sexta-feira, 26 de março de 2010

O SUÍCIDA DA PISCINA



Então era aquele, o famoso mar do Caribe? Parecia realmente limpo e brando. Tudo como fora prometido pelo pacote que havia comprado pela Internet. Mas seria mesmo? Olhou com mais cuidado.

Aquelas águas que agora beijavam os pés do jovem casal, não lhe pareciam diferentes a de outros oceanos como o Atlântico, o Pacifico, ou mesmo o Indico. Conhecera a todos. Quem não lhe garantia que aquela água, meses antes não estivesse na costa da Califórnia ou cerca de Portugal? Os dois jovens pareciam pouco se importar com esta possibilidade. Quando se é jovem, principalmente recém casados, tudo soa como as mil maravilhas. Até molhar as barras de suas calças.

Sabia como funcionava. Quatro foram os seus casamentos. Quatro foram suas luas de mel. E quatro foram os advogados que lhe limparam o cofre. Estava liso. Lisinho, na acepção da palavra. Pobrezinho de “marré de ci”!  A crise que ora se implantara no governo Bush o pegara em cheio. De frente. Sem piedade. Qual uma britadeira desgovernada a procura de um poste que estancasse com a sua vertiginosa queda. E ele agira qual o poste. Sentira a aproximação do problema e simplesmente mantivera-se rígido. Sem se mover. A espera de um milagre. Que nunca veio. Quem apareceu foi o primeiro advogado. Urrava qual um animal desvairado por aquela pensão alimentícia não paga. A de sua primeira mulher. Ao, veio o segundo, o terceiro e antes que o quarto batesse à sua porta decidiu: se mataria.

Quando se está por baixo, com merda até o gogó, não falta gente para afundar sua cabeça com o salto de suas botas. E ele estava endividado, arruinado. Mas não mais. Que as quatro serpentes venenosas arcassem com suas dívidas. Ele decidira. Partiria desta para uma melhor. Mas sempre tivera um problema para com a dor. Nunca iria enfiar uma bala em sua cabeça, muito menos se atirar do trigésimo segundo andar do edifício em que tinha seu escritório na Lincoln street em Chicago. Morava em casa, logo da janela de seu quarto, nada surtiria efeito. Tinha que achar uma maneira. Pensou primeiramente em envenenamento. Algo definitivo, mas sem dor.

Veneno? Não. Isto causaria muitas dores no estômago e sangos lamentáveis. Usar o gás, era uma opção. Outrossim, tudo em sua casa e em seu escritório era elétrico. Maldita modernidade! O carro? Como, se o perdera? O banco havia lhe tomado seis dias antes. Eletrocutamento? Uma banheira, um rádio e fim. Mas havia dor. Veio à sua mente, imediatamente a imagem de alguém tremendo, com olhos esbugalhados. Desistiu. Foi aí que decidiu pela  asfixia.  Era lenta, mas praticamente sem dor. Mas de que forma? Enforcar-se estava fora de cogitação. Devia doer muito. Foi a única vez que o Saddan Hussein nem impropérios expeliu. Assim sendo, ninguém lhe poderia convencer que pescoço quebrado não lhe traria dor. Como era difícil tirar a sua própria vida... Como era duro a vida de alguém que queria tirar a sua própria.

Quando achava que não existia mais uma forma de se suicidar sem dor, lembrou-se do filme em que a escritora Virginia Wolf se mata entrando lentamente em um rio. Seu semblante estava sereno. Talvez fosse esta a solução: afogamento... Mas não em Chicago a trinta graus abaixo de zero! A dor que sentiria ao entrar na água seria terrível. Congelaria seus ossos, pararia com sua circulação. Ficaria roxo. Irreconhecível. Totalmente fora de cogitação.

Mas sempre havia a possibilidade de procurar por águas mais quentes. Mas como se estavam em pleno inverno? Brasil. Sim aí talvez estivesse a solução. Leu tudo sobre Ipanema, Copacabana e Leblon. Praias do Rio de Janeiro. Funcionaria. Mas era longe para burro. Sempre detestara viagens longas. Causavam-lhe tédio e desolação. Ademais havia muito crime nas ruas do Rio de Janeiro. Poderia ser baleado antes de alcançar o mar. Foi quando decidiu pelo Caribe. Entrou na internet e escolheu o mais caro pacote existente na mesma. Cancun. Gran Mélia Cancun. United primeira classe. Dinheiro nunca fora o problema. O problema era agora a falta do mesmo.

Mas este seria um problema da United, da rede Mélia e do American Express, pois, não estaria ali para pagar. Aquelas quatro vagabundas é que se virassem em suas camas para fazê-lo. O provedor já era. Fora! Que respeitosamente enfiassem em seus respectivos orifícios anais aqueles papéis erigidos por seus advogados de cobrança de pensões alimentícias. Pela primeira vez em suas vidas, aquelas quatro víboras iriam suar para conseguir colocar comidas em suas mesas. O parvo se fora e em grande estilo. Num resort catalogado na propaganda da Internet como seis diamantes e deixando uma garrafa de Don Perignon recém aberta nas areias frias e alvas do México.

Final digno de quem um dia foi alguém, mas que confiara em Wall Street e que se quebrara de azul, vermelho e branco, ao som do hino norte-americano. Ele que conseguira escapar da convocação do Vietnam, da queda das torres gêmeas não fora capaz de sobreviver a ânsia especulativa dos homens de Wall Street e das burrices do little Geoge.

Sentiu o lado irônico da questão. Bin Ladden havia explodido com Wall Street. Agora era Wall Street que explodia com o resto da humanidade. Sorriu qual uma hiena. Não tinha uma carniça a devorar, mas mesmo assim algo lhe fazia feliz. Talvez fosse este o último prazer de um condenado. Sua última refeição. O que aliás ele o fizera e não poupara com a mesma. Carregara sua conta de hotel com tudo que tinha direito, ali naquele restaurante metido a besta e que pouco tinha de cozinha mediterrânea. E se dera ao luxo de levantar, fazer um brinde e alertar a todos os outros de sete mesas completas, que toda a despesa daquela noite era por conta dele. Pela primeira vez foi aplaudido de pé.

Houve um que lhe perguntou o porque de tão despojada atitude. A ele e a todos que esperavam curiosos por sua resposta, bradou: “ganhei na loteria, estou multimilionário. Caprichem em suas sobremesas!

Mas isto era passado. Ele teria agora que esperar que aquele casal saísse dali para ele penetrar no mar e dar fim a sua existência. Consultou seu relógio. Passava da meia noite. Sentou-se em uma das palapas. Grandes invenções mexicanas. Tequila e palapa...

Bebeu mais uma taça da champanha e sentiu que aqueles dois não iriam arredar pé dali tão cedo. Estavam seduzidos pelo barulho do mar e aquela lua em quarto crescente ou decrescente, que postava-se a frente deles. Pareciam hipnotizados com o rastro prateado sobre a superfície oceânica. Era realmente arrebatador. Voltou a consultar seu relógio. Passaram-se quinze minutos e eles permaneciam de mãos dadas. As vezes beijavam-se outras abraçava-se. Não ia funcionar. Pelo jeito iriam fazer bodas de prata e não lhe dariam a privacidade que necessitava para suicidar-se. Sim privacidade. Suicídio é coisa séria e para ser levado a efeito de forma solitária. Foi ai que lhe veio em mente o fato que talvez seu corpo nunca viesse a ser encontrado. Este é o problema do mar. Seja ele do Caribe ou do Mediterrâneo. Te leva para onde quer e no caminho você não está livre de ser abocanhado por um tubarão.

O American Express e suas quatro ex-mulheres achariam que ele entrara como México a dentro e desaparecera para viver em alguma republiqueta da América do Sul. Ameaçara a Margareth em uma oportunidade, ao negar-lhe a pensão ao dela se separar naquele verão em Acapulco. A desgraçada estava dando para o instrutor de tênis e ao ser flagrada armou um escândalo para reverter toda a situação. E o pior é que a reverteu... Como não pensara nisto antes. Mar era realmente um problema. Seu corpo poderia não ser achado e aquelas quatro vampiras de sapatos altos, não pagariam rapidamente por seus pecados e suas dividas. Levariam anos, a espera da certeza de seu corpo ser encontrado. Que mancada! Viajara todo aquele chão e agora chegava a conclusão que sua opção não fora a perfeita. Talvez sua terceira mulher estivesse a razão: ele era uma besta! Não é a toa que com ela casara...

Mas havia a piscina... Olhou para trás. Afinal quem não tem mar, caça com piscina. Ademais, suicidar-se em águas doces, salgadas ou cloradas não iria fazer a mínima diferença. E aquele baita hotel tinha duas. Duas enormes e compridas piscinas. Uma nem tão comprida, mas pelo menos reservada aos clientes reais como ele. Não importa. O importante é que eram igualmente fundas. Levantou-se, subiu as escadas com a garrafa e o cálice em suas mãos e chegou ao patamar superior.

Macacos me mordam! Eram iluminadas a noite. Se alguém estivesse em uma das varandas, o veria suicidar-se e poderia chamar por socorro. Seria por demais ridículo ser retirado da piscina ainda vivo e depois de ter dito a todos que ganhara na loteria. Mas quem estaria àquela hora da noite na varanda? Só um maníaco. Mas apenas maníacos iriam pagar o preço daquele hotel. Seis diamantes... Sua torre, a cinco, estava cheio deles. Caminhou em direção a dois. Remediado dormia cedo.

- QUE MERDA!

