quinta-feira, 15 de abril de 2010

O DONO DA PIROKAH

Mardel acabara de ser deportado dos Estados Unidos. E desta forma veio a dar novamente no Brasil. Primeiramente no Rio de Janeiro, depois em Porto Alegre. Por sua sorte, muita gente havia se esquecido dele. Pobre Mardel, alguns acreditavam que seu corpo nunca fora encontrado. Triste fim...
Quando Zequinha Mamute, anos depois resolveu realizar seus próprios prejuízos, se contentando apenas com os pescoços de China e Orlando, esqueceram da existência daquele malandro, que era safado qual o Laércio. Mardel sentiu-se compelido a voltar. Tinha saudades de sua terra natal, de seu idioma pátrio e do Grémio, que fora bicampeão do mundo em sua ausência.
        O Rio Grande do Sul era conhecido por seu filé, mas ele o estado da união em si, era o filé a ser deglutido pelo Mardel. Em sua deturpada mente, todos ali o deviam. Mardel estava pronto para ter a sua desforra e já tinha até um plano elucubrado no avião de volta a terra natal. Não dava para passar por árabe e muito menos por norte-americano. Logo atacou de nobre estancieiro uruguaio, que no Rio Grande do Sul sempre cola.
Deixou o bigode brotar abaixo de seu nariz, aperfeiçoou o seu portunhol, voltou deixar crescer as costeletas usadas quando cantava em um cabaré de Montevidéu quando trabalhou como garçom e passou a se vestir qual um príncipe oriental. Óculos ingleses de aro fino, chapéu irlandês quadriculado, colete com o quadriculado do mesmo padrão do chapéu e até o relógio era de corrente de ouro (na verdade se tratava de um bom banho de ouro). Quem o visse, juraria ser um cantor bem sucedido de tango. A segunda versão de Carlos Gardel. Um pouco mais magro...
        Chegando ao Cristal ele passou a aplicar aquele que seria o seu tiro definitivo. O que Mardel acreditava firmemente que lhe traria a fortuna tão desejada e sem complicações em relação aos bookies. O tiro de misericórdia. Aquele que o tiraria definitivamente do lodo em que se encontrava.
O nome escolhido desta feita seria don Pero Valdez Aguirre e apresentava-se como nativo de Montevidéu e filho de uma nobre família que o deserdara por seu intenso amor pelos cavalos de corrida. Coisas de velhos nobres da oligarquia uruguaia. Seu plano era simples, como simples sempre são as grandes idéias. Ele conquistava velhinhas desgostosas e ricas do mercado gaúcho e as colocava em sindicatos para a compra de alguns cavalinhos com pinta de ganhadores do Derby. Cavalinhos bem baratos para não atrair suspeitas dos curiosos. Mas estes sindicatos não eram convencionais onde cada membro adquiria ações e estas somadas perfaziam 100%. Aliás, na verdade não eram sequer sindicatos. Mardel vendia a cada uma de suas amantes 100% das ações de determinado animal, e assim alguns sindicatos chegavam a 2800%. Quebrava os animais antes de estrear e quando algum dos sobreviventes corria, o fazia fracassar. Para estes últimos, depois de duas ou três carreiras, simulava uma manquera e os vendia. Nem se dignava a pagar os cara minguados inerentes a venda, às suas apaixonadas investidoras e tome Viagra para agüentar aqueles sarcófagos ambulantes. No inicio pintava o recém adquirido para suas próprias-otárias como as sétimas maravilhas do mundo;
- Una maquina de correr! Mire como saca las manos. Como mueve las patas. Que petiso. Este nos lleva al derby.
Ai quando o cavalo estava às vésperas de estrear, anunciava em ritmo de tango de final de noite no Viejo Almacien.
- Que lástima, piso una piedra y la perdimos. Que pingo! Si no se lastima, estoy seguro que ganaríamos el Derby. Su calidad hera terminante!
E partia para outra aquisição.
Não havia perigo algum em todo o seu projeto, já que os cavalos na grande maioria das vezes não corriam, e aqueles que contrariando todos os prognósticos agüentavam as intempéries e conseguiam chegar a pista, eram tão matungos, incapazes de sequer levantar as próprias patas. Para manter ainda a garantia do insucesso, a bóia era quase nenhuma, o soro era de água da bica e o jockey redeador era um sobrinho do desaparecido Osório que detinha o recorde de não ter ganhado uma carreira no Cristal nos últimos três anos de sua vida profissional. Recorde este que estava sendo ameaçado neste momento pelo filho de sua irmã, o Osórinho.
        E a coisa era ainda mais perfeita, porque as perdas da parte de cada uma de suas investidoras não eram alarmantes, já que Don Aguirre era um selecionador de cavalos extremamente consciencioso que comprava os mais baratos oferecidos nas vendas, aqueles que tinham menor classe e chance de suceder.
          - Pobre homem. Os cavalos o haverão de levar a falência - comentou a madame Espinoza na altivez de seus 82 anos ainda incompletos.
- Mas como os ama - lamentou a viúva Bernardes Bevilaqua ainda na flor de seus 68 anos mais do que completos.
         Dois pais de santos vieram a ser consultados a pedido de uma das proprietárias. O resultado foi nenhum. Foi instalado uma música na cocheira de origem indiana, pois, segundo a viúva Alencar isto acalmaria os pensionistas, mas os cavalos passaram a ter otite e um se suicidou indo de encontro a parede. Duas videntes de Governador Valadares que não haviam conseguido vistos os EUA, tentaram também resolver o problema, trazidas pela viúva Bernardes Bevilaqua, mas nada conseguiram desvendar. E até um terapeuta consagrado em hipnose fora colocado à disposição de Don Aguirre por parte da madame Espinoza, para trabalhar na mente dos cavalos. Mas a urucubaca permanecia. Todos eram craques pela manhã, mas nunca chegavam a pista oficialmente.
      Mas pelo menos o terapeuta caiu nas graças de Don Aguirre. Pois, embora o que havia conseguido até ali na realidade, foram mais dois cavalos mortos, que depois de entrar no estado de transe hipnótico caíram e fraturaram seus respectivos crânios. Todavia, este era o tratamento ajustou-se qual uma luva para o nobre uruguaio. O golpe do seguro. Ele embolsava o seguro.
      Mas como prova de sua confiança nos dotes do terapeuta, o Dr. Eleutério, don Aguirre cavalheirescamente manteve o seu contrato e passou a fazer seguros altíssimos de suas jóias de quatro patas, com o pequeno detalhe de ser ele o próprio o beneficiário, nos animais a serem hipnotizados. E uma nova fonte de renda estabeleceu-se no PVA Racing Stables. A coleta do seguro.
       E a toda esta bola de neve monetária, teriam que ser somadas as contas de despesa da cocheira, do trato e daqueles longos tratamentos veterinários do Dr. Fritz Gungenheim, um estranho personagem que só medicava os cavalos de Don Aguirre na calada da noite. Mas que mandava suas contas à luz do dia e estas, eram atrozes para os proprietários. Ninguém tivera prazer de conhecer o veterinário alemão até aquela data, além de don Aguirre. E isto estava começando a instaurar uma espécie de curiosidade entre sua geriátrica clientela.
- Eu gostaria de conhecer este Dr. Gugenheim, Bibi. (esta era a forma pela qual a viúva Lacerda se reportava afetuosamente a seu treinador).
- Imposible. El hombre es muy nervioso, Xuxu (era o apelido que Mardel colocara naquela gordinha sapeca) No lo puedo perder y que se valla del stud seria una locura que se fuera. Me costo mucho que vuelva a trabajar. Desde que gano el Derby con Neckar en Hamburgo en el año de 1951, que abandonara la clínica. Un monstro. Manos milagrosas...
- Mas eu não diria nada, Bibi. Só o cumprimentaria... - tentou argüir a gordinha curiosa.
- Imposible Xuxu. El hombre fue nazista y no quiere ser visto. Muy cegado a Dr. Mengele. Si lo miro a los  ojos, desaparece.
E dia após dia, Mardel enchia mais os seus bolsos. Eram os seguros, eram as contas de manutenção e os fictícios tratamentos do gênio alemão.
