Vou contar uma história quase verídica. Eu diria até melhor do que verídica, pois, verdade é coisa muito real. Coisa que não inspira atenção. Faz perder a imaginação e o sonho que todos nós temos dentro de nós mesmos. Mas vamos a ela, pois esta merece ser contada em seus mínimos detalhes.
Toda vez que vou a um campo de futebol me lembro do Alvarenga. Que craque ele poderia ter sido? Não sei exatamente porque me sinto teimosamente arraigado, presente e intimamente integrado em meu escasso mundo de reminiscências, sejam elas verdadeiros ou apenas produtos de minha imaginação. Hoje que mais de 40 anos já se passaram, ainda nisto penso. Não sei se foi verdade ou não. Não importa. A versão é sempre mais agradável que a realidade. Mas, já que falamos de fictícia realidade, diria que a verdade é que sempre me preocupei com o Alvarenga. Sentia-me como responsável por ele. Se ele existiu ou não, pouca importância tem perante a magnitude de sua história.
Meu zelo para com o Alvarenga era tanto que meu apelido passou a ser Ranchinho, entre os garotos do bairro. Mas eu tinha minhas razões. Alvarenga era órfão, vivia com uma tia de poucas posses e quando menino era franzino e sempre atacado com qualquer tipo de doença. Teve sarampo, catapora, meningite, caxumba, coqueluche, piolho... bem piolho não pode ser considerado doença, mas é chato para burro, e naquela época todos os tiveram. Aliás, chato ele também teve em suas partes íntimas. Não eu! Enfim, o Alvarenga era um estacionário de doenças. Qualquer uma que pintasse em nossa cidade, ele era o primeiro a pegar. Qualquer que fosse a epidemia que aflorasse, era no Alvarenga que ela incubava. Dai partia para o resto da humanidade. Mas em momento algum ele reclamava ou se deixava abater. Nunca se viu tomado, como muitos, por iniludíveis sintomas que determinassem que sua vida estava por um fio. Tinha força de vontade, acreditava em Deus e pensava que no dia seguinte estaria melhor. E sempre esteve.
Alvarenga era quieto, pois, sabia que as pessoas o evitavam, com medo de pegar a doença da vez. De sua boca poderiam ser expelidos bacilos e outras coisas mais. Ademais tinha mal hálito. Resignava-se com o fato. Enquanto os demais meninos se divertiam lendo a revista da Luluzinha, Alvarenga lia bulas. As conhecia décor e salteado. Seu conhecimento era tanto que o senhor Fagundes, o farmacêutico local, sempre que tinha uma dúvida o chamava. E o pequeno Alvarenga relatava ao cliente as vantagens e as contra indicações de todo e qualquer remédio existente da farmácia Santa Alice.
O senhor Fagundes depois de alguns meses o contratou em regime de meio-expediente, já que Alvarenga as aulas nunca faltou. Até de maca assistiu a algumas. Alvarenga não pode conter sua felicidade. Finalmente estaria cercado por aqueles que o ajudavam a combater as suas doenças: os remédios. O cheiro de éter para ele soava qual um perfume francês. Aquelas tarjas coloridas nos invólucros dos remédios o atraíam. As seringas lhe traziam prazeres inolvidáveis. Johnson & Johnson, Byer, Squibb e Norvatis soavam para ele como Balzac, Machado de Assis e Beethoven para outros. Era avesso a qualquer tipo de esporte. Mas um dia o convenci a jogar futebol.
Lembro de nossa primeira partida oficial, pelo Ameriquinha. Foi ali no terreno baldio do senhor Ananias, um filho de português de poucas maneiras, mas que fazia vistas grossas para a garotada, quando esta queria se divertir. Depois descobrimos que ele era boióla. Mas, tinha seus escrúpulos. Só atacava aos de mais de 15 anos. Nós estávamos na época com por volta de 12 anos, logo tínhamos 3 anos ainda de carência.
