Maria das Graças conheceu o Rio de Janeiro, acompanhando uma importante família política de São Luiz do Maranhão. Tudo numa rápida visita. Desceu moça pressurosa naquele que um dia viera a ser conhecido como o cais Pharoux. Em dois dias tornou-se mulher sem entender ainda o porque. Era o Rio de Janeiro que seus inocentes olhos de menina mulher de quatorze anos constataram, choraram, secaram e compreenderam. Era um Brasilzão que ela pela primeira vez tomava conhecimento existir fora do local que nascera. Um Brasil sem perdão. Bem maior que o Maranhão. Infinitamente mais populoso que Guimarães. Repleto de luzes, trânsito, comércio, gente... Um total despropósito. Devassidão. Sem vergonhice. Coisa do demo... do encapetado! Em Guimarães não havia disso não!
Apaixonou-se pelas luzes, mas ao mesmo tempo sentiu que aquele mundo não lhe pertencia. Pelos olhos com quem cruzou, que nunca a aceitaria. Era uma songamonga, de inteligência duvidosa e de inconsciência no saber. Tinha muque, perna forte, mas pensamento curto e por isto fora desde o inicio rejeitada, ridicularizada, seviciada e o pior de tudo, ignorada. O Rio de Janeiro era um outro mundo. Um mundo do qual ela nunca conseguiria introduzir-se e que, provavelmente, não a queria por perto. Um mundo de olhar torvo e de instintos travessados.
- Tá comendo vidro peste, eu não mãe tô comendo gelo!
Como o carioca gostava de mangar de nordestino. Buliam quando ela esgaravatava as unhas. Ou de seus pés espalmados, chatos e de dedos excessivamente separados, que durante anos a fio não conheceram o uso das alpargatas. Pés de pato, como dinda dizia. Como eram buliciosos o tal dos cariocas. Trela sebosa. Coisa de suçuarana cheia de veneno. Sentiu-se macambira, banzeira perante aquela gleba de desocupados. Todos na praia de papo para o ar. Ninguém saía ao mar para pescar. Iam na casa de peixe pagar por aquilo que podia ser conseguido no mar. Teve abuso. Doía em seu jovem peito. Dor pequena, mas que não sara nunca. Que nem piolho. Quis voltar e voltou a São Luiz e a seguir a Guimarães. O Rio de Janeiro, não lhe deixou saudades. Apenas rancor. Um dia iria lhe pagar.
Mas o que acontecia no Brasil, não afetava a colônia de pesca de Guimarães. A única coisa que tinham em comum, eram um idioma e uma moeda desvalorizada. Neste mesmo período, o Brasil passava por uma importante reforma monetária onde os mil-réis seriam substituídos pelo cruzeiro. Estes últimos, eram impressos no exterior, e como tal, perderam-se em grande volume, nas profundezas do Atlântico, vitimas de um destes ataques, ao qual os submarinos alemães vieram a ser acusados.
Sabedor deste fato Raimundo Ribamar, um maranhense nascido em Barreirinhas nos Lençóis Maranhenses, criado às margens do Rio Preguiça, e vivido sob o céu de São Luiz do Maranhão, achou que ali estava a chance de sua vida. O eldorado de sua emancipação financeira. Era achá-lo e pela primeira vez viver. Queria ser rico não! Mas não queria mais depender do trabalho de todo dia, para colocar comida em sua mesa.Dispensado do serviço militar por ter pés chatos, mas pés estes que funcionavam qual as membranas de um pato, Riba era reconhecido como um bom mergulhador, dono de um fôlego nunca antes visto e possuidor de um espírito indômito e aventureiro. Cabra retado, como diziam em sua terra! Tinha pacto com o demônio. Seu corpo era fechado. Nada de mal podia com ele acontecer. Rebelde por natureza, Riba não seguira a vocação de sua família em plantar babaçu e viver de sua venda. Ou ainda como seus primos copaibeiros. Extrair óleo de Copaíbas nunca esteve em seus planos. Riba gostava do mar, da solidão da espera pelo peixe, do reflexo da lua, da maresia corroendo suas entranhas, do salitre, do vazio do infinito, do azul que o poderia tragar e desta forma, não conseguia viver longe de seus sonhos e de sua realidade. O mar era a sua vida. Os peixes sua subexistência. A brisa seu horizonte. Aqueles cruzeiros a se achar, o seu futuro.