Onde a desgraçada da piscina tinha seis pés de profundidade o que equivaleria a um homem de 1,82 de altura havia igualmente muita luminosidade. Na extremidade, onde a visão de quem estivesse na torre 1 era parca, estava destinada o espaço das crianças, a parte rasa da mesma. Tinha que ser ali mesmo em frente a dois. Pelo menos não parecia haver ninguém por perto. Deu uma geral. Todos deviam estar recolhidos. Pouquíssimas luzes acesas. Hora de agir. Pousou a garrafa e o cálice ao chão, olhou novamente ao redor para se certificar que ninguém estava na espreita e iniciou seu descenso ao fundo da piscina. Iria afundar que nem o Titanic. A água estava fria. Tremeu do fio do cabelo ao dedão do pé. Seis diamantes e a piscina não era sequer aquecida.

Mas deixou de frescura e foi deixando seu imenso corpanzil afundar lentamente.

- O que o senhor está fazendo?

Assustou-se. A voz era de criança e o corpo também. Logo, tratava-se de uma criança. Encarou o menino. O que crianças daquela idade estariam fazendo por ali a aquela hora da noite? Não tinham pais? Que aquele guri estava aprontando ali sozinho, na beira de uma piscina? Tinha a intenção de igualmente afogar-se?

- Vá procurar seu pai! – ordenou com tom de pouco amigos.

- É o que estou fazendo. O senhor não o viu?

O desgraçadito” devia ser argentino. Faltava-lhe um dente na arcada superior e seus olhos estavam vermelhos como recém chorosos. Não tinha mais que oito anos. Era franzino, remelento e com cara de argentino. Trajava uma camisa surrada de um time de seu pais. Azul, com uma barra amarela. Fraco gosto cromático.

- Não.

- Então me ajuda a procurá-lo?

Negar-se faria aquele filhote de Maradona chorar ou quem sabe pentelhá-lo pelo resto de sua existência, que ansiava apenas por ser breve. O jeito era concordar e se livrar daquele chato.

- Talvez esteja no fundo da piscina. Vou procurar e volto já.

Estava gordo. Não conseguia submergir com facilidade. A força de suas banhas o fazia voltar a tona antes que seus pulmões cedessem.

- Achou?

Era o pentelho do guri. Será que perdera seu game-boy?

- Ainda não. Vá a outra piscina e veja se ele está por lá. Deixa que por aqui procuro eu.

- Tenho medo do escuro. Não quero ir lá sozinho.

Que mala sem alça era aquele bastardinho.

- E como veio até aqui?

- Vi o senhor e me senti com coragem.

O guri tinha resposta para tudo. Devia ser filho de político ou advogado.

Começou a sentir frio. Se não se afogasse logo, talvez morresse de pneumonia. Uma vontade imensa de urinar estava tomando conta de seu ser. Comprimiu as pernas. Mijar ali? Mas aí já era muita sacanagem. Urinar na piscina era coisa de desclassificado. Se bem que morrer nela, era uma sacanagem ainda maior. No mínimo interditariam a mesma e isto deixaria os hospedes alucinados, pois, estava programado 36 graus para o dia seguinte.

Sair da piscina para catar um banheiro lhe pareceu igualmente ridículo. Mas que merda aquela vontade de urinar logo agora que estava a beira de dar fim a sua vida. Pensou melhor: porque estaria se preocupando se o seu encontro com a morte tardaria não mais do que alguns minutos. Cedeu a pressão de sua bexiga. Seu rosto desanuviou-se
- Paeeeeeee

Seguiu a direção dos olhos do menino. O paieeeeee era branco, alto, forte e tinha cara de poucos amigos. Esquecera-se de fazer a barba e tinha um dos botões de sua camisa, perdidos. Divorciado ou viúvo. Tinha cara de argentino, tipo de argentino, cheiro de argentino. E como todo argentino que dera certo nascera no Uruguai. Mas mesmo demonstrando ter posses, parecia um búfalo que acabara de ser rejeitado sexualmente por uma de suas búfalas. Os dois homens entreolharam-se. A reação do que acabara de chegar foi imediata:

- O que o senhor está fazendo?

Tal pai tal filho. Pareciam pertencer ao mesmo gravador.

- Mijando.

Foi a resposta sem sentido, mas cheia de sentido que conseguiu proferir. Talvez a proximidade da morte o estava fazendo pela primeira vez em sua vida, a falar a verdade.

- Mijando? E isto é lugar de se mijar, ô cara? E na frente de meu filho?

- Não me venha me dar lição de moral seu abandonador de crianças.

O grandão arregalou seus olhos. O que um merda ridiculamente baixinho, gordo e careca estava tentando insinuar? Que ele abandonara seu próprio filho? Aquilo não iria ficar por ali só.

- Eu acho que você está querendo que eu lhe quebre o nariz.

- Não será preciso se dar a este trabalho. Pois saiba, que eu queria apenas me suicidar, mas este pentelho encravado do seu filho não está me deixando. Agora que se encontraram, porque vocês não levantam acampamento e me deixam acabar com minha vida?
- Acabar com a própria vida? Numa piscina? Um pelotudo! Com um oceano a sua frente escolhe uma piscina e agora culpa meu filho por não ter ainda conseguido se suicidar.

- Trata-se de uma história longa, mas resumindo gostaria de ter certeza que irão achar o meu corpo. No mar não teria esta garantia. Ademais não consegui me suicidar no mar, porque...

- Que loucura é esta que o senhor está dizendo?

A voz era feminina. O sotaque brasileiro. E a dona da mesma era a que a poucos minutos era amassada por seu jovem marido, abaixo na praia. Os dois haviam resolvido subir justamente naquele momento.

- E mijando na piscina? - atalhou aquele que a amassava a pouco.

Olhou para ambos. Se queriam a verdade a iriam ter!

- Vocês não sabem o que é um casamento e estão querendo agora me aplicar uma lição de moral. Pois saiba você – e disse olhando fundo nos olhos castanhos do jovem que acabara de entrar em cena – daqui alguns anos será você mesmo que estará mijando em alguma piscina e tentando suicidar-se. Pois esta que agora você venera e o trata qual um príncipe, se tornará amarga, cobradora e terá dor de cabeça toda hora que você quiser sexo. E depois que você lhe der um filho, lhe mostrará sua verdadeira face. Vai lhe tirar até o último centavo de sua conta bancária. Falo isto com conhecimento de causa. Na lua de mel elas são esplendidas. Seja aqui ou no Tahiti. Mas no frigir dos ovos nenhuma vale a merda que cagam. Não é a toa que saíram de uma costela. E nunca fizeram parte da santíssima trindade. Deus preferiu uma pomba a uma mulher.

- Paeeeee.

- Cala a boca pentelho. Não vê que estou falando? As quatro com que me casei agiram todas de uma mesma forma. Elas aprendem com as mães desde garotinhas.

Os quatro coadjuvantes da cena se entreolharam. Aquilo estava mais parecendo uma cena de filme de Fellini do que propriamente a realidade que estavam sendo obrigados a participar. Um mijão suicida que detestava o casamento. Provavelmente um corno. Certamente um baixo caráter.

- Olha cara, eu só não vou aí dentro te cobrir de porrada, pois, você vai se suicidar e assim poupar meu trabalho! Mas nesta coisa de mulher, você está certo. São todas iguais.

- Porco chauvinista - como seu companheiro permanecesse calado, complementou irada – E você Raul não diz nada? Está concordando com este suíno mijado e com este cafajeste cucaracho?

Raul que tinha a metade do tamanho do Gardel e não estava afim de se molhar, pegou sua mulher pelo braço e sussurrou a baixa voz:

- Querida, o senhor está a beira de suicidar-se...

- Que se mate. Ele sim não vale um minuto sequer de nossa atenção. Vamos subir.

- Você vê. Ela já tem as rédeas do casamento. Você não passa de um polichinelo no picadeiro da vida de sua esposa. Que vai o trair com o primeiro professor de tênis.

Instintivamente Raul largou a mão da esposa sem nome.

- Pai porque o senhor me abandonou como o senhor disse?

- Cala a boca pentelho – E por vias das dúvidas assegurou-se de fazê-lo com um tapa na boca do menino.

O menino, o que menos entendia de toda aquela pantomina e que tinha sua mão até ali atada a de seu pai, fê-la desprender-se. Estava desiludido com seu pai. Queria apenas subir para seu quarto. Correu para dentro do seis diamantes. Seu progenitor não tinha dúvidas que o mijão à sua frente tinha mesmo que morrer. Era um criador de discórdias! E onde já se viu mijar numa piscina na frente de crianças. Que exemplo estava ele dando para seu filho? Seria um pedófilo? 

A recém casada arrependera-se da repentina piedade que fora acometida para com aquele grosso que acabara de colocá-la no mesmo patamar das galinhas com quem foi casado. Também um traste gordo e careca como este o que poderia ter como esposa? Qual a mulher que iria para a cama com aquilo? Só puta! E quem ele pensava que ela era? Uma pobretona que nem aquelas que casaram com ele? Pois, ficasse ele sabendo que ela era a rica na união. Pobre era o seu marido. Deixou isto claro num português, que ele na piscina, mijado não pode entender, muito menos o pai irado que agora seguia o caminho de seu pentelho mirim.

Raul encrespou-se. O que Sheila pensava que ele era? Um polichinelo no palco de sua riquinha existência? E seriamente passou a pensar duas vezes sobre o que tinha acabado de fazer na tarde anterior na igreja da Glória. Seriam todas elas iguais? Quem nem feijoadas? Boas no inicio, pesadas no final?

Em segundos, os quatro cavalheiros que visualizavam o apocalipse desapareceram de suas vistas. A única que manteve até o final seu olhar de maçarico para com ele foi a mulher. Os demais simplesmente o ignoraram. História de sua existência.

Mijado, ignorado, mas pelo menos sozinho, sentiu que era hora de dar um ponto final em seu destino. Já que lhe era impossível afundar, boiaria. Porém de cabeça para baixo.

