isto lancei a bola para o Alvarenga. Na verdade não lancei em direção dele. Lancei no vazio. E aquela coisa franzina e banhado no seu próprio sangue partiu dali novamente como um raio. Com um jogo de cintura tirou o baixinho que fazia as vezes que quarto zagueiro, da jogada e com a saída desesperada do goleiro adversário deu um lençol perfeito. E a bola foi morrer suavemente no fundo da rede.

Ninguém teve coragem de abraçá-lo e nem haveria a possibilidade física de, já que o Alvarenga, sucumbiu e saiu de campo de maca, direto para o ambulatório de nossa pequena cidade. Ganhamos de 2x0.

Dois dias depois bate a porta de minha casa um tal de Zé Letrinha. Tinha bigode de pilantra. Tinha cabelo de pilantra. Usava um terno e uma gravata de pilantra. E era realmente pilantra. Apresentou-se como olheiro do Cruzeiro e me perguntou onde eu poderia encontrar aquele menino de quem todos pareciam tecer maravilhas. O raio das alterosas!

Como sempre tive tendência ao comércio, imediatamente respondi que era o dono do passe do Alvarenga, mas que não poderia levá-lo a ele naquele exato momento. O Zé Letrinha que era uma chato de galocha, não se deu por vencido e perguntou o porque? E eu, por sua vez, que era coroínha da igreja e nos fins de semana escoteiro, não me senti a vontade de mentir: ele está no CTI, ainda inconsciente. Mas o Zé Letrinha não era homem de perder a viagem. Se o Alvarenga respirava, a toca da Raposa o esperava.

No primeiro treino na toca, quase seis meses depois daquela famosa pelada, já que o Alvarenga custara a se recuperar, a coisa funcionou da mesma forma. Ele quieto entre a garotada juvenil, o lateral um tal de Nelinho dono de um chute poderoso a marcá-lo e nada acontecendo. A turma do meio de campo não lhe passava a bola, descrente que ele pudesse fazer algo de útil com a mesma. Pouco a pouco o tal do Nelinho foi lhe dando espaço. Ai, quando faltavam, três minutos para o encerramento do treinamento, um creoulinho também piá chamado Dirceu, se esqueceu de quem estava na ponta esquerda e fez o passe. A bola foi direta nos pés do Alvarenga. Ele não exitou, olhou para o Nelinho e quando este piscou o olho, já o perdeu de vista. Qual um foguete o Alvarenga se desvencilhou dele e em alta velocidade foi em direção do gol. O goleiro, um sujeito elegante e bonitão, chamado Raul saiu da meta, foi driblado e o Alvarenga só não entrou com bola e tudo, pois teve piedade de um outro baixinho e franzino que nem ele, passando-lhe a bola. O baixinho deu um tostão na bola e correu para o abraço. Dai passou a ser chamado de Tostão.

Do arco, o Alvarenga não saiu pois, ali mesmo apagou. Imediatamente o mesmo menino menino, que assinalara o gol - que diga-se de passagem sempre teve como vocação a medicina – esqueceu da alegria em que estava mergulhado e veio a seu socorro. Fez respiração boca a boca, pressionou seus coração e o fez voltar a vida. De maca o Alvarenga foi levado ao hospital e eu que estava presente como manager do Alvarenga segui na ambulância. O contrato foi assinado quatro dias depois, quando o Alvarenga ressuscitou, saiu do CTI e pode assinar seu nome.

A fama do Alvarenga, como tudo em Minas, imediatamente correu solta. Pela montanhas, planaltos e planícies todos falavam daquele garoto que em uma jogada modificava com o panorama de qualquer partida. A diretoria do Cruzeiro estabeleceu a sua estreia contra o América Mineiro e para que talvez conseguisse duas jogadas de seu mais novo contratado, montou um ambulatório a beira do campo, com uma unidade física de CTI. Sua estreia foi tremendamente divulgada. O América Mineiro era a segurança, pois, de ninguém ganhava. Mas o ti-ti-ti estava por conta de um falado fenômeno de apenas 13 anos já nos juvenis. Encheu o estádio ainda na preliminar. Mas pouco se viu do Alvarenga, que sempre quieto se manteve em sua ponta. Terminou o primeiro tempo e ele sequer tocou na bola. A torcida mostrou-se impaciente quando da volta do time ao campo. Que fenómeno era aquele que nem na bola tocava? Alvarenga foi mantido em sua posição empunhando a 11. O time jogava bem pois aquela turminha do Dirceu, Tostão e Nelinho estavam dando um banho de bola mas não conseguiam movimentar o placar. O América aquele dia, como por milagre divino, acordara e ganhava por 1x0.

Lembro-me, como se fosse hoje, que no intervalo eu no vestiário perguntei ao Alvarenga se ele estava sentindo algo, ao que ele respondeu: o de sempre, febre alta, pressão arterial, dor de cabeça e entupimento nasal. É doença nova”.

Por volta dos 12 minutos, uma falta foi cometida perto do bico da área do América e o Nelinho imediatamente pegou a bola e tomou a iniciativa de mostra-se batedor. Pediu apenas ao Alvarenga, que passasse encima da bola para tirar a atenção do goleiro. O Alvarenga concordou, só que ao invés de pular a bola, mandou um torpedo que entrou na forquilha. O goleiro adversário nem conseguiu se mexer. Gol de Placa!

Todos correram em sua direção, mas sabedores dos problemas de sufocamento do Alvarenga apenas deram uns tapinhas em suas costas. A turma da maca aproximou-se da lateral do campo, mais o Alvarenga fez o sinal com a mão que não era necessário. 1x1, a torcida mais satisfeita e todos cientes que o dever fora cumprido. Todos, menos o Alvarenga. Sabia que podia fazer melhor. Olhou para o Dirceu e suplicou: me passa a bola”. O neguinho olhou para o Tostão, e como este consentisse com a cabeça, sorriu de volta.

A turma do Cruzeiro começou a passar a bola de pé em pé, mas não para ele. O tempo passava e o Alvarenga continuava esquecido lá pela ponta esquerda, A torcida, que já era grande para a partida principal, se mantinha apreensiva, até que a bola veio a ter as chuteiras daquele que parecia um tostão. Ele que ouvira a suplica do Alvarenga para o Dirceu, apiedou-se e tocou para seu ponta esquerda. Alvarenga parou a bola, olhou para frente e viu que pelos menos sete adversários estariam entre ele e o gol do adversário. O publico silenciou-se. Até o zumbir de uma mosca poderia ser escutado. Alvarenga encheu o peito de ar e qual um touro na arena, resfolegou, raspou seu calçado na grama e partiu qual um cometa. Foram pelo menos sete, os adversários driblados um a um, se minha memoria não é falha e meio exagero contido.  Agora frente a frente com o goleiro fez que ia para um lado e meteu a bola no outro.

A torcida veio a baixo. A torcida e ele.

No CTI, ele pegou a minha mão e disse com aquela candura que lhe era peculiar: Acho que devo trocar de esporte. Talvez o biriba fará menos mal a minha saúde”.

Foi sua primeira e última partida em um clube profissional. Não importa. O que importa é se vocês perguntarem ao Dirceu Lopes, ao Tostão, ao Nelinho e ao Raul quem foi o maior jogador de futebol que viram jogar, todos dirão que foi o Pelé. Se perguntarem pelo segundo, certamente o nome de Garrincha será o escolhido. Mas não tenham dúvidas que do terceiro nome, o Alvarenga não escapa. Na lista de qualquer um deles. Acima até do Maradona.

Hoje, farmacêutico, Alvarenga continua tendo suas doenças e convivendo com elas. Se auto medica, já que seu amigo Tostão especializou-se na oftalmologia e só nele o Alvarenga confia.  Continua o mesmo. Franzino, quieto e arredio. Só sai de sua farmácia para jogar um biribinha com os amigos, do qual é craque reconhecido. Tem quase 60 anos e uma saúde de cão... Em cima de sua mesa de trabalho. A foto que saiu no Diário de Minas com ele sendo levado ao CTI e a manchete em letras garrafais. O Raio das Alterosas!



domingo, 30 de maio de 2010

O RÉU


Porque? Porque? Porque?