Ainda quando muito jovem Riba se transferiu para a colônia de pesca em Guimarães. Lá se formou como homem, pescador e posteriormente como mergulhador. Suas qualidades tornaram impressindiveis, seus serviços no coral Manoel Luis, uma extensão rochosa de 28 quilômetros, cerca de 80 quilômetros da costa. Lá conheceu turistas, ouviu suas estórias, vislumbrou suas fotografias e assim teve a oportunidade de descobrir que havia um mundo afora de seu horizonte visual. E dentro deste mundo um tal de Rio de Janeiro. A capital federal fora a cidade que maior impressão lhe causara. Era grande, importante, linda da gota! Decidiu. Não importava quando e como, mas era para lá que um dia ele iria se transferir. Com mala e cuia. Nem o papagaio iria levar. Seu filho haveria de nascer no Rio e ser gente importante. Questão apenas de tempo, mesmo a das Graças não gostando da idéia.
- O Rio não gosta di nós, Riba. Tive lá. Vi com estes oios que a terra há de comer. Eles mangam di nós. Tem piedade não! Umas sussuaranas.
- Deixe de tacanhisse muié. Com dinheiro vair dar certo. Dinheiro compra respeito
- Sei disso não....
- Deixe de abuso. Isto aqui é que não tem futuro não. É morte prometida.
- Aqui nós é feiz. Feiz que nim bode veio!
- das Graças. Escuta eu. Aqui não se vive, o tempo só passa.
- Arreda de sonho besta, homi. O Rio não é pra nós não. Tive lá. Foi lá que deixei de ser menina.
Das Graças dava um muxoxo e voltava a seus afazeres. Homi louco, que só sonharva com cidade grande. Merecia um cocorote no cucuruco.
Mas a noite chegava e na cama de varas, cheia de nós, todas as divergências eram esquecidas nas primeiras caricias de seu Ribamar. Ô homi de mão leve. Calosa, mas que que sabiam tocar como ninguém. Caricias que lhe davam impressão de repouso. Fazia bem. Pouco a pouco a zanga era esquecida.
Como galo novo, Ribamar adorava o silêncio e acordava mais cedo do que todo mundo no arraial, para desfrutar o dia melhor. A solidão da madrugada, o orvalho ainda presente nas folhas, o piscar sereno dos vagalumes e o zumbido da maré cedendo aos desejos da lua que se ia, determinavam para ele os primeiros movimentos do alvorecer. Quem conhecia como ele conhecia o nascer do sol, não tinha dúvidas que Deus existia. E se existia, haveria de o ajudar a achar aquele tesouro. E olhando o vai e vem das marolas sentia-se atraído para o mar. Contava os minutos para bater a porta do cumpadré Zé, para sentar velas. O que haveria do outro lado? Um dia haveria de saber.
Guimarães era um lugar pacato, insosso que nem o café da cumadre Benta. Onde céu, montanha e mar se uniam em uma mesma cor. Em dia de tempestade, quando todo mundo arreliava-se e nenhum pescador tinha coragem de se embrenhar mar adentro, era Ribamar que fazia as vezes de todos. Trazia o sustento da comunidade, sem ônus algum para quem quer que fosse. Repartia o que pescara sem preocupação de lucro ou agradecimento. Afinal, ganhar o que? Coisa nenhuma podia esperar, pois, ninguém ali em Guimarães tinha algo a dividir, que dirá a pagar. Mas isto não lhe importava. Era pescador por convicção, não por necessidade.