Olhou para a lua que assistia a tudo aquilo impávida. Altaneira como sua segunda mulher. Sem luz própria como a terceira e distante como a primeira e redonda que nem a última. Olhou a volta da mesma. O céu permanecia cheio de estrelas, já que até as nuvens haviam se negado a comparecer a aquela que seria sua cena final. Hora de ir desta para uma outra melhor.

Sorriu. Terminara com chave de ouro sua existência. Possivelmente acabara com um casamento, certamente marcara de forma definitiva o relacionamento entre um pai e um filho, mijara na piscina de um seis diamantes e iria deixar um pepino enorme para o American Express descascar e outro para as suas quatro hidras sanguinolentas engolir. Restava-lhe agora apenas morrer. Boiou ao contrário.
E assim se foi para sempre, pelo menos desta vez, feliz da vida. 


quinta-feira, 11 de março de 2010

O MORCEGÃO DE VILA VELHA


Carlos Eduardo Prates de Oliveira, sentado atrás daquela pequena mesa podia se sentir, o mais infeliz entre os quase vinte jornalistas alocados naquele andar. Era o seu primeiro dia no grande jornal. Seu pseudônimo fora vendido e alardeado durante uma semana, juntamente com aquele seu currículo fajuta, escrito por gente que conhecia todos os truques da mídia, em seus mínimos detalhes. Ele não tinha nome, ele não tinha sequer sexo. A ele fora dado o pseudônimo de uma mulher.

Eram os anos 60. O Brasil passava por uma transformação e os mineiros felizes com seu conterrâneo JK. O simpático pé de valsa levara adiante o seu sonho de construir uma nova capital, Brasília. Mas todos ansiavam por coisas ainda mais novas. E a doutora Elizabeth propunha-se ser um deles. Mas em contrapartida era, igualmente, de se ficar enojado como o público podia ser enganado da forma como certa parte da imprensa o fazia. Pior ainda, como ele estava enganando a si próprio, para poder manter aquele estilo de vida ao qual acostumara-se. De que adiantara ter se formado em literatura inglesa, em história e jornalismo? Não estava conseguindo emprego no cinema, no teatro, na televisão, no rádio e na mídia escrita. 

Culpa sua. Jogara tudo por água abaixo por ter dormido com a mulher de um grande editor. Queimara-se no mercado de verde e amarelo. Tivera que pastar por meses e a única posição que conseguira para si, fora a de consultor sentimental de um jornal marrom, mas que pagava bem, e segundo o amigo que lhe conseguira o emprego e igualmente ali trabalhava, o mais importante de tudo: em dia.

Elizabeth Loren Kennedy. Que nome arrumaram para ele. Inglesa, psicóloga, com doutorado em Harvard e uma pós-graduação em Yale. A ordem inversa teria sido melhor, mas felizmente, aqui no Brasil, não sabiam da diferença. E ele que nunca passara de Fortaleza e nem conhecia os Estados Unidos. 

Nascera, crescera e se formara em Minas. Fizera duas viagens ao norte e ao nordeste e em apenas uma oportunidade fora ao Rio de Janeiro e outra a São Paulo. Pisara na jaca junto a “cariocada” e voltara a terra que nascera, com o rabo entre as pernas, a procura de sobrevivência. E de uma hora para outra, transformara-se em psicóloga com os mais importantes e renomados cursos de aperfeiçoamento naquele setor. Xavecada da grossa! Era o preço que estava tendo que pagar por comer a mulher errada. Até que seu nome fosse esquecido, tinha que ter duas refeições diárias e um teto para dormir. E se era de Elizabeth Loren Kennedy que iria atacar, que assim o fosse. Estava pronto para enfrentar as cartas que um dia viriam a pousar a sua frente.

Passou o espanador em sua máquina de escrever. Não era nova, mas também, não de se jogar fora. Como Alexandra, a mulher que o levara ao cadafalso.

- E ai, já recebeu alguma?

Olhou para o amigo e salvador da pátria. José Augusto o chefe do setor de classificados. Sorriu:

- Estou pronta para o que der e vier.

- Este é o espírito, doutora Elizabeth. Dias melhores hão de vir. Dê um tempo que tudo vai se ajustar como antes. Não dou dois anos e você estará assinando com o seu próprio nome criticas de livros e cinema. É só ter calma.

- Obrigado mais uma vez. Estou aqui a espera. O menino da correspondência pelo que soube passa as dez. Está por chegar.

E quem lhe informara, o informara certo. Miquimba, o pretinho sestroso e rápido qual um raio, passou jogando duas cartas sobre sua mesa de trabalho. Mas a caminho de outras mesas, não deixou de saborear sua primeira gozação:

- Bota para quebrar, ô Beth.

- Ciao Beth, te deixo com os problemas sentimentais alheios. – despediu-se o amigo.

O que havia de se fazer...

Carlos Eduardo fitou aquelas duas cartas que agora faziam parte de sua existência. Duas pessoas que confiariam em seus conselhos. Ou melhor da pós graduada Elizabeth Lauren Kennedy. Respirou fundo, encheu seus pulmões de ar rarefeito e tomou coragem antes que desistisse. Abriu a primeira. Era de uma mulher. Podia sentir pela folha em que foi escrita e pelo tipo de letra constante na mesma. Uma mulher jovem.

Doutora Elizabeth,
Desculpe a franqueza, mas não sei se uma mulher de sua estatura, procedência e formação profissional possa resolver o meu dilema, ou melhor o meu problema, pois, a decisão crucial eu já tomei e assumi de corpo e alma. Diria que mais de corpo do que propriamente de alma...

Sou de família mineira, conservadora, rica e de forte projeção social. Tenho dezesseis anos, sou vista como virgem e prodígio, por meus pais, que a mim nada negaram. Mas desde os doze anos me achei uma garota diferente. Nunca fui atraída pelos rapazes. Sempre me senti melhor em companhia feminina. Namoro um rapaz de ótima família, quatro anos mais velho do que eu e sinto que há muito gosto entre ambas famílias que nos casemos. Como, igualmente, tenho certeza que ele gosta de mim.

Todavia, de uns tempos para cá ele vem tentando forçar uma situação. A senhora entende o que estou falando. Quer sexo. Tenho fugido do comprometimento com a desculpa que sou virgem. Ele entende, mas não aceita. Como lhe disse anteriormente não sinto o menor prazer em qualquer atividade sexual com ele. Tenho nojo de beijá-lo e me sinto mal quando ele acaricia meus seios e minhas partes íntimas. Arrumo todo o tipo de desculpa e sinto que elas já não surtindo o efeito de antes. Ele está se impacientando.
Antes de pedir por seu conselho gostaria que a senhora tomasse conhecimento da segunda parte de minha história. Conheci no colégio uma moça de um outro estado e nos tornamos muito amigas. O tempo nos fez ver que éramos almas gêmeas, uma feita para a outra. Não conseguimos ficar um minuto sequer uma longe da outra. Minha família gosta dela e inclusive perguntou-me porque não fazê-la minha dama de honra, se eu resolvesse casar com o Cesar. A senhora há de aceitar que este não é o verdadeiro nome de meu namorado por razões óbvias. Pois bem, semana passada, bebemos um pouco mais, e eu e esta amiga acabamos em minha cama. Foi a mais significativa noite de minha existência. Senti coisas que supunha não ser possível sentir e sei que a recíproca foi verdadeira. Estamos definitivamente apaixonadas e decidimos contar para minha família e para meu namorado, a felicidade em que vivemos. Sinto que o Brasil está avançando em todos os sentidos. Todavia, ao lermos que a senhora assumiria esta posição no jornal, achamos melhor primeiro consultá-la. Afinal a senhora viveu em países mais desenvolvidos onde as mentes parecem ser mais abertas.

Acreditamos que não possa haver nada de errado em duas pessoas de mesmo sexo se amarem. Tabus precisam ser quebrados e nós, na flor de nossas adolescências, estamos prontas a fazê-lo. Contamos com o seu auxílio. O que a senhora nos aconselha a fazer?

Virgem das Mercês. 

Que pepino. Lesbianismo freudiano. E logo na primeira correspondência. Pensou um pouco. Seu editor, o senhor Alencar fora claro. Queria uma coluna para frente, com muito otimismo e cheia de modernidade. Nada de baixo astral e comprometimentos, pois, de processos o jornal já estava cheio até a tampa. Encarou sua nova companheira, a Remington à sua frente, e partiu faceiro para a sua primeira resposta a uma consulta sentimental.

Minha cara Virgem das Mercês,

Você tem toda razão. Não existe nada de errado em duas pessoas do mesmo sexo se amarem, porém, você igualmente há de convir que nem todos pensam desta forma. Principalmente em Minas. Nos Estados Unidos, onde me pós graduei, existem movimentos de emancipação sexual, tanto na costa oeste como na costa este. Mas estão ainda em seu inicio. Esta mudança de comportamento leva tempo e são necessárias gerações para que se cristalizem em novas leis morais de cada povo. O pioneirismo nem sempre soa salutar. Paga-se um preço pesado pelo mesmo. Talvez sua família e seu noivo não aceitem esta sua nova forma de se sentir feliz. Mas creio que será a sua própria consciência que deverá decidir o rumo a tomar.
Não se deixe abater e lembre-se que a melhor forma de se estar bem com sua família, seu namorado e sua amiga é primeiro estar feliz consigo própria. Mas não esqueça que talvez se torne impossível de se agradar a todos.

Pronto! Não dissera nada com nada. Enfeitara o maracá e saíra de fininho. Realmente aquilo poderia dar certo para ele. Era só escrever bonito, demonstrar altivez e deixar que os outros tomassem suas próprias decisões. Tirou a página da máquina e a colocou na cesta de assuntos a se publicar. Agora era partir para a segunda. Sorriu ao colocar nova página na máquina.