Eram muitos porquês. E todos vindos de uma pessoa que acabara de tomar conhecimento de sua existência minutos antes. Um homem de meia idade ilustre, letrado, possivelmente culto, mas que parecia encontrar razões para todo e qualquer ato que havia ele cometido em sua vida pregressa. O odiava, sem possivelmente conhecê-lo. Como num texto de Sheakespeare. Era um porque aqui, outro ali e mais um acolá. Como aquele senhor tomara conhecimento de cada pormenor de sua existência? Quem lhe dava o direito de conhecer mais dele do que ele a si próprio. Por ele intitulava-o um mal filho, um insano aluno, um deprimente pai de família e um assassino frio e premeditado?

E tudo isto vindo de um sujeito alto, magro, com cabelo embasado em gomalina e de unhas polidas. Usava um ostensivo relógio de ouro e uma gravata que deveria ter custado mais do que um salário mínimo. Devia ter camisas com monogramas, pijama de seda, fumar charuto e dirigir um conversível. Em qualquer filme de ficção ele seria o crápula. Aquele a quem não se devia confiar. O cínico inveterado. Porém, naquela pantomima armada que tornaram sua existência, o gomalina era o mocinho. O herói que ali estava, com o único intuito de desmascarar o bandido. Ele, o réu.

E a ele, a razão de tudo, era proibido o simples recurso de retrucar. De defender-se. De expor as verdadeiras razões que o levaram a fazer isto ou aquilo. Tinha suas mãos atadas por algemas. Seus pés unidos por correntes.  Usava um ridículo uniforme laranja. Mas na verdade o coação maior perante a seu corpo era a inabilidade que haviam criado dele usar seus sentidos. Estava proibido de falar. Em sua boca haviam esculpido um invisível zíper.  De mover-se. Era mantido acorrentado. Esperava apenas pela ordem de parar de respirar.

Quando sentia que era hora de intervir, seu advogado obstruía suas intenções e de forma grave retrucava: não deteriore ainda mais sua situação”. Em que mais sua situação poderia ser deteriorada? Se já era tratado como nitrato de pó de merda. Mas aquele a seu lado, era o homem a quem fora aconselhado ouvir. E sempre que possível, confiar e obedecer seus preceitos. Afinal, era idoso, gordo, pequeno, careca e usava lentes que mais pareciam o fundo de uma garrafa.  Uma enciclopédia jurídica. Como, uma pessoa com estas descrição, não poderia ser vista como um homem de respeito?

Mas da mesma forma, como poderiam aquelas doze pessoas que a tudo ouviam caladas e qual entes apalermados, saber quem ele realmente era se era ele o único ser humano naquela abafada sala, que não era ouvido? Sentia que os olhares de alguns daqueles doze, procuravam assuntar sua personalidade de forma furtiva. E ele, que teoricamente deveria ser o centro das atenções por se tratar do réu, não era ouvido. Sequer consultado. Notado? Duvidava. Então o que fazia ali? Não teria sido mais prático, ao invés de transladar-lo de sua cela com todo aquele aparato policial de segurança, colocar uma foto sua sentada naquela cadeira? Pois, era como se sentia. Uma imagem pétrea.

O passo seguinte seria imputar-lhe a culpa pelos gastos que o estado estava fazendo para que ele tivesse aquilo que chamavam de um julgamento justo. Julgamento justo, onde ele não falava, apenas ouvia. Aquele era a sua primeira experiência em uma sala de tribunal. Pela maneira que o caso estava se conduzindo, previa ser igualmente a última.

Era uma sensação estranha. Ver sua vida dissecada por estranhos a quem nunca vira ou sequer dirigira a palavra no decurso de seus 42 anos de vida, ainda incompletos, e ser obrigado a manter-se à margem. Aquilo o incomodava vagamente. Tudo se desenrolava sem a sua permissão e intervenção. Falavam de seu passado, imaginavam suas intenções e previam o seu destino sem sequer lhe pedir uma opinião. Do momento em que fora preso, até ali, perdera a capacidade de gerar seus próprios movimentos. Passara a ter hora de andar, tomar banho, fazer suas refeições e dormir. Regraram-lhe a vida como ele fosse um bezerro a espera de sua hora de corte.

Estava tentado a intervir. Gritar qual um maníaco, como aquele promotor iludia aos 12 ele ser, perguntando: Mas que merda é esta? Quem são estas pessoas que testemunham sem nunca sequer um dia terem me dito um alô ou um bom dia? Que credibilidade tinham eles em opinar sobre seus sentimentos e obsessões? Mesmo no banco dos réus, deveria haver uma complacência para com aquele que ainda não fora julgado culpado. Alguém perguntar se queria um cafezinho, ou se estava bem, se o ar condicionado estava na temperatura ideal. Um mínimo de civilidade, já que saber o que ele achava sobre o caso e o que estavam a ele imputando, parecia ser humanamente impossível.

Instintivamente, virou sua cabeça e olhou para sua mulher sentada na segunda fila. Ela tinha os olhos baixos. Sentia em seus ombros a humilhação de ter casado com um pervertido, inescrupuloso, pusilâme assassino, que friamente matara um homem a sangue frio. Até ali sendo omitido que o citado ser do sexo masculino era um proxineta, homossexual, marginal e traficante de drogas, reconhecido na Lapa, como Última Flor do Lácio.

- Vejam, como este senhor não se preocupa nem a ouvir o que dele acusam! Em nenhum momento sequer este homem a quem acuso de um frio e premeditado crime pareceu abalar-se ou estar arrependido da falta que causou a um seu semelhante...

Como alguém poderia se considerar semelhante a Última Flor do Lácio...

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

O tal do Orestes Benevides da Fonseca, nada tinha ver com a fonte de inspiração de Olavo Bilac. Era um proxineta que na voz do promotor, passara a ser, de uma hora para outra, um ser honrado, trabalhador e que sustentava sua pobre e velha mãe no morro do Salgueiro. E ele que até ali pagara todos seus impostos, trabalhara de sol a sol, que sustentava não só sua mãe no Leblon, como sua sogra em Copacabana, sua mulher e três filhos em Ipanema, um dos quais, insustentável. Ninguém se comovia com suas agruras?

Mas o Orestes fora a vitima. O promotor não estava interessado em debruçar-se sobre sua alma, como estava fazendo em relação à sua. Não parecia igualmente curioso em examinar os princípios morais da vitima. Não lhe parecia oportuno qualificar a intenção de acessibilidade ao vazio do coração do assassinado, como o fazia em relação a seu órgão. Na verdade não conseguia entender qual a razão daquele portador de tão valioso relógio, estar tão irado para com a sua pessoa. Seu dedo em riste, sempre em direção à sua testa, era fulminante. Qual um aríete pronto a derrubar uma possante porta. Cobrava-lhe arrependimento e não se preocupava a analisar a existência ou não de arrependimento do Orestes em relação a aquelas quinze mulheres que explorava, a maioria das quais presentes na galeria e que hoje ansiavam que a Última Flor do Lácio estivesse queimando em uma das escaldantes grotas do inferno.

- A forma com quem este senhor tirou a vida de Orestes Benevides da Fonseca, foi cruel, desumana. Nem a um animal é esperada tão inescrupulosa força!

Esta certo que ele poderia ter parado no primeiro tiro. Aquele que varou o coração da flor e que segundo os legistas levou o Orestes desta para a pior. Concordava e até comentaria de forma afável, que os outros seis tiros que desferiu contra o crânio do marginal poderiam ter sido evitados. Mas deformar aquele rosto lhe pareceu a melhor idéia no momento. Não estava transtornado ou tomado de uma loucura repentina, como seu advogado tentou convencer-lhe no inicio do processo, como uma excelente manobra de defesa. O fez ciente do que estava fazendo. Era necessário apagar-se da face da terra aquela imagem cínica. Ele o fez, muitos aplaudiram, mas nenhum estava ali para salvar-lhe.

- E vejam! Ele se mantém imperturbável contra as acusações que pesam em seus ombros. Tudo o que fez foi premedito e desnecessário. Apenas para saciar sua doentia fome assassina.