Magro, pele esturricada pelo sol, de pouca estatura olhos lânguidos, Ribamar não era aquilo que poderia ser considerado um homem bonito. Mas servia de bom grado para Maria das Graças. Tinha asseio, era respeitador, dava cheiro no cangote e tinha pouco calo no pé. Costelas aparentes, maxilares salientes, cabelo ao vento em total desalinho, barba rala por fazer e poucos dentes para roer a rapadura. Ribamar igualmente não procurava por companheira, nem estava preocupado com que os outros podiam achar de sua aparência. Era homem do mar, que se sentia pouco confortável em terra firme e saído da água se enfurnava em seu casebre a espera da oportunidade a voltar a pescar. Maria das Graças era o inicio e o fim de seu dia. Sem medo ou documento, hasteava sua vela e desafiava as ondas até encontrar mar aberto. E lá lutava contra peixe de qualquer tamanho, pois, não levava abuso para casa. Nem as rajadas de tempestades próximas o faziam desistir. Cabra macho que acreditava no destino, sempre dizia aos seus: se for hoje, nada posso fazê.
Mas sua vela era sempre vista no final do dia e com ele a certeza de mais uma aventura vencida. O mar o respeitava. Seu destino era ter peito fechado. Mas foi este mesmo destino que o colocou um dia de domingo, a frente de Maria das Graças. Mulher infatigável como as formigas que passavam junto a seus pés descalços, chamou, imediatamente, a atenção do pescador. Se sentiu suspenso no ar. A luz do sol branda, rala e descompassada, coada através das nuvens, caía aos pés daquela visão que enchia suas pupilas, como um manto bordado. Ela era linda. Braços e pernas bem torneados como alguém capaz de trabalhar qual um mouro. Daria boa mãe e melhor companheira.
Viera de São Luiz do Maranhão mulher, onde sua mãe trabalhara por muitos anos na casa de familia de políticos. Fora criada como da familia. Possuía esperteza de movimento, lentidão no olhar e falava como gente estudada. Ribamar não se preocupou. Afinal ele não era nenhum Rui Barbosa. Das Graças era viajada. Conhecia o Rio, o Pará e Pernambuco. Andara de navio e de carro. Tinha noção do mundo e jeito com a gurizada. Até babá havia sido. Era zelosa e esperta, pois, em casa de político quem não o for, não dura muito. Poderia criar os rebentos que iriam vir as dúzias. Boa arrumadeira, coisa que aquela xoça precisava e não era muié que tava de oio no sustento.
E aonde se deu o encontro? Aonde ninguém parecia poder conhecer alguém; em Guimarães. Foi exatamente lá, onde o vento faz a curva e siri se recusava a andar de costas, que Ribamar conheceu Maria das Graças, que de tão pobre não tinha dentes ou mesmo um sobrenome, mas que era capaz de deixar qualquer homem fora de órbita com seu corpo curvilíneo e sua maneira de cozinhar cheia de tempero. Lábios carnudos, nádegas salientes, olhos brejeiros e bochechas salientes, determinando em todos os seus mínimos detalhes, significativos vestígios mulatais.
- O vi na praça junto da sé, com os oínhos posto ni mim. Parecia cachorro magro atrás du osso. Desconjuro - contava ela a todos, sobre o primeiro encontro que tivera com seu Ribamar.
Expressão safada, sorriso matreiro abaixo daquele seu buçozinho trigueiro e que ela recusava em aparar e Riba adorava acariciar.
- Parecia um robalo a sair da água. Lisinho e graúdo. Mas com jeito de carne boa - completava ele certo que as palavras encobriam seus pensamentos, naquela eterna luta de quem quer não querendo, a espera do safanão desferido pela mulher, que sempre seguia aquela sua observação.