- Pronta para o prelo! – exclamou otimísta.

Sopa no mel... Abriu animado a segunda carta. Era de um homem. Ou melhor de um rapaz.

Cara Doutora Kennedy, 
Não sou uma pessoa erudita e muito menos afeita a escrever cartas. Mas creio que o problema que vivo deva ser endereçado a senhora que parece ter muita experiência em casos como o meu. Tenho 25 anos, trabalho duro e prezo a minha vida e tudo que consegui com o suor de meu esforço.

Vou direto ao assunto. Gosto de uma menina. Ela me parece boa, honesta e virgem. É de boa família. Com bem mais dinheiro do que a minha e sinto que os pais delas me olham com extrema reserva. Talvez pensando que queira estar dando o golpe do baú. Não é o caso, como nunca o será. Mas este também não é o problema que me traz à senhora.

Tenho tentado junto a minha noiva convencê-la a testarmos nosso amor e consumá-lo antes de nosso casamento. Penso que é melhor se ter uma idéia antes do que possa ser depois e assim não cometer os erros de outros e tudo um dia acabar em um desquite. Como o acontecido com meus pais. Ela não coaduna desta minha idéia e creio que estamos a beira de um impasse.

Confesso que possa existir uma outra razão para ela estar hesitando. Pode não ser mais virgem ou quem sabe ter um outro amor. Se assim o for, teria que vingar minha honra em sangue.bO que a senhora me sugere a fazer?

Morcegão de Vila Velha.

Se pudesse responder aquilo que, realmente, pensava, Carlos Eduardo certamente iria contrariar o que seu editor lhe prescrevera. O negócio era mandar a idiota por espaço com seu hímem incólume. Tinha um lema que aplicava para si próprio. Casar era que nem comprar um carro zero quilômetro. Não se podia fazê-lo sem testar a máquina. Mas tinha que remar conforme a maré, pois, a última coisa que poderia arriscar era perder aquele emprego. Partiria para outra vasilinada.

Caro Morcegão de Vila Velha,

Primeiramente, diria que honra alguma deve ser defendida com o sangue de quem quer que seja. Já passamos da era medieval. Logo, vamos a parte sensata de sua missiva. Não posso dizer que você não tenha a sua razão. Mas essa é tão somente sua. É uma ótica masculina e como tal moldada na forma prática em que os homens encaram suas existências. Como mulher que sou, digo que a mente feminina é distinta. Pensa de uma forma diferente. Diria que em muitas oportunidades, diametralmente oposta. 

Menos prática e mais romântica. Agora, ponha-se no lugar de sua noiva. Se ela for fazer o aludido teste “da máquina” com todo aquele que com ela almeje casar, quando o encontrar poderá não ser mais um carro zero quilômetros e sim um já bem rodado. E aí eu pergunto, como fica o machismo de vocês? Aceitariam um carro rodado que não satisfez a outros motoristas?

As coisas não são simples. Tenha primeiro bastante certeza de seu amor para com a sua noiva é real, pois, ao contrário do que você afirmou em sua missiva, amor não se testa. Amor é um sentimento que está dentro de si. Você tem ou não tem e quer dá-lo e ser retribuído em relação a uma determinada pessoa.

Depois de ter esta certeza, convide sua noiva para uma conversa e exponha seu caso de maneira franca e aberta, pois casamento não tem devolução ou garantia de bom funcionamento por determinado prazo. Casamento, é para sempre. Carro se muda de quatro em quatro anos.

Sorriu ao terminar, Realmente era muito mais fácil do que ele suponha no inicio. Juntava-se um bando de palavras bonitas, tentava-se dar um mínimo senso ao raciocínio e jogava de volta tudo nas mãos daqueles que haviam escrito, eximindo-se assim do problema que na verdade nunca fora de dona Elizabeth. Afinal, estavam em Minas Gerais, onde politicamente todos gostavam de estar corretos. Era isto aí. Resolveu que Elizabeth Loren Kennedy, de uma vez por todas, seria a versão feminina de José Maria Alkimin.

Os dias se passaram e cartas e mais cartas eram trazidas pelo Mikimba que as jogava em sua rápida passada, na mesa de doutora Elizabeth. Sua coluna colara. Ia de vento em popa. Eram cartas até de outros estados, pois, a fama da cursada psicóloga estava começando a atravessar fronteiras. Todos pareciam felizes com as respostas de Doutora Elizabeth. O editor, os leitores e ele próprio. Ganhara um aumento e consolidara seu prestigio perante seus companheiros de trabalho, que não mais o tratavam qual uma pilhéria. Como disse o Juvenal Mascarenhas da página policial, “o cara sabe das coisas”, ou mesmo a Letícia Petrossiam das sociais, “ele tem alma de mulher”, mas que depois devidamente testada em sua própria cama, aquiesceu “que era igualmente possuidor de uma extraordinária força máscula”.

Tudo ia as mil maravilhas, quando um dia no café o Juvenal Mascarenhas veio a ele com a última edição em suas mãos. Parecia preocupado, mas manteve o clima afável:

- Você leu o que publicamos ontem na página policial?

Carlos Eduardo não quis parecer esnobe e dizer a verdade. Não lia aquele pasquim. Quanto mais sua página policial. Preferia enfurnar-se, em suas noites vazias – que na verdade eram muito poucas - em Ibsen, Proust, Chaucer, Byron ou mesmo Sheakespeare. Nunca em Juvenal Mascarenhas. Mas tinha que maneirar, pois, a maré estava muito boa para si e ele não precisava colecionar mais inimigos. Já bastava os que fizera no Rio de Janeiro, por causa de uma boa trepada. Que na verdade não havia sido nem tão boa assim.


- Juro que não tive tempo ainda de ler. Estive estudando umas cartas que levei para casa...

- Não precisa se justificar. Sei que sua coluna está pegando fogo e fico feliz com isto. Ninguém parece interessado mais na página policial. Tem crime todo o santo dia e todos soam iguais. Mudam apenas nomes e locais. A tua funciona. Símbolo da modernidade. Mas para mim está ótimo, pois, garante vendagem e com isto uma garantia a mais para com todos os nossos empregos. Jânio vem ai e penso que a coisa possa ficar preta para o nosso lado. O homem é maluco e pode varrer com toda a imprensa. Principalmente com o nosso jornal que infelizmente apoiou o general Lott. Mas acho bom você dar uma olhada e depois dê uma passadinha pela minha mesa. Assunto de seu interesse.

- Certamente o farei, tão logo terminar meu café.

Assunto de meu interesse??? Duvidava.

Juvenal se afastou. Era muito jovem e puxava de uma perna. Diziam ter sido policial dos bons que levara um tiro de um marido traído, mas poderoso politicamente e com isto jogara pela janela uma profissão no qual era tido como um meteoro. Uma lástima... mas para sua felicidade, o senhor Alencar era seu tio e desta forma arrumou um emprego pelo menos naquilo de que entendia.

Mulheres sempre um problema na vida dos barba azuis: Numa sociedade fechada como a mineira, as que gostavam e podiam dar, eram normalmente casadas, falavam muito e deixavam rastros. Uma combinação letal para os provedores da felicidade alheia, como ele e o Juvenal, numa cidade provinciana como Belo Horizonte, que era bela, mas não parecia ter horizontes.

Que saco ter que ler matéria policial, mas o Juvenal era um cara legal. O faria e depois passaria pela sua mesa para dar qualquer satisfação. Aprendera desde cedo que jornalista gosta de ser lido e adulado. Ele e Juvenal, embora ainda bastante jovens, não seriam exceções.

A medida que ele lia a matéria sobre um assassinato de uma menina da alta sociedade, sentia que o caso da Virgem das Mercedes tinha talvez algo a ver com a personagem principal daquela tragédia. Nomes e idades eram diferentes, mas quem diria a verdade em uma carta que seria publicada? Passou a ter mais atenção aos detalhes da noticia. Estava bem escrita. De forma objetiva e clara. Tinhas as impressões digitais do Juvenal. Quando terminou, levantou-se e foi ter a mesa do companheiro de trabalho. Sentiu que durante o seu trajeto, muitos foram os olhos que o encararam. Todavia, desta feita, de uma maneira distinta das anteriores. Havia uma certa pincelada de ódio nos femininos e de reprovação nos masculinos. Será que todos haviam sacado as vitimas naquele crime hediondo? Sentiu ao chegar ao final do corredor que sim.

- Li e gostei. Você escreve muito bem e dá sempre um sentido psicológico de criminologia em seus artigos. Notei isto em vários outros.

Ele sorriu ao receber o jornal de volta. Porém, em sua face estava escrito que sabia que ele não havia lido sequer sua página policial até aquele momento. Juvenal era astuto e não parecia ser uma pessoa fácil de se enganar.

- Poupe seu elogios. Agradeço-os mas não massageiam meu ego. Nasci policial e policial o seria, se não tivesse escolhido amar uma mulher que já tinha dono... – Pelo menos ele a amou, com Alexandra fora apenas sexo - ... mas isto é outra questão.  Vamos ao que interessa. Por acaso você não reconheceu na vitima alguém, que lhe escreveu uma carta, pedindo ajuda?

Estava contra a parede. Não funcionaria tentar mentir. Não com um cara perspicaz como o Juvenal. E afinal se a metade de seus colegas já parecia ter matado a charada, porque negar? Nada tinha a temer. Ou teria?

- Confesso que vi similaridades com minha primeira paciente – respondeu com cara de inocente e fazendo questão de com os dedos demonstrar aspas na última de suas palavras.