A voz cruel do promotor, não era o que mais lhe afligia, mas sim aquele dedo que agora para ele mais uma vez apontava. Fez menção de exprimir o que sentia, outrossim, a cutucada de seu advogado à altura de suas costelas o impediu momentaneamente. Da mesma forma que o deixou ainda mais enervado. Chegara a seu limite. Passou a sentir todo aquele calor que o cercava. Não se contendo, afavelmente e em tom conciliatório.

- Por acaso o senhor teve relações de negócios com a Última Flor do Lácio, a quem o senhor intimamente chama pelo nome de batismo, Orestes?

O promotor estupefato, ficou como por milagre sem palavras.

- O senhor por acaso perguntou a aquelas meninas que ali acima estão, quem era na verdade o seu Orestes?

Imediatamente uma meia dúzia de putas, levantaram-se e passaram a aplaudir a aquele que as libertara da escravidão sexual.

O juiz bateu com seu martelo e esbravejou:

- Ordeno que o réu se cale!

- Estou feliz meritíssimo que o senhor e todos aqui presentes, finalmente tenham notado minha presença.

Risos espalharam-se pelo recinto e multiplicaram-se, quando à terceira excitada batida do martelo do juiz, sua cabeça (a do martelo, não do meritíssimo) abandonou seu tronco, e voando foi dar aos cromados e caros sapatos do almofadinha acusador. Este deu um pulo, pois de alguma forma um de seus calos deve ter sido atingido. Falseou em seus calcanhares e foi ao chão.

- Deus seja louvado!

O sarcástico grito do réu acabara de despertar toda hilaridade que aquela cena, até ali contida, representava. De uma dramalhão de terceira a insanidade de uma ópera bufa! Desviando-se da nova cotovelada que seu advogado tentava impetrar, Mario Tobias de Aguiar Mello e Silva, sentiu que de réu passou a ser o centro das atenções. Todos agora ali naquela sala pareciam esperar por sua nova participação. Ele dera vida a aquela enfadonha representação.

Em segundos o recinto saiu daquele noir blazé dos filmes dos anos quarenta, para o brilhantismo das cores da época atual. Teve vontade de levantar-se e agradecer a aqueles que riam, mas achou melhor conter-se. Todavia, seu olhar para com seu próprio advogado fez crer ao referido senhor, que qualquer outra tentativa de uso de seu cotovelo contra suas costelas, seria respondida a altura que o ato merecia. No mínimo com uma mordida que o transformaria na versão moderna de Van Gogh.

O promotor foi trazido a seu próprios pés, com o auxilio de um de seus assessores. O centro de todo aquele acidente, a cabeça do martelo, foi levada de volta a seu corpo, por um auxiliar da justiça, que ajudou a fixá-lo. E o juiz, agora com um pouco de mais cautela, fez ver a todos que a comicidade teria que ter o seu fim, ou todos seriam retirados do recinto. Senhoras de família e prostitutas voltaram a acalmar-se. O promotor com a testa gotejada em suor e cônscio de seu vexame, procurou controlar-se. Agora mais do que nunca, iria querer a cabeça do réu, já que a do juiz e da porra daquele martelo, lhe seria impossível.

- Volto a ressaltar a todos os aqui presentes, da periculosidade que um individuo destes representa para a nossa sociedade. No curso de minha carreira vi crimes hediondos, compartilhei de situações grotescas para com o discernimento humano, mas nada e vos repito NADA, me parece igual ao que este senhor veio a cometer de maneira fria, premeditada e desumana, naquela fria madrugada de Agosto. Seis tiros na cabeça e um no coração. Execução sumaria, sem direito a defesa. Peço-vos que escutem meu brado de alerta e a este homem não lhe proporcionem, um milímetro sequer da piedade que seu advogado clamará.

Findo o infindável discurso de abertura daquele que exigia a cabeça do réu, para a felicidade do último, foi pedido um recesso por parte da defesa, para depois do almoço. Barrigas rugiam de fome, e isto poderia causar um decréscimo na atenção daqueles doze elementos em relação ao projeto de defesa do gordinho careca, que iria elevar pontos de suma importância na ilibada vida familiar e profissional do réu, e as razões que levaram ao mesmo, em um ato de passageiro desatino, a descarregar todas as balas de sua 45 no rosto da vítima. Todas não, pois, uma fora destinada ao coração.


O ar condicionado não estava dando vazão as necessidades dos presentes. Leques, abanadores, pedaços de jornais e no caso de um, o chapéu, eram usados como artifícios para a manutenção da temperatura do corpo humano em condições quase desumanas. O crime fora em Agosto, o julgamento estava sendo levado a efeito, as vésperas do carnaval. Sob uma canícula insuportável. Coisas do Rio de Janeiro.

Mas pelo menos era agradável, mesmo na posição de réu, ouvir da parte daquele que o defendia, quão grande sujeito ele realmente era. Como atento e diligente fora para com os seus e dentro de sua áurea profissional. Todas as suas virtudes, sem nódoas de defeitos, por menor que eles fossem. Até o fato de ter ser coroinha, não passara desapercebido, bem como não fora esquecido ser sua mãe uma filha de Maria.

Já dizia o velho Archimedes, que muito aprontara em sua vida. Na justiça brasileira, vence quem tem o melhor advogado. Os dois que se opunham pareciam eloqüente e bons naquilo que pregavam. Um tinha feito dele o assessor número um do demônio. O outro, como se ele estivesse sentado ao lado direito do senhor. E os doze atônitos à frente, pareciam boiar em águas esplendidas.  Mário, por sua vez, ouvia a ladainha com os olhos presos no martelo do juiz.

Nunca um peça de tamanha insignificância corpórea havia lhe causado tanta impressão. Sua fuga do corpo principal, a procura do calo alheio, o sucesso em seu alvo e a consecução de seus objetivos, inebriavam-no. Fora mais certeiro que a bala de sua 45. Mas ninguém iria culpar o meritíssimo por aquele atentado físico ao promotor.

Do martelo desviou sua atenção ao dono do mesmo. Tinha idade mas era muito bem cuidado. Pele bronzeada do sol, rugas inexistentes previamente retiradas de forma cirúrgica. Mãos igualmente polidas, e um óculos que parecia ser artigo de luxo. Enfim, um juiz nos trinques, daqueles que deviam vender sentenças nas horas vagas e reverter o lucro destas vendas em coberturas em Miami.

Foram duas horas de defesa das qualidades que o réu possuía. As putas da galeria aplaudiram de pé, tão logo o gordinho careca terminou sua odisséia. Apenas sua mulher acompanhou a ovação, apenas que com um pouco de mais discrição. O juiz, em toda a sua fleuma, pediu silêncio sem se utilizar de seu martelo. Parecia ainda temer, as verdadeiras intenções da cabeça de seu martelo. Sua voz, assemelha-se a de um tenor rouco. Tinha força, mas pouca sonoridade. Talvez tivesse sido fanho, na adolescência.

A chamada das testemunhas foi a continuação do primeiro ato. Pessoas depondo quanto a idoneidade da Última Flor do Lácio e demonstrando estupor pela atitude premeditada levada a efeito pelo réu. Interpeladas pelo advogado de defesa, sentia-se a fragilidade da tentativa de um suporte moral a um proxineta, que além de gostar de sentar numa criança, era ainda traficante de drogas. Mesmo sua mãe, que foi transladada do Salgueiro para a corte, não conseguiu convencer sobre as qualidades morais de seu filho e muito menos por que o mesmo havia pertencido as lides da Funabem e tinha cadeira cativa em Bangu um, onde esteve hospedado em quatro oportunidades como convidado da policia local.

Quando as posições se inverteram o réu pode igualmente observar, que suas testemunhas não possuíam igualmente o grau de convencimento necessário para ressaltar suas maiores virtudes. Sua sogra falseou em vários momentos, sua mãe pareceu simplista ao extremo e sua mulher deu os primeiros indícios que sua convivência com ela de há muito estava por um fio. Graças a Deus seus filhos não foram convidados a comparecer. As únicas que pareciam acreditar cegamente em seus nobres princípios, eram as putas da galeria. Infelizmente seu advogado havia se recusado a colocá-las no rol de suas testemunhas, o que até ali Mario não entendia porquê.