Mas um manhã pintou em sua cocheira uma égua, raquítica, que visivelmente puxava uma perda e que para culminar perdera uma de suas orelhas em uma querela no pasto quando ainda pequena. Colocada no leilão de liquidação de um criador pouco afamado, ela que possuía o sugestivo nome de Pirokah, segundo seu criador, o nome de uma deusa da mitologia grega, não conseguiu sequer um lance, mas Don Aguirre se encantou e a trouxe para seu comando. A comprou reservadamente por 100 Reais, e a sindicalizou em 25 parcelas individuais de $ 1,000 reais de 100% cada. O sindicato presente era dos menos concorridos. Foram vendidas apenas 1400%
         - Cuando la vi en el remate, me sentí loco. Tenia que comprarla a cualquier precio. Una fenomena!
- Mas e a orelha, Bibi? – perguntou curiosa a viúva Lacerda.
- Que tiene la oreja?
- O problema é exatamente este. Ela não tem a orelha, Bibi.
- Estos  son detalles. Solamente detalles.
Pirokah não tinha realmente uma orelha, mas em contrapartida parecia ser constituída de ferro. Agüentava o tranco, comia a pouca ração, se mantinha no peso e mesmo hipnotizada era incapaz de cair e se transformar em prêmio de seguro. Um dia o sobrinho do Osório ao voltar da pista, ao final dos trabalhos, chegou com aquela cara de pateta e vaticinou:
- Don Aguirre esta tal de Pirokah é muito boa! Dura e difícil de baixar o facho. Nunca montei em coisa melhor. Imagine quanto ela fez nos 600?
- Osórito, mi muchacho, no me ves que estoy ocupado. Conversamos después. Si usted quiere anotar la yegüita, la anota. Confirmo la papeleta. Pero me deja trabajar.
E voltou a atender à aquele monumento da Shirley ao telefone. Que mujer... que mujer...
Como o Osórinho nunca havia montado em nada decente em sua vida, seu poder de avaliação foi imediatamente subestimado por don Aguirre que não ia mais pela manhã ver seus pupilos treinarem, já que tinha a difícil incumbência de treinar suas próprias investidoras. E isto demandava tempo. Não só pelo excessivo número delas, assim como pela avançada idade das mesmas, o que tornava necessário muito jeito e calma para não desmontá-las em movimentos inesperados. Um dia, o Osórinho chegou para Don Aguirre e vaticinou de forma solene.
- Se ela estréia, ganha.
- De que hablas, Osórito?
- Da nossa Pirokah.
Esquecendo-se por um segundo de sua condição de nobre uruguaio, don Aguirre escorregou e acabou dando uma de Mardel.
- Baaa, você esta vendo estrelas tché!
A sorte é que o Osórinho era daqueles que necessitavam mais de dez segundos para que a mensagem assimilada por seus ouvidos fosse transmitida para o cérebro e este por sua vez, montasse uma intrincada forma de discernimento. Rapidamente Mardel voltou a ser don Aguirre e demoveu o jockey da coudelaria (forma sutil e pomposa de chamar a cocheira) de seus sonhos.
- Pero que si, pero que no, la vamos correr igual . Pero no te la vamos a dar a vos. El  exceso de confianza es la enemiga de la perfección.
Mesmo triste, Osórinho aceitou o fato que don Aguirre era um homem das letras e que sabia das coisas. Paciência. Mas dar a sua querida Pirokah para o Bustamante, também já era demais. Logo o Bustamante...
       Surdo e com artrite no braço esquerdo, Bustamante não parecia ser a melhor opção. Aliás o Bustamante nunca fora a primeira opção para nada. Ainda mais que para Osórinho, o Busta (como era conhecido nas rodas turfísticas) só não batera o recorde de seu amantíssimo e desaparecido tio, porque ganhara uma carreira num páreo de cinco concorrentes.  Nesta carreira dos cinco participantes, quatro caíram e só o pupilo do Busta não fora prejudicado, já que vinha tão atrás que teve tempo mais do que suficiente, para se desviar dos demais. Mas vida de jockey era assim mesmo e o Busta era um bom sujeito. Tão bom que ainda era casado há 20 anos com a mesma mulher.
     Alguém tinha alertado a Osórinho que a razão de tão harmonioso matrimonio era porque o Busta era surdo e a dona Marilda cega. Aquelas duas deficiências físicas uniram o casal para sempre. No momento em que a voz de dona Marilda era pior do que cana rachada e Bustamante era feio como a peste. Mas o que o olho não vê e o ouvido não escuta, faz o coração não sentir.
        Mas a sorte começou a virar-se contra Mardel.
        Dona Firmina, que era umas 14 proprietárias absolutas de Pirokah resolveu comparecer ao jockey na tarde de estréia de sua pupila, contrariando o pedido de don Aguirre, que sempre proibia aos proprietários de assistirem seus cavalos correr ao vivo.
         - En la televisión se ve muy mejor. Porque también no quiero que mi gatita este en un ambiente de levante.
Don Aguirre era excessivamente ciumento e por que não dizer extremamente supersticioso. Pregava achar que a presença de suas proprietárias no hipódromo em dia de carreiras, trairia má sorte ao cavalo. Por isto todas assistiam pela televisão, quando o milagre de um de seus cavalos ter conseguido escapar do massacre matinal. E as velhinhas obedeciam, principalmente vaidosas pelo ciúme doentio, daquele nobre cavalheiro uruguaio. Mas dona Firmina que era uma rebelde por natureza, tanto que havia liderado a ala feminina conservadora na revolução de 32, não deu bola a proibição. E afinal que superstição era aquela? Nenhum dos cavalos conseguia correr, que dirá ganhar... ademais o Osórinho lhe havia garantido que a potranquinha era imperdível. Desta forma a rebelde mentiu para seu amado treinador, dizendo que estaria em Petrópolis e desobedecendo-o, colocou o vestido vermelho de formatura e compareceu ao prado, disfarçada. Para tal achou que um simples par de óculos escuros e um chapéu discreto de feltro com uma pena de faisão, seriam mais do que o suficiente para não ser notada pelos presentes.
      Há de se convir que uma senhora de 90 anos acondicionada em um vestido vermelho, três números menores, com óculos escuros e chapéu de feltro, com uma pena de faisão, não eram uma coisa muito freqüente nas tardes de fim de semana no hipódromo de Cristal. Mas don Aguirre, que estava sentado na mesa com duas lourinhas de vida difícil e ávidas por dinheiro fácil, não deu a mínima bola. Estava bêbado e entretido com suas companhias. Não notou a presença da investidora e muito menos foi ao paddock ver sua Pirokah.
- Você não vai ao paddock ver sua potranca, Perito? - perguntou a mais ordinária das duas.
- No mia cachita. Estoy en lo paraiso com usted…
Seu pai, o saudoso Aristides, uma vez havia lhe dito que dinheiro não comprava felicidade. Mas Mardel sabia, que este mesmo dinheiro poderia pagar sua Mercedes, seu apartamento em Bela Vista e principalmente o cachê daquelas duas lourinhas no final daquela tarde. E isto era o que importava naquele exato momento de sua vida. O resto eram meros detalhes. Meros e desprezíveis detalhes até que aquela potranquinha que acabara de entrar na pista saltitante, a Pirokah, começou a lhe causar calafrios. O primeiro alerta do desastre que poderia estar por acontecer foi um comentário à suas costas, de dois caras que a primeira vista o Mardel não conhecia, mas cuja voz do que acabara de falar, não lhe pareceu estranha.
- Como esta linda esta estreante.
Mardel não se preocupou, com o comentário. Com a voz sim. Naquela carreira haviam quatro outras estreantes e continuou a cafungar o pescoço de uma das meninas, a oxigenada da esquerda, sem dar a mínima bola para quem comentava às suas costas. Mas o segundo brado de alerta veio logo a seguir.
- Que nome estranho para se dar a uma potranca.
Respirou fundo. A coisa não era ainda alarmante, já que das cinco estreantes, três tinham nomes pouco comuns; Pirokah, Gonorinda e Xexelenta. E Mardel se limitou a mudar de pescoço. Agora estava no a sua direita. O castanho escuro de pelos eriçados. Mas foi justamente quando ele chegou naquela outra massa de carne embargada de Fleur de Rocaille que sentiu de quem aquela voz conhecida às suas costas estava se referindo. Ele não só reconheceu a voz, como também o perigo.
- E olhem que barraram este menino promissor do Osórinho para colocar o surdo do Busta.