- Similaridades... Como soa poético vindo de você, doutora... Pois saiba, que existem mais do que similaridades meu caro Carlos Eduardo. Está na cara que é ela. Tudo se encaixa. A família, a amante lésbica de outro estado, o convite para ser sua dama de honra no casamento por parte dos pais e o papo que ela teve com os mesmos e o namorado com jargões como “Acreditamos que não possa haver nada de errado em duas pessoas de mesmo sexo se amarem” E que tal esta “Tabus precisam ser quebrados e nós na flor de nossas adolescências estamos prontas a fazê-lo”. Isto não lhe toca um sino?

- Ela assim o escreveu em sua missiva.

- Porra! Porque vocês jornalistas de formação teimam em usar palavras mortas. Aonde já se viu chamar carta de missiva? O que esta pobre menina escreveu foi uma carta! E a infeliz foi assassinada, com sua namoradinha, pelo ex-namorado que “quis lavar sua honra em sangue”, como o dito pelo Morcegão de Vila Velha - fora ele, agora, a utilizar-se com os dedos, do artifício das aspas.

Juvenal pareciadesnorteado. Mas porquê? O que ele tinha a ver com uma desmiolada tentar ser o exemplo para uma humanidade que não estava ainda pronta para sequer discutir o assunto, que dirá analisar exemplos? O Morcegão não era o namorado assassino, pois, se o assim o fosse diria. Fora apenas uma coincidência o fato dele querer lavar sua honra em sangue. Aliás, um fato que estava se tornando uma constante entre maridos mineiros traídos. Ele, ou melhor a doutora Elizabeth, tentara demover tanto o Morcegão quanto Maria Helena Ramos de Albuquerque Lima... Tinha a consciência tranqüila. Olhou novamente para o jornal. A virgem tinha um nome composto e um sobrenome que mais parecia um trem e agora uma face... Tinha a expressão de um anjo, agora gravada em sua mente, para sempre. Tinha que desfazer a inquietação:

- Desculpe-me mas não vejo razão para você se exasperar...

- Ah! Quer dizer que a doutora Elizabeth não vê uma razão para eu me exasperar... Olha aqui Carlos Eduardo, pode ser que lá nas universidades você cursou não tenha tido tempo de lhe ensinar o que eu aprendi nas ruas e nas sarjetas. O pai desta menina é poderoso e vai querer achar um bode expiatório. Nunca irá admitir que possa ter existido uma falha na educação em sua filha única. Que acobertou uma amizade que se transformou em mais do que íntima. Não vai levar em consideração que Maria Helena era mimada e que resolveu levantar a bandeira do lesbianismo no seio da católica família mineira. A falha nunca será dele. Terá que achar um bode expiatório.

- Mas o que eu tenho com isto? Eu inclusive aconselhei que ela...

- Carlos Eduardo, será que você se transportou definitivamente para o mundo fictício de sua doutora? Cara a garota era virgem. Não se dá conselhos a uma virgem. Principalmente a uma perturbada mental de dezesseis anos que acabou de assumir seu lesbianismo. Você escreveu que não vê nada de errado em duas pessoas do mesmo sexo se amarem. Que o mundo não está preparado ainda para o que ela está fazendo. Que ela deve agir por sua própria consciência. Pois é, ela agiu e hoje está morta! - Juvenal tinha razão... - Virgem é alguém que está fora da realidade. Uma pergunta: quantas virgens você descabaçou? - na realidade não se lembrava de nenhuma... - Pois é, provavelmente nenhuma. Eu também. Virgens são seres de outro planeta, amarguradas e descontentes com a sua própria existência. Por isto, a maioria depois que se casa, passa a dar mais do que xuxu na serra. E nós é que acabamos de pagar o pato com seus maridos traídos...

Conhecia bem aquela história, mas não gostaria de interromper ao Juvenal. A coisa parecia mais grave do que preverá inicialmente. Que confusão  aprontara!

- ... pois é minha querida doutora Elizabeth, teremos que enfrentar um problema, maior que nós mesmos.
- Teremos? Você quer dizer eu e a doutora?

- Não. Eu e você - Juvenal certificou-se que ninguém estava ligado naquela conversação, mas mesmo assim abaixou o tom de sua voz. Olhou firmemente nos olhos de Carlos Eduardo e decretou a nova surpresa de toda aquela esdrúxula situação: - Eu sou o Morcegão de Vila Velha - pela primeira vez baixou os olhos e perdeu aquela sua característica objetividade.

- Escrevi de sacanagem aquela carta. Queria ser o primeiro. Uma espécie de boas vindas, pois, achei que não pingariam tão cedo, cartas em sua caixa postal. Brinquei com fogo e para variar amanheci mijado.
Não seria queimado?

- E daí. Ninguém vai ligar seu nome ao pseudônimo que você criou e ademais o Morcegão não matou ninguém, nem influenciou em nada no crime cometido contra Maria Helena. Bem, diríamos que influenciou em parte com aquela história de lavar a honra em sangue...

Pobre Maria Helena. Tinha um nome... uma face... uma família... quatro tiros na cabeça e sete palmos de terra sobre si...

- Antes fosse assim. Na policia todos sabem quem é o Morcegão de Vila Velha. Era meu apelido na chefatura.

Mas Carlos Eduardo tentou ainda assim vislumbrar o lado positivo da coisa:

- Espero que os pais delas tenham bom senso...

- E que meu tio, segure a barra de nossos empregos...

- Que bom que encontrei a ambos – era o editor, o senhor Alencar, que os interrompia – tem alguém cercado de advogados por todos os lados, a procura do Morcegão de Vila Velha e da doutora Elizabeth Loren Kennedy. Vocês podem imaginar quem seja, não? 

    

terça-feira, 2 de março de 2010

ELIAS O HEMORROIDÁRIO

Elias era um garoto bonito. Bonito até demais. Cheio de vida e conhecido nas redondezas como a ilha. Sim exatamente isto que vocês leram, a ilha. E não por ser recluso, anti-social ou mesmo solitário. Ele era assim reconhecido, pois, mantinha-se cercado por gatinhas de todos os lados. Mulher para ele era como pingo de chuva, caía a rodo. Na boléia de sua mota, havia passado o que de melhor havia da Glória à Barra da Tijuca. E sua vida era uma maravilha! Invejado por flamenguistas e mangueirenses ele vivia a sua vida sem empáfia e muito menos soberba. Era um cara simples e legal. Até que um belo dia, daqueles que não há nada para se fazer, resolveu ir a um médico para ver se poderia contornar um pequenino problema que vinha lhe atazanando a paciência. Principalmente quando na moto. E o inferno teve o seu inicio. Suas hemorróidas.

Aquilo não era concebível. Estava totalmente fora de questão. Afinal ele não tinha sequer 24 anos completos. Como poderia ter sido atacado pelas hemorróidas, ainda no inicio de sua vida? Logo, na flor da idade, quando fisicamente você está no pico de sua existência e com a pica funcionando a mil por hora. Comia a tudo e a todos. E agora aquele louco do Dr. Albuquerque vinha taxativamente decretar aquele horrendo diagnóstico. A culpa de suas hemorróidas eram aquele raio do computador e a porra de sua motoca. Sentou, hemorroidou! Triste destino. Elias de Mattos se transformara num hemorroidário por causa da Apple e da Kawasaki.

Que merda! Poderia ele acionar judicialmente qualquer das duas companhias? Poderia esta ação atingir o patamar de perdas e danos, morais e financeiros? Afinal cu é coisa séria!

Mas ele não poderia nunca supor, que o simples ato de se manter sentado, agiria como agente no desenvolvimento de veias varicosas na região anal. Para Elias, as razões básicas de hemorróidas seriam o esforço físico, a evacuação de fezes ressecadas, a obstipação crônica ou até o abuso excessivo de laxantes. Ele se certificara destes sintomas após a sua consulta, em suas pesquisas naquele que fora um dos causadores de seu declínio anal. A Internet... Era verdade que a grande realeza da estória da humanidade, fora igualmente atacada por problemas constantes de hemorróidas e isto era agora fácil de se entender. Passavam muito tempo sentados em seus tronos, ouvindo seus ministros e súditos e muitas vezes dali mesmo, resolvendo os destinos de seus impérios e reinados. Clinicamente segundo o Dr. Albuquerque, o ato de manter sua bunda estática por horas numa superfície plana que não deixe ventilar seu feófo, pode gerar hemorróidas. O pior de tudo é que Elias descobriu que o tratamento das hemorróidas era muito mais complexo do que ele inicialmente poderia supor. Não havia uma pilulazinha antiinflamatória capaz de fazê-las ceder instantaneamente. O problema tinha que ser atacado in loco, isto é, lá em baixo mesmo. Na dita cuja!

- E as gatinhas doutor?

- Problema algum. Seria um problema se você tivesse de olho nos gatinhos. Se bem que se este fosse o caso, não ficaria tanto tempo com seu traseiro na posição horizontal.

- Pó, sai dessa doutor! Desconjuro! Tô nessa não!

 E achando um pedaço de madeira bateu insistentemente até ter certeza que aquela praga não pegara. Parando de rir, o debochado doutor, que o vira nascer, complementou;

- Elias, o seu caso, graças ao bom Deus, não é dos mais cabeludos e por isto mesmo não será necessário a cirurgia ou a utilização penosa daquelas ligaduras elásticas mas é bem mais complicado que a média..

- E...

- E, meu velho é que acredito que o infra-vermelho seja inevitável. Ou então cirurgia ou a liga. Você escolhe.

- Cirurgia? To fora, doutor. Na bundinha de Elias Ilha Grande, marmanjo algum põe a mão. Que dirá Zé mané de bisturi ou ti-ti-ti de liga elástica. Tá louco Zé bedeu? Imagine doutor...

- Então?

