Porque? Porque? Porque?
Eram muitos porquês. E todos vindos de uma pessoa que acabara de tomar conhecimento de sua existência minutos antes. Um homem de meia idade ilustre, letrado, possivelmente culto, mas que parecia encontrar razões para todo e qualquer ato que havia ele cometido em sua vida pregressa. O odiava, sem possivelmente conhecê-lo. Como num texto de Sheakespeare. Era um porque aqui, outro ali e mais um acolá. Como aquele senhor tomara conhecimento de cada pormenor de sua existência? Quem lhe dava o direito de conhecer mais dele do que ele a si próprio. Por ele intitulava-o um mal filho, um insano aluno, um deprimente pai de família e um assassino frio e premeditado?
E tudo isto vindo de um sujeito alto, magro, com cabelo embasado em gomalina e de unhas polidas. Usava um ostensivo relógio de ouro e uma gravata que deveria ter custado mais do que um salário mínimo. Devia ter camisas com monogramas, pijama de seda, fumar charuto e dirigir um conversível. Em qualquer filme de ficção ele seria o crápula. Aquele a quem não se devia confiar. O cínico inveterado. Porém, naquela pantomima armada que tornaram sua existência, o gomalina era o mocinho. O herói que ali estava, com o único intuito de desmascarar o bandido. Ele, o réu.
E a ele, a razão de tudo, era proibido o simples recurso de retrucar. De defender-se. De expor as verdadeiras razões que o levaram a fazer isto ou aquilo. Tinha suas mãos atadas por algemas. Seus pés unidos por correntes. Usava um ridículo uniforme laranja. Mas na verdade o coação maior perante a seu corpo era a inabilidade que haviam criado dele usar seus sentidos. Estava proibido de falar. Em sua boca haviam esculpido um invisível zíper. De mover-se. Era mantido acorrentado. Esperava apenas pela ordem de parar de respirar.
Quando sentia que era hora de intervir, seu advogado obstruía suas intenções e de forma grave retrucava: “não deteriore ainda mais sua situação”. Em que mais sua situação poderia ser deteriorada? Se já era tratado como nitrato de pó de merda. Mas aquele a seu lado, era o homem a quem fora aconselhado ouvir. E sempre que possível, confiar e obedecer seus preceitos. Afinal, era idoso, gordo, pequeno, careca e usava lentes que mais pareciam o fundo de uma garrafa. Uma enciclopédia jurídica. Como, uma pessoa com estas descrição, não poderia ser vista como um homem de respeito?
Mas da mesma forma, como poderiam aquelas doze pessoas que a tudo ouviam caladas e qual entes apalermados, saber quem ele realmente era se era ele o único ser humano naquela abafada sala, que não era ouvido? Sentia que os olhares de alguns daqueles doze, procuravam assuntar sua personalidade de forma furtiva. E ele, que teoricamente deveria ser o centro das atenções por se tratar do réu, não era ouvido. Sequer consultado. Notado? Duvidava. Então o que fazia ali? Não teria sido mais prático, ao invés de transladar-lo de sua cela com todo aquele aparato policial de segurança, colocar uma foto sua sentada naquela cadeira? Pois, era como se sentia. Uma imagem pétrea.
O passo seguinte seria imputar-lhe a culpa pelos gastos que o estado estava fazendo para que ele tivesse aquilo que chamavam de um julgamento justo. Julgamento justo, onde ele não falava, apenas ouvia. Aquele era a sua primeira experiência em uma sala de tribunal. Pela maneira que o caso estava se conduzindo, previa ser igualmente a última.
Era uma sensação estranha. Ver sua vida dissecada por estranhos a quem nunca vira ou sequer dirigira a palavra no decurso de seus 42 anos de vida, ainda incompletos, e ser obrigado a manter-se à margem. Aquilo o incomodava vagamente. Tudo se desenrolava sem a sua permissão e intervenção. Falavam de seu passado, imaginavam suas intenções e previam o seu destino sem sequer lhe pedir uma opinião. Do momento em que fora preso, até ali, perdera a capacidade de gerar seus próprios movimentos. Passara a ter hora de andar, tomar banho, fazer suas refeições e dormir. Regraram-lhe a vida como ele fosse um bezerro a espera de sua hora de corte.