Ambos estavam mesmo falando de Pirokah e a voz era do Osório, aquele filho da puta que havia puxado a Blue Gardênia, jogado na Grand Orient e fugido com uma nota preta para as Bahamas. Aquele filho da puta que o fizera passar o que fora obrigado a passar em solo uruguaio. A voz estava um pouco mais rouca, mas só poderia ser ele, afinal só uma múmia como aquela, poderia achar o Osórinho promissor.
Mardel estava a ponto de voltar a sua cabeça e encarar o traidor, quando um comentário do acompanhante de Osório Duque Estrada o fez esfriar por completo. Ele igualmente conhecia aquela voz...
       - Isto me lembra um golpista que havia há muito tempo atrás por aqui no Cristal chamado Mardel.  Um sujeito novo e até simpático. Ele uma vez descarregou na minha banca numa tal de Blue Gardênia e quando pensávamos que ele ia para a cabeça, na realidade o salafrário estava jogado na Grand Orient que acabou ganhando o páreo. Descarregamos na pedra a tempo, mas a emenda foi pior que o soneto. Pois, só então descobrimos que o Mardel havia aprontado um belo de um enxerto. A égua que ele queria que ganhasse era a Grand Orient. Se meto os olhos naquele vagabundo o esfolo vivo. Sou capaz de reconhecê-lo até debaixo d'água! - a voz deu alguns segundos de pausa e completou - Você conheceu o tal de Mardel, comendador?
- Felizmente não. Mas ouvi falar de sua fama. Terrível. De sujeitos como estes  procuro sempre manter uma certa distância. Ademais neste tempo eu não freqüentava o Cristal. Estava tratando de meus negócios em São Paulo.
Que Judas! Mentira com total indiferença! E logo aquele comendador de uma figa, que na realidade era o traidor do Osório. A única razão de seu calvário em Montevidéu, aonde até latrinas teve que limpar para sobreviver. Mas será que a Pirokah tinha mesmo chance, pensou Mardel agora se desinteressando daqueles dois pescoços e fixando seus olhos no totalizador? Era o seu que acabara de entrar na reta.
Pirokah estava não só bem jogada, como era a franca favorita. Aquilo não era possível! Como estavam jogando numa égua que comia 1/3 de ração, tomava soro de água de bica e estava montada por um surdo? Teriam todos enlouquecidos? Mas a resposta as suas dúvidas foram imediatamente sanadas quando ele se dignou em fixar suas lentes nela. Não é que aquela potranca sem orelha estava linda. E os dois as suas costas, confirmaram a outra razão.
- Não te disse. Ela tinha que ser a favorita. Com aquele seu último apronto de 34" para os 600, é impossível de perder. Só o Estensoro fora capaz de algo semelhante.
- Eu não sabia, comendador que o senhor conhecera o Estensoro.
- ... de nome, só de nome... consertou o Osório, pigarreando a seguir.
34" para os 600. E o Osórinho não lhe havia dito nada! Ou melhor ele tentara dizer e ele não dera ouvidos. Estar de trela com aquela destrambelhada da Shirley o fizera perder o fio da meada e pelo jeito, iria perder a meada inteira até o final daquela tarde. Aquela égua não poderia ganhar ou ele estaria frito.
- Ela não só ganha, como o faz em recorde.
- Escute o que vou lhe dizer, comendador. Se a Pirokah ganhar hoje em recorde, vou direto neste tal de Aguirre e a compro por qualquer preço. Aliás o senhor conhece este Aguirre?
- Não. Sei que possui uma cocheira cheia de cavalos, mas poucos são aqueles que chegam a pista. E quando chegam fracassam.
- Isto também me lembra muito aquele desgraçado do Mardel - completou o banqueiro expelindo fel em seu hálito.
Hora de picar a mula.
- Con permiso. Vuelvo en unos minutitos.
E se afastando das duas lacraias sanguinolentas, Mardel desceu as escadas aos trancos e barrancos, na tentativa de avisar ao Busta de sua nova intenção; A de segurar a Pirokah, antes que esta se tornasse um veículo para arrombar a sua região glútea. Chegou a tempo a cerca, gritou pelo Busta, mas só então se deu conta que se esquecera do problema auditivo de seu jockey. O máximo que conseguiu com seus acenos foi um aceno de volta do surdo que sorria e parecia confiante.
Agora era tarde. Só havia uma derradeira alternativa. O negócio era retirá-la da carreira por ordem veterinária. Mardel se encaminhou rapidamente ao edifício ao lado aonde se encontrava a comissão de corridas reunida. Lá chegando foi recebido por um dos comissários de carreira.
- Que barbada não don Aguirre que o senhor tem neste páreo?
O cumprimentou o chefe da comissão de corridas.
- Una yegüita preciosa, Pero en el paseo la vi que estaba rota. Una lastima Tenemos que retirarla.
- Como retira-la, don Aguirre? Sua Pirokah é a franca favorita e já está a caminho do largador. Se a retiramos o público quebra tudo. Desculpe mas é totalmente impossível. Fora de propósito!
- Mas la sanidad del la yegüita?
- Não se preocupe. Vou me comunicar com o veterinário de plantão junto ao largador e peço para ele fazer uma avaliação. Se ela estiver sentida, como o senhor notou, ele também irá notar e a retira. Um momento.
Avaliação? O que o Mardel naquele momento necessitava é que um raio caísse bem no meio da cabeça da sua Pirokah. Como aquilo poderia ter vindo a acontecer? Todas as éguas estavam agora rodando por trás do partidor e por seu binóculo, Mardel podia ver que sua Pirokah era a mais robusta, cheia de vida, e certamente a mais excitada de todas. O surdo quase que não a conseguia manter em suas mãos.
- Cai filho de uma égua… cai… - balbuciava entre dentes, quase mordendo os lábios.
Mas a bosta do Busta não caía. Ela pulava que nem cabrito e ele mantinha-se no dorso com a Pirokah espumando... Melhor, assim. Talvez houvesse a chance dele cair no percurso, ou quem sabe a Pirokah pulasse a cerca...
- Tenho boa noticias, don Aguirre.
- La van a retirar?
- Não. Ela está sã.
Como sã se ela puxava de uma perna?
- Sanita?
- Sim.
- Mas la pierna...
- Ah, o fato dela o puxar do posterior esquerdo, o Busta garantiu ao veterinário que nunca foi problema
- Nenhuno problemita?
Surdo desgramento!
- Nada, nada, nada! Nosso veterinário garantiu que não há nada de errado com a sua Pirokak. Ela esta tinindo e o Josias me segredou também que não vê jeito dela perder esta carreira. O Busta está gozando todos os demais adversários dizendo que hoje a Pirokah dele faz a festa. Não se preocupe, homem de Deus. Acredite, sua Pirokah está um colosso.
- Nenhumo conosco la Pirokitah como yo.
- Acalme-se homem, tudo dará certo. Hoje é o seu dia.
Era o que Mardel mais temia. Talvez hoje fosse o seu último dia...
- Fique aqui para assistir a carreira conosco.
- Gracias, mas me tengo que ir.
      Mardel queria estar o mais perto possível do portão de saída, quando a catástrofe viesse a acontecer. Mas seus temores foram dissipados logo na largada. Ou melhor na largada das outras, já que o Bustamante não ouviu o grito do juiz de largada e saiu do partidor com um grande atraso.
- Deus seja louvado. Juro que não apronto mais
Mardel, fez o sinal da cruz, espalmando a seguir beijou suas mãos em ritmo de oração. Como sacou que dera bandeira, pois, alguns notaram o seu gesto, completou agora com o semblante cravejado de preocupação:
- Que azar... que azar... com mi pirokitah...
Pirokah, que dera cerca de dez corpos de vantagem as suas nove outras adversárias, chegara ao final da reta oposta já colada na penúltima, mas embora aquilo inquietasse um pouco a Mardel, não havia jeito dela alcançar as ponteiras e ainda ter resistência para chegar ao disco na primeira colocação. Não comendo o que ela comia e sendo injetada de água da bica como se fosse soro. Era eqüinamente impossível. Ainda mais que o surdo havia decidido mantê-la junto à cerca aonde dificilmente iria encontrar passagem. Estava salvo, pensou Mardel, graças à incompetência do Bustamante.