Pois bem, confesso que convidei o Alvarenga, não por remorso ou diletantismo. Na verdade faltou um para completar o time e o pavor juvenil de ter menos um – em qualquer que fosse a situação - me fez trazer o Alvarenga, que nunca havia sequer, treinado conosco. E muito menos colocado seu pé em uma bola. O senhor Garcia – nosso técnico honorário por ser dono do jogo de camisas adquirido na casa dos esportes - o olhou de cima a baixo e não acreditou que ele pudesse dar um peteleco em uma bola, porém, não tendo outra alternativa o escalou na ponta esquerda. E foi claro em sua preleção: “menino fica ali na ponta esquerda fixo e bem aberto, pois assim pelo menos você prende o lateral deles”. E o Alvarenga obedeceu. Ficava ali pela ponta tossindo e tirando sua temperatura com aquele termômetro que sempre tinha pendurado no peito, como não quisesse nada. Assistia a peleja em de uma posição privilegiada. O jogo corria e ele não pegava na bola. Aos poucos foi totalmente esquecido pelo lateral direito. E quando isto aconteceu, não sei porque e propriamente quem o acionou, o milagre se deu.
Foi um lançamento a distância. O Alvarenga saiu qual um raio em direção a bola e quando nela chegou de primeira soltou um tirambaço em diagonal. A bola chegou até a furar a rede de nossos adversários, e todos nós do time, tanto quanto os adversários ficamos totalmente abismados. De onde aquela coisa franzina, molengona e doente conseguia tirar tanta energia e força para dar um tiro como aquele?
Abraçado, ele sufocou-se. Arrastou-se até o banco em convulsões e lá chegando utilizou-se de seu aparelhinho particular de combate a asma. Ali ficou sentado por uns dez minutos, até refazer suas forças e então voltou quieto que nem um coelho velho. O lateral que não estava mais afim de levar outra por suas costas não o largava. O olhou no fundo dos olhos e ele todo sem jeito sorriu de forma amarela, quase desculpando-se. A partir deste momento, passaram a ser dois postes inanimados.
Termina o primeiro tempo. Todos sentados a volta do senhor Garcia, que além de técnico era o genitor do Júlio beque central, do Otacílio que jogava no meio campo e do Elias – em seus 132 quilos ainda em crescimento - que não tinha jeito para o negócio mas que era escalado, para não reclamar em casa que seus irmãos mais velhos eram protegidos do pai, na ponta direita. Entediados ouvíamos aquela mesma história de sempre. “Otacílio não prende a bola, solta de primeira”. “Zeca para de coçar o saco, presta atenção no jogo e cola no meia deles, que é quem está distribuindo toda a armação”. “Julião entra mais manso que o juiz já está de olho em você”. “Ranchinho fica mais fixo dentro da área e espera um cruzamento...Alvarenga, se der faz outro como aquele...”
Cruzamento? Cruzamento de quem se em uma ponta estava o Elias e do outro o Alvarenga? Mas mesmo sabendo que na hora eu teria que procurar o jogo e sair da área, aquiesci com a cabeça. Técnico é para ser ouvido fora do campo e desobedecido dentro do mesmo. Foi exatamente nesta hora que o Alvarenga teve aquele surto de tosse. Foi sangue para todo o lado. Não satisfeito, constatou-se que ele havia igualmente pego uma tuberculose.
O seu Garcia, o acudiu. Usou o seu próprio lenço e avisou que ele teria que ir para casa. Jogaríamos a partir dali com apenas 10. Ou melhor com 9, pois o Elias não contava. Mas Alvarenga fez que não com a cabeça. Não conseguia sequer falar, mas deixar o time na pior, neca de pitibiriba. Ele iria continuar. Manteve-se irredutível e assim voltou ao campo, com a camisa toda vermelha de seu próprio sangue.
Começada a segunda etapa o lateral direito adversário, um tal de Djalma Santos, que do craque da seleção tinha apenas a cor e o lóbulo da orelha esquerda, notou a camisa do Alvarenga empapada em sangue. Sorriu de alegria. Poderia apoiar seu ataque, já que o cara que tinha que marcar, estava prestes a colocar o pé na cova.
E o time do Flamengo de Itapecirica da Serra, passou a nos pressionar. Foi bola na trave, espalmada pelo Saca-rolhas, nosso goleiro e até uma salva em cima da linha pelo Julião. Outrossim num córner, o Julião vai lá em cima e cabeceia para fora da área e a bola cai em meus pés. Eu estava em nossa intermediária. A matei e senti ela mansinha sobre o meu domínio. Girei o corpo. Olhando para o ataque, vi que o beque central deles vinha em minha direção. Apenas um pequenino, que defendia a posição do quarto zagueiro que fora para a nossa área, estava a espera do que eu ia fazer. Passar para o Elias aberto na direita, para o Alvarenga todo ensanguentado na esquerda ou driblar aquela locomotiva enraivecida? Se ele fosse mais atento saberia que o Elias estava fora de qualquer suposição e que eu nunca tivera vocação para herói.