- Pô, infra-vermelho é dose! Este corpinho que Deus fez, ficar agora num consultório médico horas a fio, com a bunda para o ar e com um aparelho emissor de raio infra-vermelho atochado no rabo. Tô gostando disto não!

- Mas lembre-se Elias, se este for realmente o caso, pelo menos estas desgraçadas seriam coaguladas, para posterior cicatrização num sistema de foto coagulação.

- Concordo Dr. Albuquerque. Sei que o senhor é considerado craque em doenças anais. Mas no cu dos outros, negão! No meu neca de pitibiriba. Neste que maínha passou talco, degenerado algum vai passar a mão.

- Você é que sabe, Elias.

- O homem é gênio em cu!
Garantira-lhe o Sebinho que um dia tivera uma infecção anal advinda de uma ameba instalada em seu intestino.

Mas cirurgia estava fora de cogitação. Ele podia ser o Pelé do reto, que Elias não ia concordar. Trataria-se com compressas quentes. Mas numa relação com sua noiva, lá bem na hora de gozar, as desgraçadas dilataram-se de tal maneira que ele simplesmente brochou.

- O que foi querido?

- As desgraçadas das hemorróidas. Agora toda vez que estou para explodir, são elas que explodem e acontece o que você acabou de presenciar.

- Então esta foi a razão de na última vez...

- E na penúltima também. Estas desgraçadas estão fazendo da minha vida um verdadeiro inferno. E agora este doutor que meu pai indicou e o Sebinho garantiu que é o Pelé das hemorróidas quer castrar meu cu.

- Mas se não há outro jeito, querido...

- Tem que existir.

- Espero, porque na quarta brochada você pode se acostumar e virar cacoete. Você me entende, não benzinho.

- Se você acha que com compressas quentes e ervinhas familiares a sua situação vai melhorar, tire o seu cavalinho da chuva, Elias. Vai ter um dia que você não terá nem condições de evacuar.

- E trepar, doutor?

- Um dia, quando estiver pronto para gozar, elas se avolumam e você brocha. Acredite no que eu estou lhe dizendo.

Ninguém precisava lhe provar o fato. O importante é que parecia que o Dr. Albuquerque sabia das coisas, pensou Elias que de desesperançoso passou ao estágio de desesperado. Se ele parasse de cagar, para a onde a merda iria ir? Para o cérebro, como seu pai sempre lhe dizia ser o mesmo formado? E de gozar, para onde sua noiva lhe mandaria? Será que aquele homem que o virá nascer, ia desvirginar aquele anus que ele tratava com tanto carinho, sem papel, só no bidê? Faca ou Infra-Vermelho? Que dilema.

E o cu foi para o ar. Trinta minutos, três vezes por semana. Mas isto não foi nada. Depois de várias aplicações, para a tristeza de Elias ficou constatado que as malditas, não haviam coagulado e conseqüentemente não regrediram na proporção desejada pelo Dr. Albuquerque. Ao contrário, evoluíram e se proliferaram. Tratavam-se de hemorróidas galopantes, que cresciam numa progressão geométrica que nem inflação de país de terceiro mundo. E assim, mesmo a contragosto, e depois de brochar mais três vezes em uma única semana, o pobre do Elias teve que passar ao estágio seguinte, o das hediondas fitas elásticas. E isto foi simplesmente dilacerante. As bichas latejavam, supuraram mas não de modo algum regrediram um milímetro sequer. Cagar estava cada vez mais difícil. Gozar, impossível. Marlene já falava em férias em Mangaratiba.

E depois de semanas a fio de sofrimento o abominável veredicto do Dr. Albuquerque foi decretado de forma solene e piedosa.

- Isto é mesmo congênito como eu supunha, meu caro Elias. Nada mais posso fazer. Você  tem mesmo é que entrar na faca.

- Mas como? Se meu pai nunca teve hemorróidas, nem mesmo a minha mãe, como isto pode ser congênito?

- Ninguém assume ter hemorróidas. Tem gente que aceita ser diabético, outros serem portadores de câncer, mas ninguém tem coragem de confessar ter hemorróidas. Desculpe-me mas seu pai tinha duas putas hemorróidas e a coisa teve que também ser resolvida numa mesa cirúrgica.

- Mas ele nunca nos disse nada.

- Cu de coronel da policia Militar é segredo de estado. Questão de segurança nacional, acredite-me.
Mesa cirúrgica! Até seu pai passara por aquilo...

Elias se desesperou. Seu cu seria dissecado por mãos alheias. Mãos inescrupulosas e muita das vezes, não convenientemente limpas. O que seria de seu anus? Passaria ser de domínio público? E sua reputação de macho?  E quando aquilo caísse na boca do Sebinho? As gatinhas iriam debandar. E a Marlene? Eles haviam acabado de ficar noivos. Mas não houve jeito, uma consulta veio a ser marcada.

Pequenas bagas úmidas de suor correram-lhe pelas laterais e de seu rosto, apreensivo em face da espera. No consultório do Dr. Bago ele contou os segundos. O tempo simplesmente não passava. Com aflita pontualidade ele havia comparecido naquele que seria o cirurgião responsável pela extirpação das horrendas. Após minutos que pareciam dias, finalmente a terrível constatação; o Dr. Albuquerque tinha razão. A cirurgia era necessária.

O tempo o fez resignar-se. Marcou a data, despediu-se de Marlene como se estivesse a caminho do Iraque e na hora marcada compareceu cabisbaixo para o seu sacrifício anal. Porém, para a sua grande surpresa, lá chegando foi notificado que o Dr. Albuquerque e não o Dr. Bagô, exigia a sua presença no consultório, não mais na sala de cirurgia.

Aleluia! O que havia acontecido? Mudança de planos? Por segundos o rosto de Elias se iluminou. Talvez, aquela sabedoria anal ambulante, tivesse achado uma outra solução. Quem sabe o Dr. Albuquerque descobrira uma pílula milagrosa capaz de resolver o seu problema. Deus era realmente grande. Brigadinho!

- Elias estive estudando o seu caso, após a biopsia que fizemos e cheguei a uma conclusão. Simplesmente retirar cirurgicamente suas hemorróidas irá apenas resolver o seu problema temporariamente. Pois, como já lhe disse anteriormente, seu problema é congênito.

- E daí?

- Que não resolverá o seu problema definitivamente.

- O senhor poderia ser mais especifico?

- Uma cirurgia não resolveria o seu problema de forma definitiva. Apenas temporária.

- Mas pelo que entendi, resolveram a de meu pai.

- Com certeza que sim, mas o caso dele não era tão alarmante qual o seu. O computador e a motocicleta aceleraram o seu processo degenerativo. Desculpe-me, mas não acredito que haja outro jeito.

- Se as tiro, elas voltam. Creio que isto é o que o senhor está querendo me dizer?- como a sumidade anal concordasse com a cabeça, ele voltou a perguntar aflito – E quando elas estariam de volta?

- Impossível de predizer. Um mês, um ano, ninguém lhe poderá garantir com certeza. Mas que voltarão, voltarão!

- E o que fazer, se não há solução?

- Na realidade existe uma solução. Para que você entenda o âmago da questão, trata-se de algo que nunca antes veio a ser tentado...

- Há solução? E qual seria ela? - perguntou eufórico com a nova possibilidade.
O Doutor era mesmo gênio! Seu cu tinha solução.

 - Estas hemorróidas são originárias, devido a formação das paredes de seu ânus. Se simplesmente as extirpamos, elas irão voltar com o tempo...

- Isto o senhor já me disse. Tenho hemorróidas crônicas? Por favor vamos direto ao ponto. Que solução é esta que nunca veio a ser testada antes? - interrompeu ele irritado com todo aquele tro-lo-ló.
- Algo semelhante a uma mudança...

- E o que faço então, Dr.? Lacro o cu? Paro de comer?

- Não de seu hábitos, trata-se de uma nova técnica..

- Nova técnica? E qual seria ela? - interrompeu mais uma vez Elias, mas desta feita eufórico com a possibilidade de não ter que entrar na faca.

Ele odiava aquelas desgraçadas hemorróidas, mas pensando bem, elas eram parte de seu corpo e ser mutilado não estava em seus planos imediatos. Quem sabe um antibiótico ou mesmo uma massagem...

- Um transplante de anus.

Elias franziu o cenho. O chão simplesmente abandonara seus pés. O tal do Albuquerque era mesmo uma besta!

- O senhor pode repetir?

- Isto mesmo o que você ouviu, Elias. Um transplante.

- Transplante, de cu doutor? – na pronta concordância médica ele desabafou – No cu, negão !

- Eu usaria o temo anal...

- Anal é o seu cu!

Ia ser um pouco mais difícil, pensou o médico. Era hora de descer de seu pedestal e procurar falar a mesma lingua.

- É transplante no cu mesmo e não há outra solução. É pegar ou viver eternamente com o problema. Que lhe asseguro que vai aumentar. E isto irá afetar seu estado sexual.

Aumentar? Sentar por si só era um sacrifico. Cagar, um inferno. Só de bolinha. Gozar, jamais. Logo como poderia sua situação ainda piorar? Mas ao mesmo tempo, nunca em momento algum, ouvira semelhante estória. Parecia estar vivendo um pesadelo. Em sua surfadas constantes pela Internet, não chegara a tomar conhecimento de um caso sequer, de cu transplantado.

- Mas eu nunca li algo a respeito...

A fera, acalmara-se.

- Como lhe disse, será o primeiro.

As meninas dos olhos de Elias deram duas voltas em suas órbitas. Além de tudo ele seria a cobaia!

- Decida.