Elas seriam altamente convincentes. Aliás, não existe nada mais convincente do que uma puta. Elas fingem que gozam, elas o fazem acreditar que iniciaram aquelas funções dois meses antes, ante o abandono de seu marido, elas provam a você que seu membro é grande, generoso e que as satisfazem plenamente. Enfim, elas têm a capacidade de deixar os homens felizes e confiantes. Porque não colocá-las na cadeira das testemunhas? O Júri era formado de nove homens. Todos com cara de gostarem de pular o muro.

Voltou sua atenção a su vizinho que tecia bons comentários a seu respeito, como no dia que socorreu seu cão qu acabara de ser atropelado. Pôs-se a pensar. Seria salvar um cão um fator mais eloqüente do que matar um proxineta com sete balas, seis na cabeça e uma no coração? Em toda a sua vida nunca estivera ciente do que realmente se interessava, mas em contrapartida tinha plena convicção do que não lhe interessava. E aquele julgamento parecia ser um deles, embora ele fosse o ator principal do mesmo. Mas não conseguia entender que os fatores morais de vitima e réu pudessem ser mais importantes do ato e as razões por que ele sucedeu.

Ninguém ali estava interessado porque ele tomara aquela atitude? O que realmente o levara a tomar aquela decisão. Que, por sua vez. a vitima ao ser interpelada, havia lhe mostrado um canivete antes que ele puxasse por seu 45. Se bem que um canivete possa ser considerado uma arma de menor calibre que uma 45, David matou Golias com o estilingue da época. Talvez fosse este um ponto que seu advogado tivesse que relembrar a aqueles doze apáticos seres humanos. Teria que lembrá-lo.

O promotor por mais de quatro vezes exortara a necessidade do réu ter que pagar sua divida com a sociedade. E a divida da Última Flor do Lácio fora paga? Ninguém parecia interessado em abordar porque havia drogas nas ruas, violência na cidade, terror nos bairros. Que muitas Últimas Flor do Lácio, não eram tão incultas e muito menos belas, mas que certamente o poderiam levar ao esplendor de uma sepultura. Orestes era menos um. O réu simplesmente higienizara um pequeno ponto da cidade.

Um frêmito incontido tomou conta de seu ser. Sentiu seu corpo tremer em um calafrio cortante. O fato foi notado por um dos assistentes do advogado que perguntou se sentia-se bem. Mentiu, ao responder que nada sentia. Afinal que lhe valeria dizer a verdade. Não existe remédio para desolação. Como suavizar a consciência que sua vida poderia não valer mais nada se preso a uma cela pelo resto de sua existência?

Foram 8 horas de seção com um pequeno recesso de 45 minutos para o almoço e todos ali pareciam querer da fim a aquele julgamento. Extenuado, juiz, promotor, advogado e júri, foi decidido que a pugna ficaria para o dia seguinte. Pouco teria que ser apresentado, mas fosse o que fosse, o dia seguinte pareceu mais salutar.

Para todos, menos para ele que teria que mais uma vez encarar o teto, suportar sua insônia e controlar sua ansiedade. Mais horas de espera sem saber qual o seu destino. Feliz era a Última Flor do Lácio, que não precisava mais esperar ou decidir. Ouro nativo, que na ganga impura...

Ah Bilac, que saudades das aulas de português no Ginásio. Decorar seus versos. Deixar sua imaginação fluir sobre suas palavras. O recreio. A furtiva conversa com as meninas. A troca de promessas. Os sonhos inatingíveis. A volta da escola. As brincadeiras na rua antes do jantar. O suave degustar de uma comida caseira. Os deveres de casa. A oração antes de dormir. A esperança que um novo dia haveria de trazer.


Não pregara olhos. Sua fisionomia estava cansada, como a de um condenado a espera de sua sentença. Não poderia sugerir mais a convicção que seu advogado exigia dele na tentativa de demonstrar durante as seções sua inocência. Convicção dos inocentes que clamam por justiça. Teria Al Capone demonstrado pouca convicção? E o bandido da luz vermelha?

Notou que poucos elementos do júri ousavam sequer notá-lo. Pareciam envergonhados por serem donos de seu destino. Não queriam cruzar seus olhos com os seus. Para que então demonstrar convicção em seus atos? Era o ator principal invisível aos olhos da platéia. Na verdade era a Última Flor do Lácio, o mais importante artista. O centro gravitacional que dava equilíbrio ao espetáculo. Ele que entrara como coadjuvante na peça mas que morrera antes mesmo da seção ter seu inicio.

Uma estranha sensação tomou conta de seu ser quando o júri foi convidado a se retirar para deliberar com relação a seu destino. Teve vontade de ouvir um samba. Qualquer coisa de Martinho da Vila. Algo suave que fluísse bem ao ouvido de todos. Levado a uma sala, ficou a sós com seus advogados que tentaram inutilmente vender um sensação de vitória. Seu gordinho careca não o havia convencido. Seu voto, se jurado fosse, seria contra ele próprio. O Gomalina saíra-se melhor. A tese da premeditação e da fria execução pareciam mais sólidas que a dos motivos e da auto defesa, inspirados pelo discurso de finalização.

Ninguém estava levando em conta que as razões de um de seus filhos estarem hoje hospitalizados em um centro de recuperação de adeptos as drogas, tenha sido a vitima. Justiça não se faz com suas próprias mãos, incendiara o recinto o promotor. No que ele tinha em parte razão. Mas a justiça divina em Sodoma Gomorra não foram feitas por mãos próprias e divinas? E o que eram os tsunamis, os terremotos, as erupções os furações e as pestes do que justiças divinas? Alguém um dia iria colocar o Todo Poderoso atrás das grades para pagar sua divida com a sociedade?

Pensando bem seu argumento não teria força se levado a corte... Era ateu, nunca dera bola para Deus, mas depois que viu seu filho no estado em que se encontrava, vendendo seu corpo para ingerir drogas, sentiu que havia um Deus que a tudo assistia, mas eram eles, os seres humanos, que deveriam tomar suas decisões. Infelizmente ele tomara a sua, mas agora teria que pagar sua dívida com uma sociedade. Sociedade esta, que estava sendo dizimada por elementos como a Última Flor do Lácio. Durma-se com um barulho destes.

A campainha tocou. Ele estava pronto para enfrentar o destino reservado por aqueles doze elementos que em momento algum tiveram a coragem de olhar em seus olhos. Ajudado por seus advogados e pelos guardas que lhe esperavam fora da sala, voltou ao palco principal da peça de sua nova existência. Foi quando olhou para sua mulher. Ela parecia não estar ali. Olhava-o através.  Sua mãe a seu lado esquerdo chorava. O fazia discretamente como sempre fora em toda a sua vida. Sua sogra fingia estar olhando para outro lugar. Melhor assim. Nunca tivera por ela o menor carinho. Outrossim, havia pessimismo naquele trio. O trio que teria que conviver pelo resto de sua existência se alcançasse a liberdade. Liberdade? Era realmente um otimista...

O júri não tardou de voltar a sala. Nenhum de seus membros o fitou. Sentiu que fora condenado. O papel foi passado ao juiz que o leu em silêncio por alguns segundos. Sua expressão não sugeriu absolutamente nada. A verdade é que a decisão fora rápida demais. Não passara de uma hora. O que deixara seus advogados apreensivos. Foi dada a ordem para que o réu se levantasse. Ele o fez, fechou os olhos e agradeceu a Deus por finalmente ter um destino. 