Juro que me apavorei ao ver aquela locomotiva bufando e vindo em minha direção e só por isto lancei a bola para o Alvarenga. Na verdade não lancei em direção dele. Lancei no vazio. E aquela coisa franzina e banhado no seu próprio sangue partiu dali novamente como um raio. Com um jogo de cintura tirou o baixinho que fazia as vezes que quarto zagueiro, da jogada e com a saída desesperada do goleiro adversário deu um lençol perfeito. E a bola foi morrer suavemente no fundo da rede.
Ninguém teve coragem de abraçá-lo e nem haveria a possibilidade física de, já que o Alvarenga, sucumbiu e saiu de campo de maca, direto para o ambulatório de nossa pequena cidade. Ganhamos de 2x0.
Dois dias depois bate a porta de minha casa um tal de Zé Letrinha. Tinha bigode de pilantra. Tinha cabelo de pilantra. Usava um terno e uma gravata de pilantra. E era realmente pilantra. Apresentou-se como olheiro do Cruzeiro e me perguntou onde eu poderia encontrar aquele menino de quem todos pareciam tecer maravilhas. O raio das alterosas!
Como sempre tive tendência ao comércio, imediatamente respondi que era o dono do passe do Alvarenga, mas que não poderia levá-lo a ele naquele exato momento. O Zé Letrinha que era uma chato de galocha, não se deu por vencido e perguntou o porque? E eu, por sua vez, que era coroínha da igreja e nos fins de semana escoteiro, não me senti a vontade de mentir: ele está no CTI, ainda inconsciente. Mas o Zé Letrinha não era homem de perder a viagem. Se o Alvarenga respirava, a toca da Raposa o esperava.
No primeiro treino na toca, quase seis meses depois daquela famosa pelada, já que o Alvarenga custara a se recuperar, a coisa funcionou da mesma forma. Ele quieto entre a garotada juvenil, o lateral um tal de Nelinho dono de um chute poderoso a marcá-lo e nada acontecendo. A turma do meio de campo não lhe passava a bola, descrente que ele pudesse fazer algo de útil com a mesma. Pouco a pouco o tal do Nelinho foi lhe dando espaço. Ai, quando faltavam, três minutos para o encerramento do treinamento, um creoulinho também piá chamado Dirceu, se esqueceu de quem estava na ponta esquerda e fez o passe. A bola foi direta nos pés do Alvarenga. Ele não exitou, olhou para o Nelinho e quando este piscou o olho, já o perdeu de vista. Qual um foguete o Alvarenga se desvencilhou dele e em alta velocidade foi em direção do gol. O goleiro, um sujeito elegante e bonitão, chamado Raul saiu da meta, foi driblado e o Alvarenga só não entrou com bola e tudo, pois teve piedade de um outro baixinho e franzino que nem ele, passando-lhe a bola. O baixinho deu um tostão na bola e correu para o abraço. Dai passou a ser chamado de Tostão.
Do arco, o Alvarenga não saiu pois, ali mesmo apagou. Imediatamente o mesmo menino menino, que assinalara o gol - que diga-se de passagem sempre teve como vocação a medicina – esqueceu da alegria em que estava mergulhado e veio a seu socorro. Fez respiração boca a boca, pressionou seus coração e o fez voltar a vida. De maca o Alvarenga foi levado ao hospital e eu que estava presente como manager do Alvarenga segui na ambulância. O contrato foi assinado quatro dias depois, quando o Alvarenga ressuscitou, saiu do CTI e pode assinar seu nome.