Estava tentado a intervir. Gritar qual um maníaco, como aquele promotor iludia aos 12 ele ser, perguntando: Mas que merda é esta? Quem são estas pessoas que testemunham sem nunca sequer um dia terem me dito um alô ou um bom dia? Que credibilidade tinham eles em opinar sobre seus sentimentos e obsessões? Mesmo no banco dos réus, deveria haver uma complacência para com aquele que ainda não fora julgado culpado. Alguém perguntar se queria um cafezinho, ou se estava bem, se o ar condicionado estava na temperatura ideal. Um mínimo de civilidade, já que saber o que ele achava sobre o caso e o que estavam a ele imputando, parecia ser humanamente impossível.
Instintivamente, virou sua cabeça e olhou para sua mulher sentada na segunda fila. Ela tinha os olhos baixos. Sentia em seus ombros a humilhação de ter casado com um pervertido, inescrupuloso, pusilâme assassino, que friamente matara um homem a sangue frio. Até ali sendo omitido que o citado ser do sexo masculino era um proxineta, homossexual, marginal e traficante de drogas, reconhecido na Lapa, como Última Flor do Lácio.
- Vejam, como este senhor não se preocupa nem a ouvir o que dele acusam! Em nenhum momento sequer este homem a quem acuso de um frio e premeditado crime pareceu abalar-se ou estar arrependido da falta que causou a um seu semelhante...
Como alguém poderia se considerar semelhante a Última Flor do Lácio...
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
O tal do Orestes Benevides da Fonseca, nada tinha ver com a fonte de inspiração de Olavo Bilac. Era um proxineta que na voz do promotor, passara a ser, de uma hora para outra, um ser honrado, trabalhador e que sustentava sua pobre e velha mãe no morro do Salgueiro. E ele que até ali pagara todos seus impostos, trabalhara de sol a sol, que sustentava não só sua mãe no Leblon, como sua sogra em Copacabana, sua mulher e três filhos em Ipanema, um dos quais, insustentável. Ninguém se comovia com suas agruras?
Mas o Orestes fora a vitima. O promotor não estava interessado em debruçar-se sobre sua alma, como estava fazendo em relação à sua. Não parecia igualmente curioso em examinar os princípios morais da vitima. Não lhe parecia oportuno qualificar a intenção de acessibilidade ao vazio do coração do assassinado, como o fazia em relação a seu órgão. Na verdade não conseguia entender qual a razão daquele portador de tão valioso relógio, estar tão irado para com a sua pessoa. Seu dedo em riste, sempre em direção à sua testa, era fulminante. Qual um aríete pronto a derrubar uma possante porta. Cobrava-lhe arrependimento e não se preocupava a analisar a existência ou não de arrependimento do Orestes em relação a aquelas quinze mulheres que explorava, a maioria das quais presentes na galeria e que hoje ansiavam que a Última Flor do Lácio estivesse queimando em uma das escaldantes grotas do inferno.
- A forma com quem este senhor tirou a vida de Orestes Benevides da Fonseca, foi cruel, desumana. Nem a um animal é esperada tão inescrupulosa força!
Esta certo que ele poderia ter parado no primeiro tiro. Aquele que varou o coração da flor e que segundo os legistas levou o Orestes desta para a pior. Concordava e até comentaria de forma afável, que os outros seis tiros que desferiu contra o crânio do marginal poderiam ter sido evitados. Mas deformar aquele rosto lhe pareceu a melhor idéia no momento. Não estava transtornado ou tomado de uma loucura repentina, como seu advogado tentou convencer-lhe no inicio do processo, como uma excelente manobra de defesa. O fez ciente do que estava fazendo. Era necessário apagar-se da face da terra aquela imagem cínica. Ele o fez, muitos aplaudiram, mas nenhum estava ali para salvar-lhe.