      Mas é aquela velha estória. A gente só se lembra que esqueceu o guarda-chuva, quando o temporal já está caindo sobre a cabeça. De tanto galopar para ver se quebrava Pirokah, Mardel fez com que sua pupila adquirisse uma estamina (capacidade de se chegar à distância) bárbara. Uma a uma, Pirokah foi as passando na cara, sem que o surdo necessitasse sequer fazer uso de seu chicote e a 200 metros do disco só tinha duas adversárias a sua frente e uma colada em seu lado. Um caixote que nem o David Copperfield seria capaz de se desvencilhar. Mardel sorriu e abaixou o seu binóculo. Não havia mais jeito. Graças ao bom Deus, o surdo tinha jogado mais uma fora.
Caminhava de volta para a social, quando um brado da galera o fez trazer de volta o binóculo a seus olhos. Meu Deus, o desgranado do surdo conseguira uma passagem junto aos paus, usara seu chicote com a esquerda e sua Pirokah estava arrebentando com todos. Tomara de golpe a segunda colocação. Amaldiçoado seja o senhor, ela iria ganhar.
          - Deus por favor, me livra só desta. Por favor...
E suas preces foram ouvidas. Há 20 metros do disco a cansada ponteira veio para dentro e por um segundo Pirokah afrouxou, recolheu sua cabeça e cruzou perdendo por uma diferença mínima. Mardel respirou aliviado. Graças a Deus ele fora salvo pelo Gongo. Não o tradicional gongo e sim o Pedro Gongo, o jockey da Xexelenta.
Dois turfístas que cruzaram com Mardel o consolaram:
- Que pena don Aguirre. Sua potranca correu uma barbaridade. Se tivesse orelha, poderia ter ganhado na foto. Na próxima é barbada.
- Que le vamos a hacer? - respondeu ele com aquela cara de desconsolado, mas sabendo que não haveria uma segunda vez.
Aquela filha da mãe ia ter um ataque de coração ainda aquela noite. Era só colocá-la no seguro no final da tarde.
Mardel já estava na parte inferior da arquibancada quando um outro turfista vindo em sua direção, tentou lhe incutir algum ânimo.
- Acho que o senhor leva esta. O Busta acabou de reclamar. Vão desclassificar a Xexelenta.
O coração de Mardel disparou. Aquilo não podia acontecer. O que aquele surdo de merda tinha na cabeça? Mardel correu de volta em direção a comissão de corridas e quando lá chegou se viu barrado na entrada pelo negão Alcibíades. Colorado e como tal fedorento.
- A comissão está reunida com os jockeys e estão decidindo o que vão fazer - objetou aquela porta de ónix humana, postada a sua frente com os braços cruzados a altura do peito.
- Yo quiero explicarles...
- Não se preocupe, don Aguirre. Antes dos jockeys subirem, ouvi um dos comissários dizer que é desclassificação na certa. O senhor já levou esta. Não se preocupe. Vá para o caixa recolher o seu.
Caixa? Recolher o seu. Baaaaaaaaaaaaaa! Como se ele não se dera nem ao trabalho de jogar? Tinha que interferir naquela decisão antes que fosse tarde. Mas era tarde. A porta se abriu e pela cara do Gongo, o resultado não lhe fora favorável. Atrás dele, abraçado com o chefe do comissariado estava o pateta do surdo, sorrindo qual um louco, pela sua segunda vitória em três anos. Quando todos o viram, convidaram-no a entrar.
- Vamos brindar uma champagne, don Aguirre, por sua primeira vitória aqui no Cristal.
Don Aguirre cruzou com Bustamante, que emocionado lhe deu um abraço e lhe beijou as mãos com as lágrimas escorrendo de seus olhos. Parecia por demais agradecido. Mardel sentiu vontade de estrangular-lhe lentamente. Não lhe faltaria a oportunidade.
- Com a sua Pirokah patrão, vamos ganhar o Grande Premio Brasil. Tri legal! - e desceu para tirar a fotografia.
- Você não vai para a foto, don Aguirre? - perguntou um.
- No, no. No me gusta hacerme ver. Ademas la propietária no vino.
- Feliz com a desclassificação? - perguntou outro.
- Penso ser anti deportivo. Deberíamos mantener el resultado. No lo quería perjudicar a Gongo menos a los otros propietarios...
- Que nobreza. Que espírito. Don Aguirre são de treinadores como o senhor que nós precisamos por aqui no Cristal. E não desta corja de Juvenals, Laércios, Euclides e Mardeis da vida, que graças a Deus foram daqui corridos -comentou o chefe do comissariado.
- Si, si, como no? Mas...
- Ponha algo em sua cabeça Don Aguirre. O Gongo é que prejudicou. Não o seu jockey a ele. Esta é uma das melhores potrancas já aparecidas no Cristal. Pirokah vai arrebentar com todos. Só uma fenomena poderia dar a vantagem que deu, atropelar pela cerca e ainda chegar aonde chegou montada pelo Busta. E só o senhor também com a sua nobreza peculiar de espírito, podia dar uma chance como estas ao surdo. O senhor tinha uma barbada e apelou para seu espírito humanitário dando uma verdadeira chance ao pobre coitado. Isto é mais do que nobre.  Isto é humanitário, quase divino.
Abraçado pelo chefe do comissariado, Mardel só pensava numa forma de sair dali o mais rápido possível. Suas quatorze proprietárias já deviam estar pulando em frente à televisão e procurando localizá-lo no celular. E Mamute a caminho de sua cocheira para arrancar a sua Pirokah. Ele tinha que picar mula...
- Qual das três é a dona de sua Pirokah? - perguntou inocentemente o Dr. Camacho, um dos comissários sérios daquela junta de vadios.
Mas o que realmente havia conseguido fora arrancar de todos uma gargalhada e do extrovertido Valério, um comentário, a mais:
- Deve ser uma das louras, ou quem sabe as duas. Não acredito que seja a terceira
- Ninguna. Son apenas unas amigas que vinieron conmigo... Tercera?  Usted dice tercera?
-  A velhota de vermelho com chapéu com pena de ganso.
Velhota? De vermelho com chapéu com pena de ganso? Mardel fez uso de seu binóculo e quase o deixou cair ao vislumbrar Fifi (o apelido amoroso pela qual Dona Firmina gostava de ser chamada) acariciando e beijando sua Pirokah à frente do hipódromo inteiro.
         Imediatamente veio a cabeça de Mardel o que as outras treze proprietárias estariam pensando naquele exato momento vendo sua égua sendo fotografada e ladeada por três outras mulheres. A presença das louras era fácil de se despistar, já que Mardel diria tratarem-se respectivamente da mulher e da cunhada do Bustamante. Normalmente jockeys tem esposas louras e com o dobro de sua altura. E naquele específico caso, coincidia. Mas a Fifi... Como ele justificaria a presença de Fifi? Ia ser difícil engolirem a Fifi ainda mais que agora ela estava pendurada em sua Pirokah. Não a largava nem por decreto.
        Talvez justificasse como sendo a mãe de uma das meninas? Ou quem sabe uma tia afastada? Algo assim. Até lá ele arrumaria uma desculpa. Sua maior preocupação no momento era o Mamute. O crime seria perfeito se o locutor não tivesse a terrível idéia de fazer uma entrevista e Fifi afirmar exultante ser ela a única proprietária daquela Pirokah.
- Ai don Aguirre. Amassa as louras e faz a velhinha pagar as contas de sua Pirokah - gozou o desbocado do Valério, se valendo como sempre da Pirokah alheia.
- E olha o Zequinha Mamute com aquele seu amigo. O comendador de São Paulo. Já chegaram na velha para lhe arrancar a Pirokah de suas mãos. Don Aguirre, desculpe lhe informar, mas estes dois vão retirar sua Pirokah antes do final desta tarde. Ela vai hoje mesmo para a cocheira do Edmundo Bastos. Duvido que a velha não venda para o Mamute. Quando o Mamute cisma, não tem jeito. Ele compra mesmo!
- Não há Pirokah que resista... - voltou a gozar o Valério, que por estas coincidências era primo de outro homônimo que careca como ele havia cagado com a fama do PT.
       - Não fique assim Don Aguirre. O senhor arruma outra Pirokah, logo, logo. Já provou ter olho clínico. Comprou uma égua sem uma orelha e que puxava de uma pata e viu aquilo que ninguém havia notado. Uma craque. O senhor é gênio.
Don Aguirre estava tão desnorteado que caiu sentado em uma das cadeiras. Seu fim era eminente. Paraguai agora? Talvez... Alcebíades interrompeu o incentivo do comissário de corridas.
- Uma tal de dona Firmina e o Zequinha Mamute com um amigo comendador de São Paulo, estão ai embaixo e pedem para subir pois, necessitam falar com Don Aguirre. Parece importante.
Melhor Venezuela. Se a besta do Hugo Chávez colava lá, porque ele não?