Mas era um safanão carinhoso, que não causava dano nem desprezo. Coisa que só nortista sabia fazer. E Ribamar se punha rir. das Graças tinha seus dias de amanhecer nos seus azeites e quando isto acontecia era melhor não dar trela as suas inconveniências. Mas era moça boa, bem intecionada, prendada e fiel. Assim a vida os fez juntar seus trapinhos e morar no mesmo casebre, que então era só de sua serventia.
A choupana era resistente. A prova de chuva e vento forte, como seu dono. Os esteios de aroeira mantinham-se eretos, fincados no solo e estavam bem amarrados com cipó. O enchimento de taipa era novo. Ribamar o renovava a cada chuvarada braba. Só deixava passar o som. Mas o casal era monossilábico. Não eram de tagarelice. Pouca arenga, muito beijo. Que nem murissoca. O encarquilhado comodo iluminou-se, coloriu-se com a presença de das Graças, e se fez lar. O que era para dividir-se, mutiplicou-se. Riba se sentiu mais livre para aventurar-se mar a dentro. Tornara-se homem de bem. Homem de destino traçado, de corpo fechado e com um sonho a sonhar.
O tempo provou que das Graças era mulher para toda serventia. Não levava desaforo para casa, não era chegada a conversê e embora roncasse (fato nunca admitido), era de chamego, de namoro de pé e cheirava a mato molhado. Por sua vez, das Graças tinha uma vitalidade difícil de ser equiparada. Não possuía a indolência própria dos demais habitantes de Guimarães. E não era a toa que diziam as más línguas que seu pai não era aquele moribundo do Caetano e sim um muito bem afeiçoado caxeiro viajante que passara pela capital e que segundo, dona Maricota sem nada conseguir vender, enquanto o podre do Caetano estava no mar lutando pelo sustento de sua familia.
- Não vendeu nada e saiu com um sorriso de orelha a orelha... - deixava claro Dona Vevé, que tinha miopia mas não era cega, muito menos burra e ademais tinha a credibilidade de quem morava em casa de frente.
- E Maricota, saiu logo depois, cantarolando Vicente Celestino. Vejam só, logo o Vicente Celestino! - complementou Dona Zininha, da casa dos fundos, piscando o olho, o único que lhe sobrara da diabete nunca curada.
- Tava na cara que nove meses despois, criança ía chorar - Foi mais direto ao ponto a Dona Avelina, que embora fosse nova nas redondezas, já conhecia aquele filme de outros cinemas.
Avelina mulher calejada de cidade grande. Mulher de São Luiz, que vira o crescimento de uma cidade, o achatamento das classes sociais e fora expulsa com o progresso, como a família de das Graças, muito a contra gosto, a procura da sobrevivência. Ela e todas as outras fofoqueiras que falavam mal de sua maínha. Das Graças as odiava.
Avelina mulher calejada de cidade grande. Mulher de São Luiz, que vira o crescimento de uma cidade, o achatamento das classes sociais e fora expulsa com o progresso, como a família de das Graças, muito a contra gosto, a procura da sobrevivência. Ela e todas as outras fofoqueiras que falavam mal de sua maínha. Das Graças as odiava.
E mais criança estava por chorar. Grávida de Ribamar ainda muito jovem, das Graças foi até a praia se despedir de seu companheiro, quando este resolveu sair em sua jangada com o cumpadre Zé e dois amigos, afim de resgatar aqueles Cruzeiros novinhos em folha, afundados pelo submarino dos tais de alemão. Era tesouro, já que o Cruzeiro ainda não havia entrado em circulação e por isso mesmo ainda não tinha se desvalorizado.
- Mar tá revolto, Riba. Tem cheiro de tespestade no ar.
- Liga não. Isto para mim é ventinho de proa.
- O vento é peçonhento que nem cobra traiçoeira. Perdoa não. Tu tem fio pra criá!
- Esse não. Esse é vento sul, maroto. Incapaz de torar sono de ninguém. Só quer bolir com a saia das moças. Si preocupa não, meu quindim.
- Num brica com isso não. É vento traiçoeiro. Muda sem avisar.