- E vejam! Ele se mantém imperturbável contra as acusações que pesam em seus ombros. Tudo o que fez foi premedito e desnecessário. Apenas para saciar sua doentia fome assassina.
A voz cruel do promotor, não era o que mais lhe afligia, mas sim aquele dedo que agora para ele mais uma vez apontava. Fez menção de exprimir o que sentia, outrossim, a cutucada de seu advogado à altura de suas costelas o impediu momentaneamente. Da mesma forma que o deixou ainda mais enervado. Chegara a seu limite. Passou a sentir todo aquele calor que o cercava. Não se contendo, afavelmente e em tom conciliatório.
- Por acaso o senhor teve relações de negócios com a Última Flor do Lácio, a quem o senhor intimamente chama pelo nome de batismo, Orestes?
O promotor estupefato, ficou como por milagre sem palavras.
- O senhor por acaso perguntou a aquelas meninas que ali acima estão, quem era na verdade o seu Orestes?
Imediatamente uma meia dúzia de putas, levantaram-se e passaram a aplaudir a aquele que as libertara da escravidão sexual.
O juiz bateu com seu martelo e esbravejou:
- Ordeno que o réu se cale!
- Estou feliz meritíssimo que o senhor e todos aqui presentes, finalmente tenham notado minha presença.
Risos espalharam-se pelo recinto e multiplicaram-se, quando à terceira excitada batida do martelo do juiz, sua cabeça (a do martelo, não do meritíssimo) abandonou seu tronco, e voando foi dar aos cromados e caros sapatos do almofadinha acusador. Este deu um pulo, pois de alguma forma um de seus calos deve ter sido atingido. Falseou em seus calcanhares e foi ao chão.
- Deus seja louvado!
O sarcástico grito do réu acabara de despertar toda hilaridade que aquela cena, até ali contida, representava. De uma dramalhão de terceira a insanidade de uma ópera bufa! Desviando-se da nova cotovelada que seu advogado tentava impetrar, Mario Tobias de Aguiar Mello e Silva, sentiu que de réu passou a ser o centro das atenções. Todos agora ali naquela sala pareciam esperar por sua nova participação. Ele dera vida a aquela enfadonha representação.
Em segundos o recinto saiu daquele noir blazé dos filmes dos anos quarenta, para o brilhantismo das cores da época atual. Teve vontade de levantar-se e agradecer a aqueles que riam, mas achou melhor conter-se. Todavia, seu olhar para com seu próprio advogado fez crer ao referido senhor, que qualquer outra tentativa de uso de seu cotovelo contra suas costelas, seria respondida a altura que o ato merecia. No mínimo com uma mordida que o transformaria na versão moderna de Van Gogh.
O promotor foi trazido a seu próprios pés, com o auxilio de um de seus assessores. O centro de todo aquele acidente, a cabeça do martelo, foi levada de volta a seu corpo, por um auxiliar da justiça, que ajudou a fixá-lo. E o juiz, agora com um pouco de mais cautela, fez ver a todos que a comicidade teria que ter o seu fim, ou todos seriam retirados do recinto. Senhoras de família e prostitutas voltaram a acalmar-se. O promotor com a testa gotejada em suor e cônscio de seu vexame, procurou controlar-se. Agora mais do que nunca, iria querer a cabeça do réu, já que a do juiz e da porra daquele martelo, lhe seria impossível.
- Volto a ressaltar a todos os aqui presentes, da periculosidade que um individuo destes representa para a nossa sociedade. No curso de minha carreira vi crimes hediondos, compartilhei de situações grotescas para com o discernimento humano, mas nada e vos repito NADA, me parece igual ao que este senhor veio a cometer de maneira fria, premeditada e desumana, naquela fria madrugada de Agosto. Seis tiros na cabeça e um no coração. Execução sumaria, sem direito a defesa. Peço-vos que escutem meu brado de alerta e a este homem não lhe proporcionem, um milímetro sequer da piedade que seu advogado clamará.