quinta-feira, 8 de abril de 2010

OLHOS DA COR DO MAR

Maria das Graças conheceu o Rio de Janeiro, acompanhando uma importante família política de São Luiz do Maranhão. Tudo numa rápida visita. Desceu moça pressurosa naquele que um dia viera a ser conhecido como o cais Pharoux. Em dois dias tornou-se mulher sem entender ainda o porque. Era o Rio de Janeiro que seus inocentes olhos de menina mulher de quatorze anos constataram, choraram, secaram e compreenderam. Era um Brasilzão que ela pela primeira vez tomava conhecimento existir fora do local que nascera. Um Brasil sem perdão. Bem maior que o Maranhão. Infinitamente mais populoso que Guimarães. Repleto de luzes, trânsito, comércio, gente... Um total despropósito. Devassidão. Sem vergonhice. Coisa do demo... do encapetado! Em Guimarães não havia disso não!

Apaixonou-se pelas luzes, mas ao mesmo tempo sentiu que aquele mundo não lhe pertencia. Pelos olhos com quem cruzou, que nunca a aceitaria. Era uma songamonga, de inteligência duvidosa e de inconsciência no saber. Tinha muque, perna forte, mas pensamento curto e por isto fora desde o inicio rejeitada, ridicularizada, seviciada e o pior de tudo, ignorada. O Rio de Janeiro era um outro mundo. Um mundo do qual ela nunca conseguiria introduzir-se e que, provavelmente, não a queria por perto. Um mundo de olhar torvo e de instintos travessados.

- Tá comendo vidro peste, eu não mãe tô comendo gelo!

Como o carioca gostava de mangar de nordestino. Buliam quando ela esgaravatava as unhas. Ou de seus pés espalmados, chatos e de dedos excessivamente separados, que durante anos a fio não conheceram o uso das alpargatas. Pés de pato, como dinda dizia. Como eram buliciosos o tal dos cariocas. Trela sebosa. Coisa de suçuarana cheia de veneno. Sentiu-se macambira, banzeira perante aquela gleba de desocupados. Todos na praia de papo para o ar. Ninguém saía ao mar para pescar. Iam na casa de peixe pagar por aquilo que podia ser conseguido no mar. Teve abuso. Doía em seu jovem peito. Dor pequena, mas que não sara nunca. Que nem piolho. Quis voltar e voltou a São Luiz e a seguir a Guimarães. O Rio de Janeiro, não lhe deixou saudades. Apenas rancor. Um dia iria lhe pagar.

Mas o que acontecia no Brasil, não afetava a colônia de pesca de Guimarães. A única coisa que tinham em comum, eram um idioma e uma moeda desvalorizada. Neste mesmo período, o Brasil passava por uma importante reforma monetária onde os mil-réis seriam substituídos pelo cruzeiro. Estes últimos, eram impressos no exterior, e como tal, perderam-se em grande volume, nas profundezas do Atlântico, vitimas de um destes ataques, ao qual os submarinos alemães vieram a ser acusados.

Sabedor deste fato Raimundo Ribamar, um maranhense nascido em Barreirinhas nos Lençóis Maranhenses, criado às margens do Rio Preguiça, e vivido sob o céu de São Luiz do Maranhão, achou que ali estava a chance de sua vida. O eldorado de sua emancipação financeira. Era achá-lo e pela primeira vez viver. Queria ser rico não! Mas não queria mais depender do trabalho de todo dia, para colocar comida em sua mesa.Dispensado do serviço militar por ter pés chatos, mas pés estes que funcionavam qual as membranas de um pato, Riba era reconhecido como um bom mergulhador, dono de um fôlego nunca antes visto e possuidor de um espírito indômito e aventureiro. Cabra retado, como diziam em sua terra! Tinha pacto com o demônio. Seu corpo era fechado. Nada de mal podia com ele acontecer. Rebelde por natureza, Riba não seguira a vocação de sua família em plantar babaçu e viver de sua venda. Ou ainda como seus primos copaibeiros. Extrair óleo de Copaíbas nunca esteve em seus planos. Riba gostava do mar, da solidão da espera pelo peixe, do reflexo da lua, da maresia corroendo suas entranhas, do salitre, do vazio do infinito, do azul que o poderia tragar e desta forma, não conseguia viver longe de seus sonhos e de sua realidade. O mar era a sua vida. Os peixes sua subexistência. A brisa seu horizonte. Aqueles cruzeiros a se achar, o seu futuro.

Ainda quando muito jovem Riba se transferiu para a colônia de pesca em Guimarães. Lá se formou como homem, pescador e posteriormente como mergulhador. Suas qualidades tornaram impressindiveis, seus serviços no coral Manoel Luis, uma extensão rochosa de 28 quilômetros, cerca de 80 quilômetros da costa. Lá conheceu turistas, ouviu suas estórias, vislumbrou suas fotografias e assim teve a oportunidade de descobrir que havia um mundo afora de seu horizonte visual. E dentro deste mundo um tal de Rio de Janeiro. A capital federal fora a cidade que maior impressão lhe causara. Era grande, importante, linda da gota! Decidiu. Não importava quando e como, mas era para lá que um dia ele iria se transferir. Com mala e cuia. Nem o papagaio iria levar. Seu filho haveria de nascer no Rio e ser gente importante. Questão apenas de tempo, mesmo a das Graças não gostando da idéia.

- O Rio não gosta di nós, Riba. Tive lá. Vi com estes oios que a terra há de comer. Eles mangam di nós. Tem piedade não! Umas sussuaranas.

- Deixe de tacanhisse muié. Com dinheiro vair dar certo. Dinheiro compra respeito

- Sei disso não....

- Deixe de abuso. Isto aqui é que não tem futuro não. É morte prometida.

- Aqui nós é feiz. Feiz que nim bode veio!

- das Graças. Escuta eu. Aqui não se vive, o tempo só passa.

- Arreda de sonho besta, homi. O Rio não é pra nós não. Tive lá. Foi lá que deixei de ser menina.

Das Graças dava um muxoxo e voltava a seus afazeres. Homi louco, que só sonharva com cidade grande. Merecia um cocorote no cucuruco.