quinta-feira, 15 de abril de 2010

O DONO DA PIROKAH

Mardel acabara de ser deportado dos Estados Unidos. E desta forma veio a dar novamente no Brasil. Primeiramente no Rio de Janeiro, depois em Porto Alegre. Por sua sorte, muita gente havia se esquecido dele. Pobre Mardel, alguns acreditavam que seu corpo nunca fora encontrado. Triste fim...
Quando Zequinha Mamute, anos depois resolveu realizar seus próprios prejuízos, se contentando apenas com os pescoços de China e Orlando, esqueceram da existência daquele malandro, que era safado qual o Laércio. Mardel sentiu-se compelido a voltar. Tinha saudades de sua terra natal, de seu idioma pátrio e do Grémio, que fora bicampeão do mundo em sua ausência.
        O Rio Grande do Sul era conhecido por seu filé, mas ele o estado da união em si, era o filé a ser deglutido pelo Mardel. Em sua deturpada mente, todos ali o deviam. Mardel estava pronto para ter a sua desforra e já tinha até um plano elucubrado no avião de volta a terra natal. Não dava para passar por árabe e muito menos por norte-americano. Logo atacou de nobre estancieiro uruguaio, que no Rio Grande do Sul sempre cola.
Deixou o bigode brotar abaixo de seu nariz, aperfeiçoou o seu portunhol, voltou deixar crescer as costeletas usadas quando cantava em um cabaré de Montevidéu quando trabalhou como garçom e passou a se vestir qual um príncipe oriental. Óculos ingleses de aro fino, chapéu irlandês quadriculado, colete com o quadriculado do mesmo padrão do chapéu e até o relógio era de corrente de ouro (na verdade se tratava de um bom banho de ouro). Quem o visse, juraria ser um cantor bem sucedido de tango. A segunda versão de Carlos Gardel. Um pouco mais magro...
        Chegando ao Cristal ele passou a aplicar aquele que seria o seu tiro definitivo. O que Mardel acreditava firmemente que lhe traria a fortuna tão desejada e sem complicações em relação aos bookies. O tiro de misericórdia. Aquele que o tiraria definitivamente do lodo em que se encontrava.
O nome escolhido desta feita seria don Pero Valdez Aguirre e apresentava-se como nativo de Montevidéu e filho de uma nobre família que o deserdara por seu intenso amor pelos cavalos de corrida. Coisas de velhos nobres da oligarquia uruguaia. Seu plano era simples, como simples sempre são as grandes idéias. Ele conquistava velhinhas desgostosas e ricas do mercado gaúcho e as colocava em sindicatos para a compra de alguns cavalinhos com pinta de ganhadores do Derby. Cavalinhos bem baratos para não atrair suspeitas dos curiosos. Mas estes sindicatos não eram convencionais onde cada membro adquiria ações e estas somadas perfaziam 100%. Aliás, na verdade não eram sequer sindicatos. Mardel vendia a cada uma de suas amantes 100% das ações de determinado animal, e assim alguns sindicatos chegavam a 2800%. Quebrava os animais antes de estrear e quando algum dos sobreviventes corria, o fazia fracassar. Para estes últimos, depois de duas ou três carreiras, simulava uma manquera e os vendia. Nem se dignava a pagar os cara minguados inerentes a venda, às suas apaixonadas investidoras e tome Viagra para agüentar aqueles sarcófagos ambulantes. No inicio pintava o recém adquirido para suas próprias-otárias como as sétimas maravilhas do mundo;
- Una maquina de correr! Mire como saca las manos. Como mueve las patas. Que petiso. Este nos lleva al derby.
Ai quando o cavalo estava às vésperas de estrear, anunciava em ritmo de tango de final de noite no Viejo Almacien.
- Que lástima, piso una piedra y la perdimos. Que pingo! Si no se lastima, estoy seguro que ganaríamos el Derby. Su calidad hera terminante!
E partia para outra aquisição.
Não havia perigo algum em todo o seu projeto, já que os cavalos na grande maioria das vezes não corriam, e aqueles que contrariando todos os prognósticos agüentavam as intempéries e conseguiam chegar a pista, eram tão matungos, incapazes de sequer levantar as próprias patas. Para manter ainda a garantia do insucesso, a bóia era quase nenhuma, o soro era de água da bica e o jockey redeador era um sobrinho do desaparecido Osório que detinha o recorde de não ter ganhado uma carreira no Cristal nos últimos três anos de sua vida profissional. Recorde este que estava sendo ameaçado neste momento pelo filho de sua irmã, o Osórinho.
        E a coisa era ainda mais perfeita, porque as perdas da parte de cada uma de suas investidoras não eram alarmantes, já que Don Aguirre era um selecionador de cavalos extremamente consciencioso que comprava os mais baratos oferecidos nas vendas, aqueles que tinham menor classe e chance de suceder.
          - Pobre homem. Os cavalos o haverão de levar a falência - comentou a madame Espinoza na altivez de seus 82 anos ainda incompletos.
- Mas como os ama - lamentou a viúva Bernardes Bevilaqua ainda na flor de seus 68 anos mais do que completos.
         Dois pais de santos vieram a ser consultados a pedido de uma das proprietárias. O resultado foi nenhum. Foi instalado uma música na cocheira de origem indiana, pois, segundo a viúva Alencar isto acalmaria os pensionistas, mas os cavalos passaram a ter otite e um se suicidou indo de encontro a parede. Duas videntes de Governador Valadares que não haviam conseguido vistos os EUA, tentaram também resolver o problema, trazidas pela viúva Bernardes Bevilaqua, mas nada conseguiram desvendar. E até um terapeuta consagrado em hipnose fora colocado à disposição de Don Aguirre por parte da madame Espinoza, para trabalhar na mente dos cavalos. Mas a urucubaca permanecia. Todos eram craques pela manhã, mas nunca chegavam a pista oficialmente.
      Mas pelo menos o terapeuta caiu nas graças de Don Aguirre. Pois, embora o que havia conseguido até ali na realidade, foram mais dois cavalos mortos, que depois de entrar no estado de transe hipnótico caíram e fraturaram seus respectivos crânios. Todavia, este era o tratamento ajustou-se qual uma luva para o nobre uruguaio. O golpe do seguro. Ele embolsava o seguro.
      Mas como prova de sua confiança nos dotes do terapeuta, o Dr. Eleutério, don Aguirre cavalheirescamente manteve o seu contrato e passou a fazer seguros altíssimos de suas jóias de quatro patas, com o pequeno detalhe de ser ele o próprio o beneficiário, nos animais a serem hipnotizados. E uma nova fonte de renda estabeleceu-se no PVA Racing Stables. A coleta do seguro.
       E a toda esta bola de neve monetária, teriam que ser somadas as contas de despesa da cocheira, do trato e daqueles longos tratamentos veterinários do Dr. Fritz Gungenheim, um estranho personagem que só medicava os cavalos de Don Aguirre na calada da noite. Mas que mandava suas contas à luz do dia e estas, eram atrozes para os proprietários. Ninguém tivera prazer de conhecer o veterinário alemão até aquela data, além de don Aguirre. E isto estava começando a instaurar uma espécie de curiosidade entre sua geriátrica clientela.
- Eu gostaria de conhecer este Dr. Gugenheim, Bibi. (esta era a forma pela qual a viúva Lacerda se reportava afetuosamente a seu treinador).
- Imposible. El hombre es muy nervioso, Xuxu (era o apelido que Mardel colocara naquela gordinha sapeca) No lo puedo perder y que se valla del stud seria una locura que se fuera. Me costo mucho que vuelva a trabajar. Desde que gano el Derby con Neckar en Hamburgo en el año de 1951, que abandonara la clínica. Un monstro. Manos milagrosas...
- Mas eu não diria nada, Bibi. Só o cumprimentaria... - tentou argüir a gordinha curiosa.
- Imposible Xuxu. El hombre fue nazista y no quiere ser visto. Muy cegado a Dr. Mengele. Si lo miro a los  ojos, desaparece.
E dia após dia, Mardel enchia mais os seus bolsos. Eram os seguros, eram as contas de manutenção e os fictícios tratamentos do gênio alemão.