- É vento sonoro, que traz sussuro misterioso e uma ou outra travessura. Coisa pequena. Se preocupa não. Tenha a reza do meu lado.
- Tá dizendo isto, para eu pude dormi.
- Né isso não, muié. É vento amigo que ensina o caminho de volta.
- Deixa de ser teimoso, homi de Deus, que vai vir um mar tempo da gota! O vento tá arrevesado. Deixa para lá o tesouro. Num precisa disso não.
Ribamar tinha consciência que quando das Graças embatucava, vinha muito despropósito de reboque. Mas ele era homem de palavra fácil e de pouca pabulagem. Deixava as zuretagens para a muié.
- Se preocupa não das Graças. Já vi negrume pior. E depois, temos que pensar no bacuri - consolou ele, batendo suavemente com sua mão espalmada na protuberância que se avolumava abaixo de seus seios.
Ventre mutante, que crescia e reverberava com os movimentos do rebento que em poucos meses iria expelir.
- Cabeça de Jegue. O que me adiantará este tal de tesouro, se ocê não vorta? Como vou atomar conta do bacuri?
E fez cara de trombuda.
- Se achar o que procuro, nós arruma a trouxa e poe perna na estrada para a capitá.
- Diga isto não! Conheço aquela joça. Não é pra nois não! - Ribamar sorriu com a cara feia que das Graças fez. Beijou o beicinho de raiva - Desafasta, o estropim.
- Meu doce de açaí.
- Tribufu!
Ele arredou-se com aquela falsa tristeza no ar. Olhinho pequeno, cabeça baixa. das Graças comoveu-se e o puxou de volta. Ele arreganhou os dentes.
- Cabra safado. Enganando eu.
- Vorto sim. Não tome abuso de mim.
- Tomo - resmungou ela sem convicção aparente.
- Tome não. De aqui um cheiro cheirado.
- Dô não!
- Dê!
- Vá pro inferno, cabra da pesta. Tu tá de coisa com o demo - e fez cara de quem tivesse tomado água salobra.
- Vem cá meu juazeiro cheiroso.
- Pegue não! Tu sabe que não tô pra coisa.
Mas ele cafungou em seu pescoço. das Graças sentiu aquela quentura e ali mesmo deu-se nova prova do amor. Com a iluminação minguada das Graças, abraçou-se a Ribamar e durante o ato não deixou que ele visse as lágrimas que se formavam nos cantos de seus olhos. Marejaram felinamente mansos.
Pela manhã, das Graças despertou com o barulho de Ribamar abrindo a porta do casebre. Estava pronto para enfrentar o mar. Mas como que pressentindo ele voltou-se para ela e a olhou. das Graças se perdeu na imensidão daqueles olhos verdes envolventes. Os olhos de Ribamar tinham o chamado do mar, o apelo das ondas revoltas, a necessidade de desbravar o desconhecido. Eram misteriosos e imensamente profundos. Eles eram o oceano em toda a sua imensidão e incertesas. Tinham a vítrea matiz azul-esverdeada de rara docilidade. Olhos da cor do mar...
A porta se fechou e ao mar, ele se deu. O minutos se passaram. Maria das Graças olhou para o céu e não gostou do que viu. Nuvens negras, galopando de forma feroz. As primeiras rajadas sufocantes do noroeste encontraram seu corpo quando ainda na janela de sua casa. Teve aquele prenúncio de coisa ruim. Encolerizou-se. Tinha que demove-lo. Correu para a praia, sem ao menos calçar a alpargata. Particulas microscópias de areia enfestaram os seus cabelos soltos em desalinho quando afogados pelo vento que soprava forte. Rebrilhavam que nem lantejoulas aos primeiros raios de sol. Era tarde, a jangada já se derá ao mar.