Mas a noite chegava e na cama de varas, cheia de nós, todas as divergências eram esquecidas nas primeiras caricias de seu Ribamar. Ô homi de mão leve. Calosa, mas que que sabiam tocar como ninguém. Caricias que lhe davam impressão de repouso. Fazia bem. Pouco a pouco a zanga era esquecida.

Como galo novo, Ribamar adorava o silêncio e acordava mais cedo do que todo mundo no arraial, para desfrutar o dia melhor. A solidão da madrugada, o orvalho ainda presente nas folhas, o piscar sereno dos vagalumes e o zumbido da maré cedendo aos desejos da lua que se ia, determinavam para ele os primeiros movimentos do alvorecer. Quem conhecia como ele conhecia o nascer do sol, não tinha dúvidas que Deus existia. E se existia, haveria de o ajudar a achar aquele tesouro. E olhando o vai e vem das marolas sentia-se atraído para o mar. Contava os minutos para bater a porta do cumpadré Zé, para sentar velas. O que haveria do outro lado? Um dia haveria de saber.

Guimarães era um lugar pacato, insosso que nem o café da cumadre Benta. Onde céu, montanha e mar se uniam em uma mesma cor. Em dia de tempestade, quando todo mundo arreliava-se e nenhum pescador tinha coragem de se embrenhar mar adentro, era Ribamar que fazia as vezes de todos. Trazia o sustento da comunidade, sem ônus algum para quem quer que fosse. Repartia o que pescara sem preocupação de lucro ou agradecimento. Afinal, ganhar o que? Coisa nenhuma podia esperar, pois, ninguém ali em Guimarães tinha algo a dividir, que dirá a pagar. Mas isto não lhe importava. Era pescador por convicção, não por necessidade.

Magro, pele esturricada pelo sol, de pouca estatura olhos lânguidos, Ribamar não era aquilo que poderia ser considerado um homem bonito. Mas servia de bom grado para Maria das Graças. Tinha asseio, era respeitador, dava cheiro no cangote e tinha pouco calo no pé. Costelas aparentes, maxilares salientes, cabelo ao vento em total desalinho, barba rala por fazer e poucos dentes para roer a rapadura. Ribamar igualmente não procurava por companheira, nem estava preocupado com que os outros podiam achar de sua aparência. Era homem do mar, que se sentia pouco confortável em terra firme e saído da água se enfurnava em seu casebre a espera da oportunidade a voltar a pescar. Maria das Graças era o inicio e o fim de seu dia. Sem medo ou documento, hasteava sua vela e desafiava as ondas até encontrar mar aberto. E lá lutava contra peixe de qualquer tamanho, pois, não levava abuso para casa. Nem as rajadas de tempestades próximas o faziam desistir. Cabra macho que acreditava no destino, sempre dizia aos seus: se for hoje, nada posso fazê.

Mas sua vela era sempre vista no final do dia e com ele a certeza de mais uma aventura vencida. O mar o respeitava. Seu destino era ter peito fechado. Mas foi este mesmo destino que o colocou um dia de domingo, a frente de Maria das Graças. Mulher infatigável como as formigas que passavam junto a seus pés descalços, chamou, imediatamente, a atenção do pescador. Se sentiu suspenso no ar. A luz do sol branda, rala e descompassada, coada através das nuvens, caía aos pés daquela visão que enchia suas pupilas, como um manto bordado. Ela era linda. Braços e pernas bem torneados como alguém capaz de trabalhar qual um mouro. Daria boa mãe e melhor companheira.

Viera de São Luiz do Maranhão mulher, onde sua mãe trabalhara por muitos anos na casa de familia de políticos. Fora criada como da familia. Possuía esperteza de movimento, lentidão no olhar e falava como gente estudada. Ribamar não se preocupou. Afinal ele não era nenhum Rui Barbosa. Das Graças era viajada. Conhecia o Rio, o Pará e Pernambuco. Andara de navio e de carro. Tinha noção do mundo e jeito com a gurizada. Até babá havia sido. Era zelosa e esperta, pois, em casa de político quem não o for, não dura muito. Poderia criar os rebentos que iriam vir as dúzias. Boa arrumadeira, coisa que aquela xoça precisava e não era muié que tava de oio no sustento.

 E aonde se deu o encontro? Aonde ninguém parecia poder conhecer alguém; em Guimarães. Foi exatamente lá, onde o vento faz a curva e siri se recusava a andar de costas, que Ribamar conheceu Maria das Graças, que de tão pobre não tinha dentes ou mesmo um sobrenome, mas que era capaz de deixar qualquer homem fora de órbita com seu corpo curvilíneo e sua maneira de cozinhar cheia de tempero. Lábios carnudos, nádegas salientes, olhos brejeiros e bochechas salientes, determinando em todos os seus mínimos detalhes, significativos vestígios mulatais.

- O vi na praça junto da sé, com os oínhos posto ni mim. Parecia  cachorro magro atrás du osso. Desconjuro - contava ela a todos, sobre o primeiro encontro que tivera com seu Ribamar.

Expressão safada, sorriso matreiro abaixo daquele seu buçozinho trigueiro e que ela recusava em aparar e Riba adorava acariciar.

- Parecia um robalo a sair da água. Lisinho e graúdo. Mas com jeito de carne boa - completava ele certo que as palavras encobriam seus pensamentos, naquela eterna luta de quem quer não querendo, a espera do safanão desferido pela mulher, que sempre seguia aquela sua observação.

Mas era um safanão carinhoso, que não causava dano nem desprezo. Coisa que só nortista sabia fazer. E Ribamar se punha rir. das Graças tinha seus dias de amanhecer nos seus azeites e quando isto acontecia era melhor não dar trela as suas inconveniências. Mas era moça boa, bem intecionada, prendada e fiel. Assim a vida os fez juntar seus trapinhos e morar no mesmo casebre, que então era só de sua serventia.

A choupana era resistente. A prova de chuva e vento forte, como seu dono. Os esteios de aroeira mantinham-se eretos, fincados no solo e estavam bem amarrados com cipó. O enchimento de taipa era novo. Ribamar o renovava a cada chuvarada braba. Só deixava passar o som. Mas o casal era monossilábico. Não eram de tagarelice. Pouca arenga, muito beijo. Que nem murissoca. O encarquilhado comodo iluminou-se, coloriu-se com a presença de das Graças, e se fez lar. O que era para dividir-se, mutiplicou-se. Riba se sentiu mais livre para aventurar-se mar a dentro. Tornara-se homem de bem. Homem de destino traçado, de corpo fechado e com um sonho a sonhar.

O tempo provou que das Graças era mulher para toda serventia. Não levava desaforo para casa, não era chegada a conversê e embora roncasse (fato nunca admitido), era de chamego, de namoro de pé e cheirava a mato molhado. Por sua vez, das Graças tinha uma vitalidade difícil de ser equiparada. Não possuía a indolência própria dos demais habitantes de Guimarães. E não era a toa que diziam as más línguas que seu pai não era aquele moribundo do Caetano e sim um muito bem afeiçoado caxeiro viajante que passara pela capital e que segundo, dona Maricota sem nada conseguir vender, enquanto o podre do Caetano estava no mar lutando pelo sustento de sua familia.

- Não vendeu nada e saiu com um sorriso de orelha a orelha... - deixava claro Dona Vevé, que tinha miopia mas não era cega, muito menos burra e ademais tinha a credibilidade de quem morava em casa de frente.

- E Maricota, saiu logo depois, cantarolando Vicente Celestino. Vejam só, logo o Vicente Celestino! -  complementou Dona Zininha, da casa dos fundos, piscando o olho, o único que lhe sobrara da diabete nunca curada.