Mas um manhã pintou em sua cocheira uma égua, raquítica, que visivelmente puxava uma perda e que para culminar perdera uma de suas orelhas em uma querela no pasto quando ainda pequena. Colocada no leilão de liquidação de um criador pouco afamado, ela que possuía o sugestivo nome de Pirokah, segundo seu criador, o nome de uma deusa da mitologia grega, não conseguiu sequer um lance, mas Don Aguirre se encantou e a trouxe para seu comando. A comprou reservadamente por 100 Reais, e a sindicalizou em 25 parcelas individuais de $ 1,000 reais de 100% cada. O sindicato presente era dos menos concorridos. Foram vendidas apenas 1400%
         - Cuando la vi en el remate, me sentí loco. Tenia que comprarla a cualquier precio. Una fenomena!
- Mas e a orelha, Bibi? – perguntou curiosa a viúva Lacerda.
- Que tiene la oreja?
- O problema é exatamente este. Ela não tem a orelha, Bibi.
- Estos  son detalles. Solamente detalles.
Pirokah não tinha realmente uma orelha, mas em contrapartida parecia ser constituída de ferro. Agüentava o tranco, comia a pouca ração, se mantinha no peso e mesmo hipnotizada era incapaz de cair e se transformar em prêmio de seguro. Um dia o sobrinho do Osório ao voltar da pista, ao final dos trabalhos, chegou com aquela cara de pateta e vaticinou:
- Don Aguirre esta tal de Pirokah é muito boa! Dura e difícil de baixar o facho. Nunca montei em coisa melhor. Imagine quanto ela fez nos 600?
- Osórito, mi muchacho, no me ves que estoy ocupado. Conversamos después. Si usted quiere anotar la yegüita, la anota. Confirmo la papeleta. Pero me deja trabajar.
E voltou a atender à aquele monumento da Shirley ao telefone. Que mujer... que mujer...
Como o Osórinho nunca havia montado em nada decente em sua vida, seu poder de avaliação foi imediatamente subestimado por don Aguirre que não ia mais pela manhã ver seus pupilos treinarem, já que tinha a difícil incumbência de treinar suas próprias investidoras. E isto demandava tempo. Não só pelo excessivo número delas, assim como pela avançada idade das mesmas, o que tornava necessário muito jeito e calma para não desmontá-las em movimentos inesperados. Um dia, o Osórinho chegou para Don Aguirre e vaticinou de forma solene.
- Se ela estréia, ganha.
- De que hablas, Osórito?
- Da nossa Pirokah.
Esquecendo-se por um segundo de sua condição de nobre uruguaio, don Aguirre escorregou e acabou dando uma de Mardel.
- Baaa, você esta vendo estrelas tché!
A sorte é que o Osórinho era daqueles que necessitavam mais de dez segundos para que a mensagem assimilada por seus ouvidos fosse transmitida para o cérebro e este por sua vez, montasse uma intrincada forma de discernimento. Rapidamente Mardel voltou a ser don Aguirre e demoveu o jockey da coudelaria (forma sutil e pomposa de chamar a cocheira) de seus sonhos.
- Pero que si, pero que no, la vamos correr igual . Pero no te la vamos a dar a vos. El  exceso de confianza es la enemiga de la perfección.
Mesmo triste, Osórinho aceitou o fato que don Aguirre era um homem das letras e que sabia das coisas. Paciência. Mas dar a sua querida Pirokah para o Bustamante, também já era demais. Logo o Bustamante...
       Surdo e com artrite no braço esquerdo, Bustamante não parecia ser a melhor opção. Aliás o Bustamante nunca fora a primeira opção para nada. Ainda mais que para Osórinho, o Busta (como era conhecido nas rodas turfísticas) só não batera o recorde de seu amantíssimo e desaparecido tio, porque ganhara uma carreira num páreo de cinco concorrentes.  Nesta carreira dos cinco participantes, quatro caíram e só o pupilo do Busta não fora prejudicado, já que vinha tão atrás que teve tempo mais do que suficiente, para se desviar dos demais. Mas vida de jockey era assim mesmo e o Busta era um bom sujeito. Tão bom que ainda era casado há 20 anos com a mesma mulher.
     Alguém tinha alertado a Osórinho que a razão de tão harmonioso matrimonio era porque o Busta era surdo e a dona Marilda cega. Aquelas duas deficiências físicas uniram o casal para sempre. No momento em que a voz de dona Marilda era pior do que cana rachada e Bustamante era feio como a peste. Mas o que o olho não vê e o ouvido não escuta, faz o coração não sentir.
        Mas a sorte começou a virar-se contra Mardel.
        Dona Firmina, que era umas 14 proprietárias absolutas de Pirokah resolveu comparecer ao jockey na tarde de estréia de sua pupila, contrariando o pedido de don Aguirre, que sempre proibia aos proprietários de assistirem seus cavalos correr ao vivo.
         - En la televisión se ve muy mejor. Porque también no quiero que mi gatita este en un ambiente de levante.
Don Aguirre era excessivamente ciumento e por que não dizer extremamente supersticioso. Pregava achar que a presença de suas proprietárias no hipódromo em dia de carreiras, trairia má sorte ao cavalo. Por isto todas assistiam pela televisão, quando o milagre de um de seus cavalos ter conseguido escapar do massacre matinal. E as velhinhas obedeciam, principalmente vaidosas pelo ciúme doentio, daquele nobre cavalheiro uruguaio. Mas dona Firmina que era uma rebelde por natureza, tanto que havia liderado a ala feminina conservadora na revolução de 32, não deu bola a proibição. E afinal que superstição era aquela? Nenhum dos cavalos conseguia correr, que dirá ganhar... ademais o Osórinho lhe havia garantido que a potranquinha era imperdível. Desta forma a rebelde mentiu para seu amado treinador, dizendo que estaria em Petrópolis e desobedecendo-o, colocou o vestido vermelho de formatura e compareceu ao prado, disfarçada. Para tal achou que um simples par de óculos escuros e um chapéu discreto de feltro com uma pena de faisão, seriam mais do que o suficiente para não ser notada pelos presentes.
      Há de se convir que uma senhora de 90 anos acondicionada em um vestido vermelho, três números menores, com óculos escuros e chapéu de feltro, com uma pena de faisão, não eram uma coisa muito freqüente nas tardes de fim de semana no hipódromo de Cristal. Mas don Aguirre, que estava sentado na mesa com duas lourinhas de vida difícil e ávidas por dinheiro fácil, não deu a mínima bola. Estava bêbado e entretido com suas companhias. Não notou a presença da investidora e muito menos foi ao paddock ver sua Pirokah.
- Você não vai ao paddock ver sua potranca, Perito? - perguntou a mais ordinária das duas.
- No mia cachita. Estoy en lo paraiso com usted…
Seu pai, o saudoso Aristides, uma vez havia lhe dito que dinheiro não comprava felicidade. Mas Mardel sabia, que este mesmo dinheiro poderia pagar sua Mercedes, seu apartamento em Bela Vista e principalmente o cachê daquelas duas lourinhas no final daquela tarde. E isto era o que importava naquele exato momento de sua vida. O resto eram meros detalhes. Meros e desprezíveis detalhes até que aquela potranquinha que acabara de entrar na pista saltitante, a Pirokah, começou a lhe causar calafrios. O primeiro alerta do desastre que poderia estar por acontecer foi um comentário à suas costas, de dois caras que a primeira vista o Mardel não conhecia, mas cuja voz do que acabara de falar, não lhe pareceu estranha.
- Como esta linda esta estreante.
Mardel não se preocupou, com o comentário. Com a voz sim. Naquela carreira haviam quatro outras estreantes e continuou a cafungar o pescoço de uma das meninas, a oxigenada da esquerda, sem dar a mínima bola para quem comentava às suas costas. Mas o segundo brado de alerta veio logo a seguir.
- Que nome estranho para se dar a uma potranca.
Respirou fundo. A coisa não era ainda alarmante, já que das cinco estreantes, três tinham nomes pouco comuns; Pirokah, Gonorinda e Xexelenta. E Mardel se limitou a mudar de pescoço. Agora estava no a sua direita. O castanho escuro de pelos eriçados. Mas foi justamente quando ele chegou naquela outra massa de carne embargada de Fleur de Rocaille que sentiu de quem aquela voz conhecida às suas costas estava se referindo. Ele não só reconheceu a voz, como também o perigo.
- E olhem que barraram este menino promissor do Osórinho para colocar o surdo do Busta.