O barulho dos ramos das árvores era um outro prenúncio que as coisas iriam piorar, ainda mais que os passarinhos de uma hora para outra haviam desaparecido. As ondas estavam se avolumando. Esculturas mutantes de espuma vinham beijar seus pés descalços. Em segundos, Maria das Graças não pode ver mais a vela da jangada de seu companheiro. Varara o horizonte. Desaparecera antes do infinito, na bruma densa que se toldava sorrateira de uma hora para outra. Uma dor profunda assolou seu peito. A dor de quem nunca mais iria ver aqueles olhos da cor do mar...
- Desconjuro. Vaia-me Deus, nossa senhora - bramiu fazendo o sinal da cruz, com aquele pensamento.
- Vem pra casa das Graças, que a chuva vai cair - observou a cumadre, cujo marido ao mar se deu com Ribamar.
Mas dali não arredaria pé! E na praia das Graças ficou. Não arredou pé um segundo sequer, nem quando quarenta minutos depois a chuva caiu qual uma cascata sobre seu corpo. Tremia de frio, mas se manteve ereta, com a mão espalmada sobre os olhos, a procura de qualquer indicio que a levasse a crer que tudo estava bem com seu companheiro. Olhava para o nada, vendo tudo o que não queria ver.
- Vem pra dentro, muié! O céu vai desabá! - ordenou a cumadre Odiléia pela segunda vez.
- Vô não. Chuva nunca mata ninguém. Quanto mais uma aparvalhada que nem eu. Fico aqui.
Escureceu antes da hora e as descargas elétricas se tornaram ainda mais constantes. O céu parecia furioso, revoltado. O mar agigantou-se e o soar da tempestade aterrorizou seus ouvido. das Graças temia o truvão e nunca fora muito amiga do escuro. No céu, estrela alguma bateu ponto naquela madrugada. E nada do Ribamar.
- Coisa do desconjuro! - pensou consigo controlando-se para não entregar-se ao temor.
Novamente fez o sinal da cruz de forma mecânica. Truvão era coisa do rabudo! Do pessonhento, do escarro desumano. Cada relampâgo iluminava melhor aquele perfil roliço e destituído de qualquer juventude e nem as visinhas mais chegadas, a conseguiram dissuadir de sua desmedida vontade de permanecer na praia até que Ribamar voltasse.
- Venha para dentro muiê. Isto faz mal ao menino? - apelou Póla Negri.
- Vô não! Daqui não arredo pé até o desgramado do Riba vortá.
- Pensa no bacuri que tá para nascer - intercedeu a corcunda Matilde.
- Tô bem aqui. O menino tem a coragem do pai. Não tem medo de truvão nem de chuva molhada. Vai ser cabra retado.
- Ôce não tá com frio, muié? - perguntou a cumadre
- Frio da gota, num matá. Daqui não arredo pé, até Riba vortá!
- Cabeça de jegue! - esbravejou Olegária, vencida em seus apelos.
- Vaia-me Deus! - benzeu-se dona Zefinha, que sempre acreditara que tempestade era maldição divina para punir gente pecaminosa.
E como ela naquela sexta-feira tinha pecado... correu para casa. As visinhas igualmente desistiram. Uma compadecida, uma cadeira deixou. Mas das Graças não a usou.
A luz pálida da tarde sôfrega se dissipou novamente. A nova noite varreu a praia sem lua e sem piedade. O tempo passou rápido, pois das Graças perdeu a noção do mesmo. Um novo dia amanhaceu, se fortaleceu, a tarde dissipou as nuvens. A chuva parou, o céu avermelhou-se, mas com o tempo perdeu sua luz e das Graças não arredou pé e enfrentou o novo negrume espigada, em seu corpo moreno fechado e cansado pela fadiga da maratona pela qual estava sendo obrigada a passar. Dois dias e nada.
- Coma algo muié. Se não for por você, pelo menino – apelou a sempre prestativa Olegária, que não tinha inveja no coração.
- Tô com fome, não.
Não adiantava discutir. das Graças quando empacava era pior que mula cega, pensou a cumadre deixando a seguir o prato aos pés da amiga perante sua total recusa. Maria das Graças era a mesma mulher, dois dias mais velha ainda ereta, e não resignada. Riba haveria de voltar.