- Tava na cara que nove meses despois, criança ía chorar - Foi mais direto ao ponto a Dona Avelina, que embora fosse nova nas redondezas, já conhecia aquele filme de outros cinemas.
Avelina mulher calejada de cidade grande. Mulher de São Luiz, que vira o crescimento de uma cidade, o achatamento das classes sociais e fora expulsa com o progresso, como a família de das Graças, muito a contra gosto, a procura da sobrevivência. Ela e todas as outras fofoqueiras que falavam mal de sua maínha. Das Graças as odiava.

E mais criança estava por chorar. Grávida de Ribamar ainda muito jovem, das Graças foi até a praia se despedir de seu companheiro, quando este resolveu sair em sua jangada com o cumpadre Zé e dois amigos, afim de resgatar aqueles Cruzeiros novinhos em folha, afundados pelo submarino dos tais de alemão. Era tesouro, já que o Cruzeiro ainda não havia entrado em circulação e por isso mesmo ainda não tinha se desvalorizado.

- Mar tá revolto, Riba. Tem cheiro de tespestade no ar.

- Liga não. Isto para mim é ventinho de proa.

- O vento é peçonhento que nem cobra traiçoeira. Perdoa não. Tu tem fio pra criá!

- Esse não. Esse é vento sul, maroto. Incapaz de torar sono de ninguém. Só quer bolir com a saia das moças. Si preocupa não, meu quindim.

- Num brica com isso não. É vento traiçoeiro. Muda sem avisar.

 - É vento sonoro, que traz sussuro misterioso e uma ou outra travessura. Coisa pequena. Se preocupa não. Tenha a reza do meu lado.

 - Tá dizendo isto, para eu pude dormi.

 - Né isso não, muié. É vento amigo que ensina o caminho de volta.

 - Deixa de ser teimoso, homi de Deus, que vai vir um mar tempo da gota! O vento tá arrevesado. Deixa para lá o tesouro. Num precisa disso não.
  
Ribamar tinha consciência que quando das Graças embatucava, vinha muito despropósito de reboque. Mas ele era homem de palavra fácil e de pouca pabulagem. Deixava as zuretagens para a muié.

 - Se preocupa não das Graças. Já vi negrume pior. E depois, temos que pensar no bacuri - consolou ele, batendo suavemente com sua mão espalmada na protuberância que se avolumava abaixo de seus seios.

Ventre mutante, que crescia e reverberava com os movimentos do rebento que em poucos meses iria expelir.

- Cabeça de Jegue. O que me adiantará este tal de tesouro, se ocê não vorta? Como vou atomar conta do bacuri?

 E fez cara de trombuda.

- Se achar o que procuro, nós arruma a trouxa e poe perna na estrada para a capitá.

- Diga isto não! Conheço aquela joça. Não é pra nois não! - Ribamar sorriu com a cara feia que das Graças fez. Beijou o beicinho de raiva - Desafasta, o estropim.

 - Meu doce de açaí.

 - Tribufu!

Ele arredou-se com aquela falsa tristeza no ar. Olhinho pequeno, cabeça baixa. das Graças comoveu-se e o puxou de volta. Ele arreganhou os dentes.

- Cabra safado. Enganando eu.

- Vorto sim. Não tome abuso de mim.

 - Tomo - resmungou ela sem convicção aparente.

- Tome não. De aqui um cheiro cheirado.

- Dô não!

- Dê!

- Vá pro inferno, cabra da pesta. Tu tá de coisa com o demo - e fez cara de quem tivesse tomado água salobra.

- Vem cá meu juazeiro cheiroso.

- Pegue não! Tu sabe que não tô pra coisa.

Mas ele cafungou em seu pescoço. das Graças sentiu aquela quentura e ali mesmo deu-se nova prova do amor. Com a iluminação minguada das Graças, abraçou-se a Ribamar e durante o ato não deixou que ele visse as lágrimas que se formavam nos cantos de seus olhos. Marejaram felinamente mansos.
    Pela manhã, das Graças despertou com o barulho de Ribamar abrindo a porta do casebre. Estava pronto para enfrentar o mar. Mas como que pressentindo ele voltou-se para ela e a olhou. das Graças se perdeu na imensidão daqueles olhos verdes envolventes. Os olhos de Ribamar tinham o chamado do mar, o apelo das ondas revoltas, a necessidade de desbravar o desconhecido. Eram misteriosos e imensamente profundos. Eles eram o oceano em toda a sua imensidão e incertesas. Tinham a vítrea matiz azul-esverdeada de rara docilidade. Olhos da cor do mar...

A porta se fechou e ao mar, ele se deu. O minutos se passaram. Maria das Graças olhou para o céu e não gostou do que viu. Nuvens negras, galopando de forma feroz. As primeiras rajadas sufocantes do noroeste encontraram seu corpo quando ainda na janela de sua casa. Teve aquele prenúncio de coisa ruim. Encolerizou-se. Tinha que demove-lo. Correu para a praia, sem ao menos calçar a alpargata. Particulas microscópias de areia enfestaram os seus cabelos soltos em desalinho quando afogados pelo vento que soprava forte. Rebrilhavam que nem lantejoulas aos primeiros raios de sol. Era tarde, a jangada já se derá ao mar.

O barulho dos ramos das árvores era um outro prenúncio que as coisas iriam piorar, ainda mais que os passarinhos de uma hora para outra haviam desaparecido. As ondas estavam se avolumando. Esculturas mutantes de espuma vinham beijar seus pés descalços. Em segundos, Maria das Graças não pode ver mais a vela da jangada de seu companheiro. Varara o horizonte. Desaparecera antes do infinito, na bruma densa que se toldava sorrateira de uma hora para outra. Uma dor profunda assolou seu peito. A dor de quem nunca mais iria ver aqueles olhos da cor do mar...

 - Desconjuro. Vaia-me Deus, nossa senhora - bramiu fazendo o sinal da cruz, com aquele pensamento.

 - Vem pra casa das Graças, que a chuva vai cair - observou a cumadre, cujo marido ao mar se deu com Ribamar.

Mas dali não arredaria pé! E na praia das Graças ficou. Não arredou pé um segundo sequer, nem quando quarenta minutos depois a chuva caiu qual uma cascata sobre seu corpo. Tremia de frio, mas se manteve ereta, com a mão espalmada sobre os olhos, a procura de qualquer indicio que a levasse a crer que tudo estava bem com seu companheiro. Olhava para o nada, vendo tudo o que não queria ver.

 - Vem pra dentro, muié! O céu vai desabá! - ordenou a cumadre Odiléia pela segunda vez.

 - Vô não. Chuva nunca mata ninguém. Quanto mais uma aparvalhada que nem eu. Fico aqui.

Escureceu antes da hora e as descargas elétricas se tornaram ainda mais constantes. O céu parecia furioso, revoltado. O mar agigantou-se e o soar da tempestade aterrorizou seus ouvido. das Graças temia o truvão e nunca fora muito amiga do escuro. No céu, estrela alguma bateu ponto naquela madrugada. E nada do Ribamar.

- Coisa do desconjuro! - pensou consigo controlando-se para não entregar-se ao temor.

Novamente fez o sinal da cruz de forma mecânica. Truvão era coisa do rabudo! Do pessonhento, do escarro desumano. Cada relampâgo iluminava melhor aquele perfil roliço e destituído de qualquer juventude e nem as visinhas mais chegadas, a conseguiram dissuadir de sua desmedida vontade de permanecer na praia até que Ribamar voltasse.

 - Venha para dentro muiê. Isto faz mal ao menino? - apelou Póla Negri.

 - Vô não! Daqui não arredo pé até o desgramado do Riba vortá.

 - Pensa no bacuri que tá para nascer - intercedeu a corcunda Matilde.

 - Tô bem aqui. O menino tem a coragem do pai. Não tem medo de truvão nem de chuva molhada. Vai ser cabra retado.

 - Ôce não tá com frio, muié? - perguntou a cumadre

 - Frio da gota, num matá. Daqui não arredo pé, até Riba vortá!

 - Cabeça de jegue! - esbravejou Olegária, vencida em seus apelos.

 - Vaia-me Deus! - benzeu-se dona Zefinha, que sempre acreditara que tempestade era maldição divina para punir gente pecaminosa.