Ambos estavam mesmo falando de Pirokah e a voz era do Osório, aquele filho da puta que havia puxado a Blue Gardênia, jogado na Grand Orient e fugido com uma nota preta para as Bahamas. Aquele filho da puta que o fizera passar o que fora obrigado a passar em solo uruguaio. A voz estava um pouco mais rouca, mas só poderia ser ele, afinal só uma múmia como aquela, poderia achar o Osórinho promissor.
Mardel estava a ponto de voltar a sua cabeça e encarar o traidor, quando um comentário do acompanhante de Osório Duque Estrada o fez esfriar por completo. Ele igualmente conhecia aquela voz...
       - Isto me lembra um golpista que havia há muito tempo atrás por aqui no Cristal chamado Mardel.  Um sujeito novo e até simpático. Ele uma vez descarregou na minha banca numa tal de Blue Gardênia e quando pensávamos que ele ia para a cabeça, na realidade o salafrário estava jogado na Grand Orient que acabou ganhando o páreo. Descarregamos na pedra a tempo, mas a emenda foi pior que o soneto. Pois, só então descobrimos que o Mardel havia aprontado um belo de um enxerto. A égua que ele queria que ganhasse era a Grand Orient. Se meto os olhos naquele vagabundo o esfolo vivo. Sou capaz de reconhecê-lo até debaixo d'água! - a voz deu alguns segundos de pausa e completou - Você conheceu o tal de Mardel, comendador?
- Felizmente não. Mas ouvi falar de sua fama. Terrível. De sujeitos como estes  procuro sempre manter uma certa distância. Ademais neste tempo eu não freqüentava o Cristal. Estava tratando de meus negócios em São Paulo.
Que Judas! Mentira com total indiferença! E logo aquele comendador de uma figa, que na realidade era o traidor do Osório. A única razão de seu calvário em Montevidéu, aonde até latrinas teve que limpar para sobreviver. Mas será que a Pirokah tinha mesmo chance, pensou Mardel agora se desinteressando daqueles dois pescoços e fixando seus olhos no totalizador? Era o seu que acabara de entrar na reta.
Pirokah estava não só bem jogada, como era a franca favorita. Aquilo não era possível! Como estavam jogando numa égua que comia 1/3 de ração, tomava soro de água de bica e estava montada por um surdo? Teriam todos enlouquecidos? Mas a resposta as suas dúvidas foram imediatamente sanadas quando ele se dignou em fixar suas lentes nela. Não é que aquela potranca sem orelha estava linda. E os dois as suas costas, confirmaram a outra razão.
- Não te disse. Ela tinha que ser a favorita. Com aquele seu último apronto de 34" para os 600, é impossível de perder. Só o Estensoro fora capaz de algo semelhante.
- Eu não sabia, comendador que o senhor conhecera o Estensoro.
- ... de nome, só de nome... consertou o Osório, pigarreando a seguir.
34" para os 600. E o Osórinho não lhe havia dito nada! Ou melhor ele tentara dizer e ele não dera ouvidos. Estar de trela com aquela destrambelhada da Shirley o fizera perder o fio da meada e pelo jeito, iria perder a meada inteira até o final daquela tarde. Aquela égua não poderia ganhar ou ele estaria frito.
- Ela não só ganha, como o faz em recorde.
- Escute o que vou lhe dizer, comendador. Se a Pirokah ganhar hoje em recorde, vou direto neste tal de Aguirre e a compro por qualquer preço. Aliás o senhor conhece este Aguirre?
- Não. Sei que possui uma cocheira cheia de cavalos, mas poucos são aqueles que chegam a pista. E quando chegam fracassam.
- Isto também me lembra muito aquele desgraçado do Mardel - completou o banqueiro expelindo fel em seu hálito.
Hora de picar a mula.
- Con permiso. Vuelvo en unos minutitos.
E se afastando das duas lacraias sanguinolentas, Mardel desceu as escadas aos trancos e barrancos, na tentativa de avisar ao Busta de sua nova intenção; A de segurar a Pirokah, antes que esta se tornasse um veículo para arrombar a sua região glútea. Chegou a tempo a cerca, gritou pelo Busta, mas só então se deu conta que se esquecera do problema auditivo de seu jockey. O máximo que conseguiu com seus acenos foi um aceno de volta do surdo que sorria e parecia confiante.
Agora era tarde. Só havia uma derradeira alternativa. O negócio era retirá-la da carreira por ordem veterinária. Mardel se encaminhou rapidamente ao edifício ao lado aonde se encontrava a comissão de corridas reunida. Lá chegando foi recebido por um dos comissários de carreira.
- Que barbada não don Aguirre que o senhor tem neste páreo?
O cumprimentou o chefe da comissão de corridas.
- Una yegüita preciosa, Pero en el paseo la vi que estaba rota. Una lastima Tenemos que retirarla.
- Como retira-la, don Aguirre? Sua Pirokah é a franca favorita e já está a caminho do largador. Se a retiramos o público quebra tudo. Desculpe mas é totalmente impossível. Fora de propósito!
- Mas la sanidad del la yegüita?
- Não se preocupe. Vou me comunicar com o veterinário de plantão junto ao largador e peço para ele fazer uma avaliação. Se ela estiver sentida, como o senhor notou, ele também irá notar e a retira. Um momento.
Avaliação? O que o Mardel naquele momento necessitava é que um raio caísse bem no meio da cabeça da sua Pirokah. Como aquilo poderia ter vindo a acontecer? Todas as éguas estavam agora rodando por trás do partidor e por seu binóculo, Mardel podia ver que sua Pirokah era a mais robusta, cheia de vida, e certamente a mais excitada de todas. O surdo quase que não a conseguia manter em suas mãos.
- Cai filho de uma égua… cai… - balbuciava entre dentes, quase mordendo os lábios.
Mas a bosta do Busta não caía. Ela pulava que nem cabrito e ele mantinha-se no dorso com a Pirokah espumando... Melhor, assim. Talvez houvesse a chance dele cair no percurso, ou quem sabe a Pirokah pulasse a cerca...
- Tenho boa noticias, don Aguirre.
- La van a retirar?
- Não. Ela está sã.
Como sã se ela puxava de uma perna?
- Sanita?
- Sim.
- Mas la pierna...
- Ah, o fato dela o puxar do posterior esquerdo, o Busta garantiu ao veterinário que nunca foi problema
- Nenhuno problemita?
Surdo desgramento!
- Nada, nada, nada! Nosso veterinário garantiu que não há nada de errado com a sua Pirokak. Ela esta tinindo e o Josias me segredou também que não vê jeito dela perder esta carreira. O Busta está gozando todos os demais adversários dizendo que hoje a Pirokah dele faz a festa. Não se preocupe, homem de Deus. Acredite, sua Pirokah está um colosso.
- Nenhumo conosco la Pirokitah como yo.
- Acalme-se homem, tudo dará certo. Hoje é o seu dia.
Era o que Mardel mais temia. Talvez hoje fosse o seu último dia...
- Fique aqui para assistir a carreira conosco.
- Gracias, mas me tengo que ir.
      Mardel queria estar o mais perto possível do portão de saída, quando a catástrofe viesse a acontecer. Mas seus temores foram dissipados logo na largada. Ou melhor na largada das outras, já que o Bustamante não ouviu o grito do juiz de largada e saiu do partidor com um grande atraso.
- Deus seja louvado. Juro que não apronto mais
Mardel, fez o sinal da cruz, espalmando a seguir beijou suas mãos em ritmo de oração. Como sacou que dera bandeira, pois, alguns notaram o seu gesto, completou agora com o semblante cravejado de preocupação:
- Que azar... que azar... com mi pirokitah...
Pirokah, que dera cerca de dez corpos de vantagem as suas nove outras adversárias, chegara ao final da reta oposta já colada na penúltima, mas embora aquilo inquietasse um pouco a Mardel, não havia jeito dela alcançar as ponteiras e ainda ter resistência para chegar ao disco na primeira colocação. Não comendo o que ela comia e sendo injetada de água da bica como se fosse soro. Era eqüinamente impossível. Ainda mais que o surdo havia decidido mantê-la junto à cerca aonde dificilmente iria encontrar passagem. Estava salvo, pensou Mardel, graças à incompetência do Bustamante.