A fama do Alvarenga, como tudo em Minas, imediatamente correu solta. Pela montanhas, planaltos e planícies todos falavam daquele garoto que em uma jogada modificava com o panorama de qualquer partida. A diretoria do Cruzeiro estabeleceu a sua estreia contra o América Mineiro e para que talvez conseguisse duas jogadas de seu mais novo contratado, montou um ambulatório a beira do campo, com uma unidade física de CTI. Sua estreia foi tremendamente divulgada. O América Mineiro era a segurança, pois, de ninguém ganhava. Mas o ti-ti-ti estava por conta de um falado fenômeno de apenas 13 anos já nos juvenis. Encheu o estádio ainda na preliminar. Mas pouco se viu do Alvarenga, que sempre quieto se manteve em sua ponta. Terminou o primeiro tempo e ele sequer tocou na bola. A torcida mostrou-se impaciente quando da volta do time ao campo. Que fenómeno era aquele que nem na bola tocava? Alvarenga foi mantido em sua posição empunhando a 11. O time jogava bem pois aquela turminha do Dirceu, Tostão e Nelinho estavam dando um banho de bola mas não conseguiam movimentar o placar. O América aquele dia, como por milagre divino, acordara e ganhava por 1x0.
Lembro-me, como se fosse hoje, que no intervalo eu no vestiário perguntei ao Alvarenga se ele estava sentindo algo, ao que ele respondeu: “o de sempre, febre alta, pressão arterial, dor de cabeça e entupimento nasal. É doença nova”.
Por volta dos 12 minutos, uma falta foi cometida perto do bico da área do América e o Nelinho imediatamente pegou a bola e tomou a iniciativa de mostra-se batedor. Pediu apenas ao Alvarenga, que passasse encima da bola para tirar a atenção do goleiro. O Alvarenga concordou, só que ao invés de pular a bola, mandou um torpedo que entrou na forquilha. O goleiro adversário nem conseguiu se mexer. Gol de Placa!
Todos correram em sua direção, mas sabedores dos problemas de sufocamento do Alvarenga apenas deram uns tapinhas em suas costas. A turma da maca aproximou-se da lateral do campo, mais o Alvarenga fez o sinal com a mão que não era necessário. 1x1, a torcida mais satisfeita e todos cientes que o dever fora cumprido. Todos, menos o Alvarenga. Sabia que podia fazer melhor. Olhou para o Dirceu e suplicou: “me passa a bola”. O neguinho olhou para o Tostão, e como este consentisse com a cabeça, sorriu de volta.
A turma do Cruzeiro começou a passar a bola de pé em pé, mas não para ele. O tempo passava e o Alvarenga continuava esquecido lá pela ponta esquerda, A torcida, que já era grande para a partida principal, se mantinha apreensiva, até que a bola veio a ter as chuteiras daquele que parecia um tostão. Ele que ouvira a suplica do Alvarenga para o Dirceu, apiedou-se e tocou para seu ponta esquerda. Alvarenga parou a bola, olhou para frente e viu que pelos menos sete adversários estariam entre ele e o gol do adversário. O publico silenciou-se. Até o zumbir de uma mosca poderia ser escutado. Alvarenga encheu o peito de ar e qual um touro na arena, resfolegou, raspou seu calçado na grama e partiu qual um cometa. Foram pelo menos sete, os adversários driblados um a um, se minha memoria não é falha e meio exagero contido. Agora frente a frente com o goleiro fez que ia para um lado e meteu a bola no outro.
A torcida veio a baixo. A torcida e ele.
No CTI, ele pegou a minha mão e disse com aquela candura que lhe era peculiar: “Acho que devo trocar de esporte. Talvez o biriba fará menos mal a minha saúde”.
Foi sua primeira e última partida em um clube profissional. Não importa. O que importa é se vocês perguntarem ao Dirceu Lopes, ao Tostão, ao Nelinho e ao Raul quem foi o maior jogador de futebol que viram jogar, todos dirão que foi o Pelé. Se perguntarem pelo segundo, certamente o nome de Garrincha será o escolhido. Mas não tenham dúvidas que do terceiro nome, o Alvarenga não escapa. Na lista de qualquer um deles. Acima até do Maradona.
Hoje, farmacêutico, Alvarenga continua tendo suas doenças e convivendo com elas. Se auto medica, já que seu amigo Tostão especializou-se na oftalmologia e só nele o Alvarenga confia. Continua o mesmo. Franzino, quieto e arredio. Só sai de sua farmácia para jogar um biribinha com os amigos, do qual é craque reconhecido. Tem quase 60 anos e uma saúde de cão... Em cima de sua mesa de trabalho. A foto que saiu no Diário de Minas com ele sendo levado ao CTI e a manchete em letras garrafais. O Raio das Alterosas!