Findo o infindável discurso de abertura daquele que exigia a cabeça do réu, para a felicidade do último, foi pedido um recesso por parte da defesa, para depois do almoço. Barrigas rugiam de fome, e isto poderia causar um decréscimo na atenção daqueles doze elementos em relação ao projeto de defesa do gordinho careca, que iria elevar pontos de suma importância na ilibada vida familiar e profissional do réu, e as razões que levaram ao mesmo, em um ato de passageiro desatino, a descarregar todas as balas de sua 45 no rosto da vítima. Todas não, pois, uma fora destinada ao coração.
O ar condicionado não estava dando vazão as necessidades dos presentes. Leques, abanadores, pedaços de jornais e no caso de um, o chapéu, eram usados como artifícios para a manutenção da temperatura do corpo humano em condições quase desumanas. O crime fora em Agosto, o julgamento estava sendo levado a efeito, as vésperas do carnaval. Sob uma canícula insuportável. Coisas do Rio de Janeiro.
Mas pelo menos era agradável, mesmo na posição de réu, ouvir da parte daquele que o defendia, quão grande sujeito ele realmente era. Como atento e diligente fora para com os seus e dentro de sua áurea profissional. Todas as suas virtudes, sem nódoas de defeitos, por menor que eles fossem. Até o fato de ter ser coroinha, não passara desapercebido, bem como não fora esquecido ser sua mãe uma filha de Maria.
Já dizia o velho Archimedes, que muito aprontara em sua vida. Na justiça brasileira, vence quem tem o melhor advogado. Os dois que se opunham pareciam eloqüente e bons naquilo que pregavam. Um tinha feito dele o assessor número um do demônio. O outro, como se ele estivesse sentado ao lado direito do senhor. E os doze atônitos à frente, pareciam boiar em águas esplendidas. Mário, por sua vez, ouvia a ladainha com os olhos presos no martelo do juiz.
Nunca um peça de tamanha insignificância corpórea havia lhe causado tanta impressão. Sua fuga do corpo principal, a procura do calo alheio, o sucesso em seu alvo e a consecução de seus objetivos, inebriavam-no. Fora mais certeiro que a bala de sua 45. Mas ninguém iria culpar o meritíssimo por aquele atentado físico ao promotor.
Do martelo desviou sua atenção ao dono do mesmo. Tinha idade mas era muito bem cuidado. Pele bronzeada do sol, rugas inexistentes previamente retiradas de forma cirúrgica. Mãos igualmente polidas, e um óculos que parecia ser artigo de luxo. Enfim, um juiz nos trinques, daqueles que deviam vender sentenças nas horas vagas e reverter o lucro destas vendas em coberturas em Miami.
Foram duas horas de defesa das qualidades que o réu possuía. As putas da galeria aplaudiram de pé, tão logo o gordinho careca terminou sua odisséia. Apenas sua mulher acompanhou a ovação, apenas que com um pouco de mais discrição. O juiz, em toda a sua fleuma, pediu silêncio sem se utilizar de seu martelo. Parecia ainda temer, as verdadeiras intenções da cabeça de seu martelo. Sua voz, assemelha-se a de um tenor rouco. Tinha força, mas pouca sonoridade. Talvez tivesse sido fanho, na adolescência.
A chamada das testemunhas foi a continuação do primeiro ato. Pessoas depondo quanto a idoneidade da Última Flor do Lácio e demonstrando estupor pela atitude premeditada levada a efeito pelo réu. Interpeladas pelo advogado de defesa, sentia-se a fragilidade da tentativa de um suporte moral a um proxineta, que além de gostar de sentar numa criança, era ainda traficante de drogas. Mesmo sua mãe, que foi transladada do Salgueiro para a corte, não conseguiu convencer sobre as qualidades morais de seu filho e muito menos por que o mesmo havia pertencido as lides da Funabem e tinha cadeira cativa em Bangu um, onde esteve hospedado em quatro oportunidades como convidado da policia local.