E como ela naquela sexta-feira tinha pecado... correu para casa. As visinhas igualmente desistiram. Uma compadecida, uma cadeira deixou. Mas das Graças não a usou.

A luz pálida da tarde sôfrega se dissipou novamente. A nova noite varreu a praia sem lua e sem piedade. O tempo passou rápido, pois das Graças perdeu a noção do mesmo. Um novo dia amanhaceu, se fortaleceu, a tarde dissipou as nuvens. A chuva parou, o céu avermelhou-se, mas com o tempo perdeu sua luz e das Graças não arredou pé e enfrentou o novo negrume espigada, em seu corpo moreno fechado e cansado pela fadiga da maratona pela qual estava sendo obrigada a passar. Dois dias e nada.

- Coma algo muié. Se não for por você, pelo menino – apelou a sempre prestativa Olegária, que não tinha inveja no coração.

- Tô com fome, não.

 Não adiantava discutir. das Graças quando empacava era pior que mula cega, pensou a cumadre deixando a seguir o prato aos pés da amiga perante sua total recusa. Maria das Graças era a mesma mulher, dois dias mais velha ainda ereta, e não resignada. Riba haveria de voltar.

    Outros ventos, outras velas, mas não aquela que ela ansiava rever. das Graças continuava açodada pelas intempéries, mas não arredava um milímetro do chão conquistado. Nem o apelo e o consolo linitivo trazido pelos outros pescadores, a faziam mudar de idéia. Velas ao mar, procura incessante, mas nem vestígio de Riba e seus três companheiros.

    - Dona das Graças, não achamos o Riba não - desculpou-se Aparício ao final do quarto dia com os olhos buzuntados de lágrimas.

    - Escafundou-se - justificou-se o Zelão, pelo cansaço que sentia depois de dois dias de busca sem pregar olhos.

    - Procurem, que o desgramento está lá! - ordenava das Graças sem fita-los, tendo seu olhar perdido no horizonte.

E eles obedeciam, pois, tinham no coração que Ribamar faria o mesmo por eles. Dia após dia, o procuraram. Uma semana se passou. Outra mais. O que aconteceu? Ninguém podia responder. Só havia uma realidade no ar, Sebastião Ribamar foi e não voltou. Nada dele, nem de seus amigos e muito menos da jangada.

Jangadas voltaram a ser lançadas incessantemente ao mar. Semana após semana. Braços voltavam cheios de peixes, mas nem vestígio de seu Riba. As buscas nunca trouxeram as respostas que das Graças gostaria de ouvir. O tempo passou e Ribamar não voltou. Mas das Graças não desistiu e se quedou.

Perdeu peso, ganhou cor, foi tomada de febre e de dor até que o corpo cedeu a força do fragelo e ela desabou. Em sua cama por três dias e três noites tremeu ante uma temperatura de 41 graus. Seus lábios queimados pelo sol, recusavam-se ainda a comer, mas a sopa era trazida e despejada goela a dentro. Até rezadeira foi chamada. No quarto dia, das Graças sarou e se conformou. Riba não iria voltar.

A população de Guimarães rezou mas esqueceu-se. Pobre não pode se dar ao luxo de sonhar, quanto menos esperar pelo leite já derramado. Mas as estórias proliferaram-se como fofoca no plenário. Os admiradores, diziam que Riba e seus companheiros foram devorados pelos tubarões, outros nacionalistas acreditavam que um torpedo de um submarino nazista os levara pelos ares e haviam até aqueles maledicentes de olho no corpo e nos quitutes de das Graças, que arriscavam a afirmar que o malandro havia achado o tesouro e se mandado para o Rio Grande do Norte com os amigos, para tentar uma nova vida cheios de tutu.

- Tão cheios de tutu. Pra que vortá?

Tinha que ser o Eriovaldo, que sempre teve uma queda pela muié dos outros, principalmente as viúvas, pensou a cumadre, que embora igualmente desesperançosa com o desaparecimento de seu marido, sabia que não havia perdido muito.  O Zé era frouxo e não dava no couro de há muito...

“Ê, ê, ê, é de doer!
Na Índia, quando zangam
Deixam de comer...”

Era a voz do rádio de dona Clorinda chamando pelas modinhas do carnaval do ano próximo. O único do vilarejo. Mesmo sem ser índio, quem ficou sem comer foi a das Graças que simplesmente não sentia mais vontade de viver. Sem um teto, um futuro e muito menos um pai para o seu filho que iria nascer em semanas, das Graças aceitou o convite de ser cozinheira em um cargueiro grego que partia para a Ásia com uma carga completa de babaçu e borracha. A batalha fora perdida, mas a guerra ainda não. Em algum lugar daquele mundão que ela conhecia, haveria de encontrar Riba e ademais nada era mais feio e tão triste do que Guimarães sem aqueles olhos da cor do mar...

Na viagem ela tomou conhecimento pelo rádio da existência de uma tal de Carmem Miranda. Voz brejeira, cheia de vida. Vida de um mundo que estava a sua espera e que seu filho iria conhecer. Um mundo que havia engolido suas realidades, mas não suas esperanças. E todas as manhãs fazendo sol ou caindo chuva, antes de enfrentar o fogão, das Graças corria até a balaustrada do navio e por minutos ficava com os olhos perdidos no horizonte na esperança de um dia avistar a vela da jangada de seu Riba. Fato que se repetia na calada da noite após o termino de sua faina diária. Sua barriga crescia, e sua esperança mais ainda. Sentia o cheiro do riba. Esquecia-se que era o cheiro do mar... E dia após dia a cena repetiu-se. De pé no chão, sem orgulho ou dignidade, das Graças se mantinha ereta junto a balautrada, em sua procura insana, ciente que talvez nunca mais iria ver o pai de seu filho. Com o passar dos dias, um torvelhinho de toques. Será? Pensou ela, sem se deixar levar pelo temor.

O novo Brasil que ficara para trás, vivia uma tropical anarquia institucionalizada, onde o caudilhismo e o paternalismo confundiam-se e esmeravam-se em ofuscar a verdadeira situação reinante. Mas isto nada importava a das Graças, cujo país e vida só tinham um sentido e este se chamava Ribamar. Havia uma guerra, que ela não tinha nem tomado conhecimento. Havia aquela vontade louca de Riba em achar aquele tesouro e ir para o Rio de Janeiro. Aquilo amargou-lhe a boca. Só tinha um pensamento na telha. Ribamar desaparecera e mais uma vez aquela terra maldita do Rio de Janeiro fora culpada.
Das Graças, desaprendera a chorar. Todo o seu pranto, todas as suas lágrimas haviam extinguindo-se naquelas semanas de espera. Endurecera sua expressão. Enrigecera sua maneira de pensar. Emparedara qualquer tipo de sentimento. Tornou-se uma mulher de pedra. Sem sentimentos, sem recordações, apenas um objetivo. Dar a vida a aquele que estava em sua imensa barriga. Faltava pouco. Não mais que dias.

Tentava recordar-se de Ribamar, já que suas feições pareciam estar dissipado-se em sua lembrança. Borrões como nódoas negras e profundas rabiscavam seu cerebro. A única coisa que das Graças não conseguia desgravar de sua memória, eram aqueles olhos verdes, densos qual aquele mar que agora tinha a sua frente, e que quase também iria lhe sugar a existência. Pois, nada da jangada. E sim um torpedo perdido, que pós a pique aquela embarcação e seus sonhos.

Acordou com o salitre em sua boca. Estava sobre um grande pedaço de madeira que a fazia flutuar. Nada a sua volta. Sentia-se perdida, sem rumo, mas com a esperança que seu Riba a iria encontrar. Voltou a olhar em torno de si. Apenas a imensidão do mar. Sentiu aquela dor profunda e em minutos pariu seu rebento. Trouxe-o a seus braços. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Era Riba que estava de volta. Não tinha como se enganar, pois nunca pudera esquecer aqueles olhos da cor do mar...

Renato Gameiro