O Albuquerque estava realmente falando sério e queria ainda uma resposta rápida. O pior é que sondara e tinha agora a mais convicta certeza que aquele médico era a autoridade máxima em questões anais. Sem relutância aceitou o seu desígnio. Ele teria o seu cu transplantado e resolvido de uma vez por todas aquele problema que tanto o atormentava. A Madalena iria gostar, pois ele teria de volta a sua virilidade. Seu pai, igualmente haveria de aceitar o fato. Sabia que não seria fácil, mas afinal quem vê cu não vê alma! E ademais cu é cu. Só merda por ali passa!

Mas, ao mesmo tempo, um turbilhão de pensamentos afluíram a seu aturdido cérebro. Seria ele mesmo o primeiro caso? Não haveriam sido feitos outros transplantes sem sucesso e por isto encobertos publicamente? E se fosse ele realmente o primeiro, entraria para a estória clínica como o pioneiro recebedor do cu alheio?

E quem seria o doador? De que defunto seria arrancado aquele cu? Seria um cu largo, estreito e de que cor? Moral da estória brochou. Nem mais ereções conseguia. De uma passara ao estágio do não consumar ao de simplesmente nem iniciar. Marlene foi a primeira a pular fora. A ela se seguiram a Margot, A Elizabeth e até a Suzy que sempre fora vidrada nele. E de Ilha Grande passou a ser chamado ali no final de Copacabana, de Ilha da Bananeira. Era demais.

Assim decidiu. Era o cu ou a pica. Optou pela pica em detrimento do cu. E na faca entrou, tão logo um doador veio a ser achado.

O transplante foi um sucesso. Toda a imprensa foi congregada para que o feito inédito da medicina brasileira, tornasse público. E todos, sem exceção exigiam que o cu de Elias viesse a ser fotografado.
Propostas da revista Playboy e Men, apareceram sobre a mesa, mas Elias estava irredutível. Nenhum milhão o faria mudar de idéia. O cu era seu e não queria que de maneira alguma, o dito se tornasse de domínio popular, principalmente pelo fato do doador ter sido um pessoa de coloração negra que morrera atropelada num dos cruzamentos da Cinelândia. Havia muito contraste entre seu novo e recém implantado cu e o resto de seu corpo e isto deixava Elias sem jeito. E querendo ou não, como dizia seu pai; Meu filho, cu é peça sagrada de seu corpo. Não é para se tornar página do meio da revista Playboy.

Como tudo no Rio de Janeiro, depois de um arrastão aqui, uma briga de facções de favelas ali e mais uma derrota do Botafogo acolá, até o cu de Elias de Mattos deixou de ser notícia. Em seu período de convalescença, ele estava proibido de sequer tentar uma relação sexual e vivia de sopinha. Logo perdeu o viço, bem como seu estado atlético. Seus primeiros fios de cabelos brancos nasceram nas laterais.

O ti-ti-ti limitou-se ao Dr. Albuquerque, que com o feito alcançou notoriedade e uma imensa clientela. Não eram agora poucos, os homossexuais que o assediavam em seu consultório, para transplantar seus respectivos cus, por outros mais novos, rosáceos e apertadinhos.

Todavia, o transplante de cu havia igualmente transformado a vida de Elias. Primeiramente porque ele não voltaria a cometer o erro de outrora de ficar horas sentado a surfar na Internet. Seu novo cu necessitaria ser ventilado. Vendeu a moto e passou a surfar no mar ao em vez da Internet. Segundo, porque a simples sensação de defecar, agora era diferente. Depois de dois meses, Elias podia até tomar leite norte-americano que nenhum esforço era necessário para cumprir com suas funções fisiológicas. Até porque, aquele era um cu lubrificado e de muito maior porte. E terceiro porque aquele novo cu parecia estar mudando até sua maneira de ser.

Deixara de assediar as meninas, mas em compensação sentia-se mais alegre, com um muito melhor humor e acima de tudo com vontade de se exercitar e participar mais da vida. Deixou de ser aquele personagem apenas ligado ao sexo. Sentiu-se impelido a intelectualidade. Estabilizado, corado pelo sol e com os músculos finalmente aflorando de sua pele, Elias parecia ser um novo homem. Voltou a chover mulher na sua horta mas ele não parecia se interessar e muito menos fazer pazes com o pinto. Haviam coisas mais importantes no mundo do que simplesmente se preocupar em hastear suas bandeiras como outrora. Chegou até a esnobar a Marlene, que estava de volta rondando o seu quarteirão.

Mas seu pai, o Arquibaldo, sentiu que estas ótimas mudanças de comportamento eram acompanhadas por outras de atitudes que não lhe pareciam agradar a primeira vista. E dia a dia, as segundas pareciam maiores.

A voz de Elias se tornara mais esganiçada, seus gostos mais femininos, trocara a moto pelos livros, a noite pelo dia e até a sua forma de andar era outra. Elias agora rebolava e isto já era nitidamente notado não só por ele, como também pela Marlene que sentiu que o molejo de seus quadris fora ofuscado pelo jogo de cintura que seu ex-noivo. E deixou isto claro para o coronel. Foi ai que o coronel Arquibaldo resolveu procurar o Dr. Albuquerque.

 O velho médico a tudo ouviu atentamente e coçando o seu cavanhaque de bode, confessou.

- Meu caro Arquibaldo. Foi uma titânica luta para se conseguir um doador para o seu filho. Neste pais existe ainda um tabu para com a doação de órgãos, principalmente em se tratando de cu. Ninguém quer dar o seu cu a um desconhecido. Olhos, rins, bexigas, corações e estômagos, não existe problema. Todavia, cu, nunca. Coisas de brasileiros.

- E a quem pertencia o cu que agora meu filho está portando?

- Em nossa profissão, a ética não nos permite tornar público quem são os doadores.

- Não preciso de nomes, apenas aspectos gerais como idade, o que fazia, quais eram as suas características. Enfim, fatos gerais?

- Impossível coronel. Este cu, tem seus segredos e estes deverão ser mantidos para o bem da ciência.
- Não aceito! Eu exijo saber de quem era este cu! Meu filho não pode viver eternamente do cu alheio, sem saber sua origem!

O experiente cirurgião sentiu que devia haver algum problema no ar. O homem era coronel da ativa da Policia Militar. Tinha amizades no Palácio e perdia o humor com facilidade. Assim enveredou por um caminho paralelo.

- Porque, você quer esta informação, ô Arquibaldo?

- Tenho minhas razões.

- Quer dizer que eu posso descortinar as minhas, mas você não as suas? Por acaso está havendo algum problema de rejeição?

- Não! Rejeição propriamente não...

-Então o que o aflige, homem de Deus?

 - Já disse. Mudança de comportamento.

- Do anus???

- Antes fosse. Do Elias é que estou me reportando!

A coisa estava começando a se desenhar bem mais complicada do que ele pudesse imaginar. O medico coçou a cabeça.

- E o coronel poderia me dizer que mudanças são estas?

- Meu filho está agindo qual uma mulher.

O Dr. Albuquerque gelou. Será? Em seus estudos nunca foi sequer aventada a possibilidade de mudança de comportamento. Haviam muitas discussões sobre a possibilidade de rejeições e até inadequabilidade operacional com o intestino. Mas mudança de comportamento...

Pensou um pouco. Talvez não fosse indiscrição de sua parte em segredar alguns detalhes do doador, para aquele pai que parecia preocupado com o cu de seu filho. O Dr. Albuquerque era também pai e por isso podia igualmente entender o teor de toda aquela preocupação. Cu de filho é que nem amor de mãe; coisa sagrada. Assim sendo, pegou o dossiê de Elias em seu arquivo e abrindo-o o estudou por segundos. Pelas barba do profeta! Ele, a pressa e a excitação foram tantas que ele não atentara a certos detalhes do doador. Afinal não era todo dia que se encontrava alguém afim de dar seu cu rapidinho. Pigarreou. Aquilo deveria ser dito com muito cuidado.

- Primeiramente eu queria lhe dizer que o doador em questão, na realidade não era um doador...

- Como Albuquerque? Quer dizer que tiraram o cu do cara na marra? Isto é inconstitucional...

- Não Arquibaldo, o doador em questão era na verdade uma doadora.

O coronel Arquibaldo Pederneiras de Matos. Sentiu seus joelhos fraquejarem. Empalideceu, mas o experiente doutor não lhe deu tréguas para explodir;

- Seu nome de batismo era Joana e ela era conhecida no centro da cidade como Mãe Joana.

- Mãe Joana?

- Sim. Mulher de muita saúde e beleza. Diziam até que em seus áureos tempos foi mulata no Oba Oba do Sargentelli...

Mas o coronel não queria ouvir mais nada. Que lhe interessava se ela fora boa para burro? Era uma mulher. A dona daquela cu, poderia ter sido até a ama de leite da rainha da Inglaterra, que nada iria diminuir a sua ira. Era uma mulher. Seu Elias tinha um cu de mulher. Inadmissível!

 - Caguei se ela era bonita ou não, ô Buca! Quer dizer que o Eliaszinho agora portava entre suas nádegas o cu da Mãe Joana? Isto é um ultraje. Um verdadeiro acinte a moral e aos costumes. Imaginem se a procedência do cu de meu filho for descoberta por algum jornalista? Como ficaria a moral do Elias? E de seu cu? Ou o cu da Mãe Joana? Recuso-me terminantemente a aceitar o fato. Meu filho é cabra macho, moleque conquistador e agora seja obrigado a portar o cu da mãe Joana.

- Agora não posso fazer absolutamente nada. O fato está consumado. E na hora em que o doador foi achado, você Arquibaldo ou mesmo o Elias, não fizeram nenhuma restrição a que tipo de cu seu filho iria portar.

- Mas nem me passou pela cabeça que pudesse ser o doador uma mulher...

- E porque o preconceito? Existem corações de mulheres pulsando dentro do peito de homens.

- Porra ô buca! Coração é coração. Cu é cu!