Outros ventos, outras velas, mas não aquela que ela ansiava rever. das Graças continuava açodada pelas intempéries, mas não arredava um milímetro do chão conquistado. Nem o apelo e o consolo linitivo trazido pelos outros pescadores, a faziam mudar de idéia. Velas ao mar, procura incessante, mas nem vestígio de Riba e seus três companheiros.
- Dona das Graças, não achamos o Riba não - desculpou-se Aparício ao final do quarto dia com os olhos buzuntados de lágrimas.
- Escafundou-se - justificou-se o Zelão, pelo cansaço que sentia depois de dois dias de busca sem pregar olhos.
- Procurem, que o desgramento está lá! - ordenava das Graças sem fita-los, tendo seu olhar perdido no horizonte.
E eles obedeciam, pois, tinham no coração que Ribamar faria o mesmo por eles. Dia após dia, o procuraram. Uma semana se passou. Outra mais. O que aconteceu? Ninguém podia responder. Só havia uma realidade no ar, Sebastião Ribamar foi e não voltou. Nada dele, nem de seus amigos e muito menos da jangada.
Jangadas voltaram a ser lançadas incessantemente ao mar. Semana após semana. Braços voltavam cheios de peixes, mas nem vestígio de seu Riba. As buscas nunca trouxeram as respostas que das Graças gostaria de ouvir. O tempo passou e Ribamar não voltou. Mas das Graças não desistiu e se quedou.
Perdeu peso, ganhou cor, foi tomada de febre e de dor até que o corpo cedeu a força do fragelo e ela desabou. Em sua cama por três dias e três noites tremeu ante uma temperatura de 41 graus. Seus lábios queimados pelo sol, recusavam-se ainda a comer, mas a sopa era trazida e despejada goela a dentro. Até rezadeira foi chamada. No quarto dia, das Graças sarou e se conformou. Riba não iria voltar.
A população de Guimarães rezou mas esqueceu-se. Pobre não pode se dar ao luxo de sonhar, quanto menos esperar pelo leite já derramado. Mas as estórias proliferaram-se como fofoca no plenário. Os admiradores, diziam que Riba e seus companheiros foram devorados pelos tubarões, outros nacionalistas acreditavam que um torpedo de um submarino nazista os levara pelos ares e haviam até aqueles maledicentes de olho no corpo e nos quitutes de das Graças, que arriscavam a afirmar que o malandro havia achado o tesouro e se mandado para o Rio Grande do Norte com os amigos, para tentar uma nova vida cheios de tutu.
- Tão cheios de tutu. Pra que vortá?
Tinha que ser o Eriovaldo, que sempre teve uma queda pela muié dos outros, principalmente as viúvas, pensou a cumadre, que embora igualmente desesperançosa com o desaparecimento de seu marido, sabia que não havia perdido muito. O Zé era frouxo e não dava no couro de há muito...
“Ê, ê, ê, é de doer!
Na Índia, quando zangam
Deixam de comer...”
Era a voz do rádio de dona Clorinda chamando pelas modinhas do carnaval do ano próximo. O único do vilarejo. Mesmo sem ser índio, quem ficou sem comer foi a das Graças que simplesmente não sentia mais vontade de viver. Sem um teto, um futuro e muito menos um pai para o seu filho que iria nascer em semanas, das Graças aceitou o convite de ser cozinheira em um cargueiro grego que partia para a Ásia com uma carga completa de babaçu e borracha. A batalha fora perdida, mas a guerra ainda não. Em algum lugar daquele mundão que ela conhecia, haveria de encontrar Riba e ademais nada era mais feio e tão triste do que Guimarães sem aqueles olhos da cor do mar...