      Mas é aquela velha estória. A gente só se lembra que esqueceu o guarda-chuva, quando o temporal já está caindo sobre a cabeça. De tanto galopar para ver se quebrava Pirokah, Mardel fez com que sua pupila adquirisse uma estamina (capacidade de se chegar à distância) bárbara. Uma a uma, Pirokah foi as passando na cara, sem que o surdo necessitasse sequer fazer uso de seu chicote e a 200 metros do disco só tinha duas adversárias a sua frente e uma colada em seu lado. Um caixote que nem o David Copperfield seria capaz de se desvencilhar. Mardel sorriu e abaixou o seu binóculo. Não havia mais jeito. Graças ao bom Deus, o surdo tinha jogado mais uma fora.
Caminhava de volta para a social, quando um brado da galera o fez trazer de volta o binóculo a seus olhos. Meu Deus, o desgranado do surdo conseguira uma passagem junto aos paus, usara seu chicote com a esquerda e sua Pirokah estava arrebentando com todos. Tomara de golpe a segunda colocação. Amaldiçoado seja o senhor, ela iria ganhar.
          - Deus por favor, me livra só desta. Por favor...
E suas preces foram ouvidas. Há 20 metros do disco a cansada ponteira veio para dentro e por um segundo Pirokah afrouxou, recolheu sua cabeça e cruzou perdendo por uma diferença mínima. Mardel respirou aliviado. Graças a Deus ele fora salvo pelo Gongo. Não o tradicional gongo e sim o Pedro Gongo, o jockey da Xexelenta.
Dois turfístas que cruzaram com Mardel o consolaram:
- Que pena don Aguirre. Sua potranca correu uma barbaridade. Se tivesse orelha, poderia ter ganhado na foto. Na próxima é barbada.
- Que le vamos a hacer? - respondeu ele com aquela cara de desconsolado, mas sabendo que não haveria uma segunda vez.
Aquela filha da mãe ia ter um ataque de coração ainda aquela noite. Era só colocá-la no seguro no final da tarde.
Mardel já estava na parte inferior da arquibancada quando um outro turfista vindo em sua direção, tentou lhe incutir algum ânimo.
- Acho que o senhor leva esta. O Busta acabou de reclamar. Vão desclassificar a Xexelenta.
O coração de Mardel disparou. Aquilo não podia acontecer. O que aquele surdo de merda tinha na cabeça? Mardel correu de volta em direção a comissão de corridas e quando lá chegou se viu barrado na entrada pelo negão Alcibíades. Colorado e como tal fedorento.
- A comissão está reunida com os jockeys e estão decidindo o que vão fazer - objetou aquela porta de ónix humana, postada a sua frente com os braços cruzados a altura do peito.
- Yo quiero explicarles...
- Não se preocupe, don Aguirre. Antes dos jockeys subirem, ouvi um dos comissários dizer que é desclassificação na certa. O senhor já levou esta. Não se preocupe. Vá para o caixa recolher o seu.
Caixa? Recolher o seu. Baaaaaaaaaaaaaa! Como se ele não se dera nem ao trabalho de jogar? Tinha que interferir naquela decisão antes que fosse tarde. Mas era tarde. A porta se abriu e pela cara do Gongo, o resultado não lhe fora favorável. Atrás dele, abraçado com o chefe do comissariado estava o pateta do surdo, sorrindo qual um louco, pela sua segunda vitória em três anos. Quando todos o viram, convidaram-no a entrar.
- Vamos brindar uma champagne, don Aguirre, por sua primeira vitória aqui no Cristal.
Don Aguirre cruzou com Bustamante, que emocionado lhe deu um abraço e lhe beijou as mãos com as lágrimas escorrendo de seus olhos. Parecia por demais agradecido. Mardel sentiu vontade de estrangular-lhe lentamente. Não lhe faltaria a oportunidade.
- Com a sua Pirokah patrão, vamos ganhar o Grande Premio Brasil. Tri legal! - e desceu para tirar a fotografia.
- Você não vai para a foto, don Aguirre? - perguntou um.
- No, no. No me gusta hacerme ver. Ademas la propietária no vino.
- Feliz com a desclassificação? - perguntou outro.
- Penso ser anti deportivo. Deberíamos mantener el resultado. No lo quería perjudicar a Gongo menos a los otros propietarios...
- Que nobreza. Que espírito. Don Aguirre são de treinadores como o senhor que nós precisamos por aqui no Cristal. E não desta corja de Juvenals, Laércios, Euclides e Mardeis da vida, que graças a Deus foram daqui corridos -comentou o chefe do comissariado.
- Si, si, como no? Mas...
- Ponha algo em sua cabeça Don Aguirre. O Gongo é que prejudicou. Não o seu jockey a ele. Esta é uma das melhores potrancas já aparecidas no Cristal. Pirokah vai arrebentar com todos. Só uma fenomena poderia dar a vantagem que deu, atropelar pela cerca e ainda chegar aonde chegou montada pelo Busta. E só o senhor também com a sua nobreza peculiar de espírito, podia dar uma chance como estas ao surdo. O senhor tinha uma barbada e apelou para seu espírito humanitário dando uma verdadeira chance ao pobre coitado. Isto é mais do que nobre.  Isto é humanitário, quase divino.
Abraçado pelo chefe do comissariado, Mardel só pensava numa forma de sair dali o mais rápido possível. Suas quatorze proprietárias já deviam estar pulando em frente à televisão e procurando localizá-lo no celular. E Mamute a caminho de sua cocheira para arrancar a sua Pirokah. Ele tinha que picar mula...
- Qual das três é a dona de sua Pirokah? - perguntou inocentemente o Dr. Camacho, um dos comissários sérios daquela junta de vadios.
Mas o que realmente havia conseguido fora arrancar de todos uma gargalhada e do extrovertido Valério, um comentário, a mais:
- Deve ser uma das louras, ou quem sabe as duas. Não acredito que seja a terceira
- Ninguna. Son apenas unas amigas que vinieron conmigo... Tercera?  Usted dice tercera?
-  A velhota de vermelho com chapéu com pena de ganso.
Velhota? De vermelho com chapéu com pena de ganso? Mardel fez uso de seu binóculo e quase o deixou cair ao vislumbrar Fifi (o apelido amoroso pela qual Dona Firmina gostava de ser chamada) acariciando e beijando sua Pirokah à frente do hipódromo inteiro.
         Imediatamente veio a cabeça de Mardel o que as outras treze proprietárias estariam pensando naquele exato momento vendo sua égua sendo fotografada e ladeada por três outras mulheres. A presença das louras era fácil de se despistar, já que Mardel diria tratarem-se respectivamente da mulher e da cunhada do Bustamante. Normalmente jockeys tem esposas louras e com o dobro de sua altura. E naquele específico caso, coincidia. Mas a Fifi... Como ele justificaria a presença de Fifi? Ia ser difícil engolirem a Fifi ainda mais que agora ela estava pendurada em sua Pirokah. Não a largava nem por decreto.
        Talvez justificasse como sendo a mãe de uma das meninas? Ou quem sabe uma tia afastada? Algo assim. Até lá ele arrumaria uma desculpa. Sua maior preocupação no momento era o Mamute. O crime seria perfeito se o locutor não tivesse a terrível idéia de fazer uma entrevista e Fifi afirmar exultante ser ela a única proprietária daquela Pirokah.
- Ai don Aguirre. Amassa as louras e faz a velhinha pagar as contas de sua Pirokah - gozou o desbocado do Valério, se valendo como sempre da Pirokah alheia.
- E olha o Zequinha Mamute com aquele seu amigo. O comendador de São Paulo. Já chegaram na velha para lhe arrancar a Pirokah de suas mãos. Don Aguirre, desculpe lhe informar, mas estes dois vão retirar sua Pirokah antes do final desta tarde. Ela vai hoje mesmo para a cocheira do Edmundo Bastos. Duvido que a velha não venda para o Mamute. Quando o Mamute cisma, não tem jeito. Ele compra mesmo!
- Não há Pirokah que resista... - voltou a gozar o Valério, que por estas coincidências era primo de outro homônimo que careca como ele havia cagado com a fama do PT.
       - Não fique assim Don Aguirre. O senhor arruma outra Pirokah, logo, logo. Já provou ter olho clínico. Comprou uma égua sem uma orelha e que puxava de uma pata e viu aquilo que ninguém havia notado. Uma craque. O senhor é gênio.
Don Aguirre estava tão desnorteado que caiu sentado em uma das cadeiras. Seu fim era eminente. Paraguai agora? Talvez... Alcebíades interrompeu o incentivo do comissário de corridas.
- Uma tal de dona Firmina e o Zequinha Mamute com um amigo comendador de São Paulo, estão ai embaixo e pedem para subir pois, necessitam falar com Don Aguirre. Parece importante.
Melhor Venezuela. Se a besta do Hugo Chávez colava lá, porque ele não?