- Desculpe, mas eu lhe disse tratar de uma pessoa atropelada. O sexo nunca esteve em discussão.

- Evidente. Quem poderia supor que você meu amigo de mais de quarenta anos fosse implantar o cu da mãe Joana em meu filho. Quem? Quem? Logo a você que há vinte anos atrás entreguei o meu cu sem restrições.

Dona Lygia, virgem, sexagenária e filha de Maria, que acabara de entrar no consultório particular do doutor Albuquerque a quem auxiliava nas horas vagas, ao ouvir aquela última e revelante confissão, achou melhor fingir que esquecera um dos documentos em sua sala e fechou a porta atrás de si.

- Como resolveremos este problema?

- Que problema?

- Ah! Você acha que ser portador do cu da mãe Joana não é problema, porque então não transplanta o seu e usa o do Madame Satã daqui para frente?

- Esqueça-se, por um momento desta pequena anomalia. E me responda. Seu filho defeca bem?

- Muito bem e mais rápido.

-Ótimo. Seu filho não se sente mais jovial e mais ativo?
- Confesso que sim. Perdoe-me, mas este não é o âmago da questão. Tenho muito apreço por você Buca. Você solucionou definitivamente o problema de minhas hemorróidas e sou-lhe grato por este fato também. Mas o que fizeram com o cu do meu Elias, foi uma tremenda barbeiragem.

- Você está exagerando.

- Porque o cu não é teu e não sabe quanto dói a mim um pai de família!

Dona Lygia, que estava de volta, desistiu de uma vez por todas a participar daquela libertinagem. Voltou a sua sala lívida. Tomou imediatamente uma decisão. Pela manhã o Dr. Albuquerque teria em sua mesa, sua carta incondicional de demissão.

- Você precisa quebrar preconceitos... mas não se preocupe Arquibaldo. Mãe Joana era uma mulher sadia, sem doenças e que possuía uma vitalidade inigualável. Ao envelhecer, vendia cocadas na baixa do sapateiro e desfilava na ala das baianas de Mangueira. Foi pega por um ônibus, e como seu filho precisava urgentemente de um cu, foi o dela do que nos utilizamos. Não se preocupe. Não há problema algum. Trata-se de um bom cu. Sadio e correto.

- Fácil para você achar que não há problema algum quando não é propriamente o seu filho que carrega consigo o cu da Mãe Joana.

E dizendo isto o coronel se retirou daquele consultório indignado, marchando como um oficial de alta patente ferido em sua honra o devia fazer.
E eu que o achava o coronel e o doutor, homens distintos, pensou com seus botões dona Lygia, fingindo não notar a sua saída.

O coronel Arquibaldo estava pelas tampas. Estava naquele momento pensando seriamente em consultar um advogado sobre aquele caso. E tão logo abandonou o consultório do ex-amigo, procurou a outro que lhe devia muitos favores.

O Doutor Agildo Parreiras era um advogado especialista na área de problemas médicos. Agia como consultor de vários órgãos de saúde e hospitais dentro do território brasileiro, mas mesmo ele com toda a sua vasta experiência, nunca havia ouvido falar de um caso tão cabeludo como o do cu de Elias... ou melhor da mãe Joana.

- Vou ter que examinar.

- O cu de meu filho ninguém examina!

- Sossega, Arquibaldo. Ninguém quer colocar a mão no cu da mãe Joana... desculpe-me do Elias. Vou examinar o caso, mas de cara lhe asseguro que não vejo muitas saídas.

- Como não há saída?

 - Para o bem da verdade, pelo que sei não existem problemas de rejeição ou mal funcionamento – o coronel assentiu com a cabeça, embora aquele assunto lhe enojasse – Pelo o que também entendi o citado cu , além de cagar maravilhosamente bem, não coça e ainda por cima apresenta estatisticamente um fluxo bem maior – o coronel voltou a concordar – Possibilitando, segundo seu próprio depoimento, que Elias não ficasse mais horas a fio como antes, no único vaso sanitário existente naquele apartamento de dois quartos que vocês dois dividem na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, ali perto da Real Constant – parando um pouco para tomar fôlego, continuou com os olhos pregados no processo – Segundo você, em uma oportunidade, o Elias quando ainda menino lera 2/3 do romance Guerra e Paz numa tentativa de evacuação. Logo, não é por ai que poderíamos responsabilizar o Dr. Albuquerque. Temos que buscar outro ângulo.

- Outro ângulo Paranhos. Implantam no meu filho o cu de uma crioula, que nem sabe atravessar uma rua e você acredita que nós ainda precisemos buscar um ângulo? Paranhos, preste atenção. Existem três agravantes. Elias está agora com trejeitos femininos. Segundo acredito que qualquer ser humano, independentemente de cor, sexo ou religião, jamais em sã consciência, sonharia em ter seu cu relacionado como o da Mãe Joana. E terceiro sou coronel da Policia Militar. O que a turma da minha corporação vai fazer quando souber disto? Como fica a minha moral? – Paranhos demonstrou consternação - Assim, o Dr. Albuquerque é culpado e tem que dar uma solução ao caso. E que o ângulo que você procura vá para a puta que lhe pariu!

A situação estava se tornando melindrosa e Paranhos macaco velho do tempo que a Lapa era antro de vagabundos, não ia colocar sua mão naquela cumbuca. Ele tinha que achar uma solução que acalmasse o amigo, mas que ao mesmo tempo solucionasse o problema do filho do mesmo. Pois, caso contrário, iria sobrar para ele próprio.

- Com todos o respeito que o cu de seu filho merece, mas gostaria de lembrá-lo que tem muita gente que muda de trejeitos com a idade sem transplante algum. Simplesmente porque vira a mesa. Sei que não é o caso de seu filho. Garoto macho como o pai, desde menininho. Evidente que para ele houve um agravante, logo só vejo uma solução. Vamos tentar um acordo e obrigar ao Albuquerque a fazer um novo transplante, livre de qualquer despesa, e com um doador reconhecidamente macho.

- É isto aí! Macho com M maiúsculo!

A batalha judicial perdurou quase um ano, mas finalmente o Dr. Albuquerque cedeu aos caprichos do coronel e de seu advogado. O cu de Elias teria que ser novamente transplantado. O problema é que agora, Elias havia se apegado a aquele cu. O tratava com carinho, respeito e o dito cujo em troca o estava servindo bem. Não haviam mais hemorróidas, prisões de ventre ou sangramentos de nenhuma forma. Era um grande cu, largo, em tamanho e eficiência. O problema era que pertencera a Mãe Joana e se um dia mais pessoas tomassem conhecimento deste fato, efetivamente seu pai tinha razão. Sua vida se tornaria um inferno.

A indecisão de Elias se desfez, quando ao sair rebolando um dia do tribunal foi assediado por um mulatinho magrelo, servente da corte, que lhe sapecou uma proposta indecorosa. Indignado, Elias respondeu nas fuças do mulato.

- O que você pensa que meu cu, é?

E a resposta foi imediata, o fez cair na real.

- Da Mãe Joana.

A nova cirurgia transcorreu como a primeira. Perfeita. O doador era branco, macho, nordestino e pai de três filhos. Morrera do coração mas segundo sua esposa, quando vivo, cagava que era uma beleza. Seu cu era perfeito, praticamente imaculado. Um cu macho! Porque nordestino pode ser tudo, menos baitola!

Feliz com o seu novo cu, que pelo menos cromaticamente não contrastava com sua pele, Elias voltou a ter seu andar regularizado e sua voz masculinizada.  Não rebolava mais, perdera os trejeitos e além de demonstrar virilidade em suas atitudes, passou até a ter uma certa rispidez em seu relacionamento com outras pessoas. O coronel estava exultante com o novo cu de seu filho. Aquilo sim era um cu. Um cu ríspido que não levava abuso para casa. Um cu retado! Um cu de macho!

Mas as coisas foram mudando e o coronel apavorou-se com o que via, dia após dia em seu apartamento. Até que num final de tarde, voltando mais cedo do que o normal, flagrou seu filho com as calças arriadas e a bunda para fora da janela. Sua reação de indignação não pode ser contida.

- Elias, filho meu, o que você está fazendo com sua bunda ao relento, para toda a vizinhança ver?
Elias de um pulo se recompôs e levantando o zíper de sua bermuda tratou de se explicar.

- Juro que não sei o que foi, papai. Acabei de ouvir na televisão que vai haver um tempestade. Vai chover o grande caralho e seremos assolados por um vento de foder. Instintivamente me senti impelido de colocar a bunda para fora da janela. Foi algo mais forte que a minha própria vontade. Será que estou sendo dominado pelo cu?

Aquilo estava cheirando mal. O coronel foi atacado pelas primeiras suspeitas. Será que aquele nordestino, macho, pai de três filhos e cônscio de seus deveres de chefe de familia, na verdade sentava numa boneca? A partir daquele momento ele passou a seguir os passos de seu filho mais de perto e foi então que descobriu que a emenda era pior do que o próprio soneto. Ao ver a banda de Ipanema passar, Elias com as mãos nas cadeiras e aquela atitude máscula de Lampião, o rei do cangaço, simplesmente se transformou ao ouvir um crioulo pernóstico ordenar a chefe de sua bateria.

- Orga, não vamos dar forga! Pau no samba!

O Elias se empinou, olhou para um lado e para o outro e saiu rebolando a cantar qual uma Carmem Miranda arrependida de ter abandonado o Brasil.

 - Eu sou o samba, sou natural aqui do Rio de Janeiro...

Que saudades das hemorróidas e do cu da Mãe Joana foram os últimos pensamentos do nefando coronel segundos antes de ter o enfarte que ceifou a sua vida, ali mesmo na Avenida Vieira Souto, na véspera do carnaval de 2002