Quando as posições se inverteram o réu pode igualmente observar, que suas testemunhas não possuíam igualmente o grau de convencimento necessário para ressaltar suas maiores virtudes. Sua sogra falseou em vários momentos, sua mãe pareceu simplista ao extremo e sua mulher deu os primeiros indícios que sua convivência com ela de há muito estava por um fio. Graças a Deus seus filhos não foram convidados a comparecer. As únicas que pareciam acreditar cegamente em seus nobres princípios, eram as putas da galeria. Infelizmente seu advogado havia se recusado a colocá-las no rol de suas testemunhas, o que até ali Mario não entendia porquê.
Elas seriam altamente convincentes. Aliás, não existe nada mais convincente do que uma puta. Elas fingem que gozam, elas o fazem acreditar que iniciaram aquelas funções dois meses antes, ante o abandono de seu marido, elas provam a você que seu membro é grande, generoso e que as satisfazem plenamente. Enfim, elas têm a capacidade de deixar os homens felizes e confiantes. Porque não colocá-las na cadeira das testemunhas? O Júri era formado de nove homens. Todos com cara de gostarem de pular o muro.
Voltou sua atenção a su vizinho que tecia bons comentários a seu respeito, como no dia que socorreu seu cão qu acabara de ser atropelado. Pôs-se a pensar. Seria salvar um cão um fator mais eloqüente do que matar um proxineta com sete balas, seis na cabeça e uma no coração? Em toda a sua vida nunca estivera ciente do que realmente se interessava, mas em contrapartida tinha plena convicção do que não lhe interessava. E aquele julgamento parecia ser um deles, embora ele fosse o ator principal do mesmo. Mas não conseguia entender que os fatores morais de vitima e réu pudessem ser mais importantes do ato e as razões por que ele sucedeu.
Ninguém ali estava interessado porque ele tomara aquela atitude? O que realmente o levara a tomar aquela decisão. Que, por sua vez. a vitima ao ser interpelada, havia lhe mostrado um canivete antes que ele puxasse por seu 45. Se bem que um canivete possa ser considerado uma arma de menor calibre que uma 45, David matou Golias com o estilingue da época. Talvez fosse este um ponto que seu advogado tivesse que relembrar a aqueles doze apáticos seres humanos. Teria que lembrá-lo.
O promotor por mais de quatro vezes exortara a necessidade do réu ter que pagar sua divida com a sociedade. E a divida da Última Flor do Lácio fora paga? Ninguém parecia interessado em abordar porque havia drogas nas ruas, violência na cidade, terror nos bairros. Que muitas Últimas Flor do Lácio, não eram tão incultas e muito menos belas, mas que certamente o poderiam levar ao esplendor de uma sepultura. Orestes era menos um. O réu simplesmente higienizara um pequeno ponto da cidade.
Um frêmito incontido tomou conta de seu ser. Sentiu seu corpo tremer em um calafrio cortante. O fato foi notado por um dos assistentes do advogado que perguntou se sentia-se bem. Mentiu, ao responder que nada sentia. Afinal que lhe valeria dizer a verdade. Não existe remédio para desolação. Como suavizar a consciência que sua vida poderia não valer mais nada se preso a uma cela pelo resto de sua existência?
Foram 8 horas de seção com um pequeno recesso de 45 minutos para o almoço e todos ali pareciam querer da fim a aquele julgamento. Extenuado, juiz, promotor, advogado e júri, foi decidido que a pugna ficaria para o dia seguinte. Pouco teria que ser apresentado, mas fosse o que fosse, o dia seguinte pareceu mais salutar.
Para todos, menos para ele que teria que mais uma vez encarar o teto, suportar sua insônia e controlar sua ansiedade. Mais horas de espera sem saber qual o seu destino. Feliz era a Última Flor do Lácio, que não precisava mais esperar ou decidir. Ouro nativo, que na ganga impura...
Ah Bilac, que saudades das aulas de português no Ginásio. Decorar seus versos. Deixar sua imaginação fluir sobre suas palavras. O recreio. A furtiva conversa com as meninas. A troca de promessas. Os sonhos inatingíveis. A volta da escola. As brincadeiras na rua antes do jantar. O suave degustar de uma comida caseira. Os deveres de casa. A oração antes de dormir. A esperança que um novo dia haveria de trazer.