Na viagem ela tomou conhecimento pelo rádio da existência de uma tal de Carmem Miranda. Voz brejeira, cheia de vida. Vida de um mundo que estava a sua espera e que seu filho iria conhecer. Um mundo que havia engolido suas realidades, mas não suas esperanças. E todas as manhãs fazendo sol ou caindo chuva, antes de enfrentar o fogão, das Graças corria até a balaustrada do navio e por minutos ficava com os olhos perdidos no horizonte na esperança de um dia avistar a vela da jangada de seu Riba. Fato que se repetia na calada da noite após o termino de sua faina diária. Sua barriga crescia, e sua esperança mais ainda. Sentia o cheiro do riba. Esquecia-se que era o cheiro do mar... E dia após dia a cena repetiu-se. De pé no chão, sem orgulho ou dignidade, das Graças se mantinha ereta junto a balautrada, em sua procura insana, ciente que talvez nunca mais iria ver o pai de seu filho. Com o passar dos dias, um torvelhinho de toques. Será? Pensou ela, sem se deixar levar pelo temor.
O novo Brasil que ficara para trás, vivia uma tropical anarquia institucionalizada, onde o caudilhismo e o paternalismo confundiam-se e esmeravam-se em ofuscar a verdadeira situação reinante. Mas isto nada importava a das Graças, cujo país e vida só tinham um sentido e este se chamava Ribamar. Havia uma guerra, que ela não tinha nem tomado conhecimento. Havia aquela vontade louca de Riba em achar aquele tesouro e ir para o Rio de Janeiro. Aquilo amargou-lhe a boca. Só tinha um pensamento na telha. Ribamar desaparecera e mais uma vez aquela terra maldita do Rio de Janeiro fora culpada.
Das Graças, desaprendera a chorar. Todo o seu pranto, todas as suas lágrimas haviam extinguindo-se naquelas semanas de espera. Endurecera sua expressão. Enrigecera sua maneira de pensar. Emparedara qualquer tipo de sentimento. Tornou-se uma mulher de pedra. Sem sentimentos, sem recordações, apenas um objetivo. Dar a vida a aquele que estava em sua imensa barriga. Faltava pouco. Não mais que dias.
Tentava recordar-se de Ribamar, já que suas feições pareciam estar dissipado-se em sua lembrança. Borrões como nódoas negras e profundas rabiscavam seu cerebro. A única coisa que das Graças não conseguia desgravar de sua memória, eram aqueles olhos verdes, densos qual aquele mar que agora tinha a sua frente, e que quase também iria lhe sugar a existência. Pois, nada da jangada. E sim um torpedo perdido, que pós a pique aquela embarcação e seus sonhos.
Acordou com o salitre em sua boca. Estava sobre um grande pedaço de madeira que a fazia flutuar. Nada a sua volta. Sentia-se perdida, sem rumo, mas com a esperança que seu Riba a iria encontrar. Voltou a olhar em torno de si. Apenas a imensidão do mar. Sentiu aquela dor profunda e em minutos pariu seu rebento. Trouxe-o a seus braços. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Era Riba que estava de volta. Não tinha como se enganar, pois nunca pudera esquecer aqueles olhos da cor do mar...
Renato Gameiro
parece que visualizamos as pesssoas que fazem a historia ... O Ribamar a Maria da Graça...e parece as mil e uma noites... e pena que s acaba ... fica o gostinho de quere la mais comprida.rs muito boa!
ResponderExcluiré uma linda e triste estória de amor. Das Graças mulher guerreira e Ribamar um grande sonhador, o destino certo do mar.
ResponderExcluirHistoria de amor mesmo sendo tristes sao sempre lindas.Um adeus sem justificativa é sempre muito dificil ainda mais qdo a pessoa é totalmente excluida totalmente mas sempre deixamos um pouco de nós e levamos um pouco conosco.Parabens Sr Renato.Nao vejo a hora de ler o proximo conto dessa vagabunda ai.Abraços
ResponderExcluirObrigado Sra Flavia. O conto da vagabunda daí não vale a pena. Foi substituido por outro bem melhor. Sorry!
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