Não pregara olhos. Sua fisionomia estava cansada, como a de um condenado a espera de sua sentença. Não poderia sugerir mais a convicção que seu advogado exigia dele na tentativa de demonstrar durante as seções sua inocência. Convicção dos inocentes que clamam por justiça. Teria Al Capone demonstrado pouca convicção? E o bandido da luz vermelha?
Notou que poucos elementos do júri ousavam sequer notá-lo. Pareciam envergonhados por serem donos de seu destino. Não queriam cruzar seus olhos com os seus. Para que então demonstrar convicção em seus atos? Era o ator principal invisível aos olhos da platéia. Na verdade era a Última Flor do Lácio, o mais importante artista. O centro gravitacional que dava equilíbrio ao espetáculo. Ele que entrara como coadjuvante na peça mas que morrera antes mesmo da seção ter seu inicio.
Uma estranha sensação tomou conta de seu ser quando o júri foi convidado a se retirar para deliberar com relação a seu destino. Teve vontade de ouvir um samba. Qualquer coisa de Martinho da Vila. Algo suave que fluísse bem ao ouvido de todos. Levado a uma sala, ficou a sós com seus advogados que tentaram inutilmente vender um sensação de vitória. Seu gordinho careca não o havia convencido. Seu voto, se jurado fosse, seria contra ele próprio. O Gomalina saíra-se melhor. A tese da premeditação e da fria execução pareciam mais sólidas que a dos motivos e da auto defesa, inspirados pelo discurso de finalização.
Ninguém estava levando em conta que as razões de um de seus filhos estarem hoje hospitalizados em um centro de recuperação de adeptos as drogas, tenha sido a vitima. Justiça não se faz com suas próprias mãos, incendiara o recinto o promotor. No que ele tinha em parte razão. Mas a justiça divina em Sodoma Gomorra não foram feitas por mãos próprias e divinas? E o que eram os tsunamis, os terremotos, as erupções os furações e as pestes do que justiças divinas? Alguém um dia iria colocar o Todo Poderoso atrás das grades para pagar sua divida com a sociedade?
Pensando bem seu argumento não teria força se levado a corte... Era ateu, nunca dera bola para Deus, mas depois que viu seu filho no estado em que se encontrava, vendendo seu corpo para ingerir drogas, sentiu que havia um Deus que a tudo assistia, mas eram eles, os seres humanos, que deveriam tomar suas decisões. Infelizmente ele tomara a sua, mas agora teria que pagar sua dívida com uma sociedade. Sociedade esta, que estava sendo dizimada por elementos como a Última Flor do Lácio. Durma-se com um barulho destes.
A campainha tocou. Ele estava pronto para enfrentar o destino reservado por aqueles doze elementos que em momento algum tiveram a coragem de olhar em seus olhos. Ajudado por seus advogados e pelos guardas que lhe esperavam fora da sala, voltou ao palco principal da peça de sua nova existência. Foi quando olhou para sua mulher. Ela parecia não estar ali. Olhava-o através. Sua mãe a seu lado esquerdo chorava. O fazia discretamente como sempre fora em toda a sua vida. Sua sogra fingia estar olhando para outro lugar. Melhor assim. Nunca tivera por ela o menor carinho. Outrossim, havia pessimismo naquele trio. O trio que teria que conviver pelo resto de sua existência se alcançasse a liberdade. Liberdade? Era realmente um otimista...
O júri não tardou de voltar a sala. Nenhum de seus membros o fitou. Sentiu que fora condenado. O papel foi passado ao juiz que o leu em silêncio por alguns segundos. Sua expressão não sugeriu absolutamente nada. A verdade é que a decisão fora rápida demais. Não passara de uma hora. O que deixara seus advogados apreensivos. Foi dada a ordem para que o réu se levantasse. Ele o fez, fechou os olhos e agradeceu a Deus por finalmente ter um destino.