sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

UM NOVO ANO, UMA NOVA MANHÃ, MAS TUDO MOFA...

     Mais um ano se passara. Mais uma coisa não se modifica: tudo mofa. O pão mofa, a carne mofa, a casa mofa, o cérebro mofa. Você mofa! Para alguns existe pelo menos a chance de recuperação ou mesmo de adiamento se houver manutenção contínua. Mas no geral tudo mofa. Fato irreversível na existência. Lei da vida.


      Velho mofa. Por maior que tenha sido a sua manutenção um dia ele mofa. E quando isto acontece tudo dói, tudo o irrita, tudo o faz se sentir com vontade de acabar com qualquer coisa em volta de si.


      O desprazer de saber que num dia foi capaz de fazer aquilo, mas hoje seja por conta de sua mente ou de seu corpo seja impossível concretizá-lo, torna-o cada dia mais inseguro. A dependência o humilha, o desumaniza. Você regride à situação do cão de estimação, velhinho, que dá mais trabalho do que alegria a aqueles que tomam conta. Uma bosta!
Aristides assim pensava ao abrir seus olhos naquela manhã. O fez lentamente, sem pressa nenhuma, pois, a única coisa que velho tinha em excesso era tempo. Tempo para não fazer absolutamente nada. Mas sem saber porque, tinha um pressentimento que aquela manhã e aquele dia seriam distintos. Era um novo ano. Uma nova manhã que podia sentir que seria bela pelo aroma e pela luminosidade que adentravam pela janela semi-aberta de seu quarto. Uma desobediência que fazia todas as noites depois, que sua filha se retirava de seu quarto e se assegurava que ele estava deitado e dormindo. Onde já se viu o fato de se deixar uma janela aberta ser ocasionador de uma pneumonia. O problema era a idade do pulmão. Quando ele está nas últimas até banho frio dava pneumonia. Ademais, janela fechada trazia mofo. E o que ele menos queria era se sentir mofado.


      Acordava antes da filha, fechava a janela e assim a mantinha até que a desmiolada saísse para o trabalho, quando então voltava a abrir. A escancarava. Adorava o movimento das cortinas leves, agindo qual sílfides em seu esvoaçar sereno e descompromissado. Que movimento. Que leveza. Que suavidade no contacto com o ar...
Sentiu-se feliz que não havia mijado em sua própria cama. A disfunção lhe dera uma trégua. Bom sinal. Fez o sinal da cruz, tomou forças e lentamente soerguer seu tronco, conseguindo sentar sem a dor habitual que sentia em sua coluna. Outro excelente sinal. Tudo seria diferente naquele dia. Era um novo ano. Uma nova manhã. Uma nova fralda intacta... Sentia isto no interior de si próprio. Podia respirar o fato. Tocá-lo até. Tocou-o. Estava seco. Fora o sonho. Agora tinha a irrevogável certeza que o sonho que tivera naquela madrugada poderia cristalizar-se em realidade. E haviam um idiotas que dizia que velho não sonhava. Velho sonha. Sonha, vegeta e mofa! Três verdades que o acompanham.


      Estar sentado, era mais uma vitória e lentamente ele com os pés alcançou seus chinelos. Sentiu inicialmente o frio do piso, mas logo a seguir a suavidade da pelúcia que envolvia aquele seu velho companheiro de todas as manhãs. Era a segurança que sempre sentia antes de chegar ao banheiro. Decidiu dar continuidade a seu destino. Era um novo ano. Uma nova manhã. Mas o velho chinelo... Sorriu e seguiu lentamente, mas ciente que aquela caminhada o levaria a um estágio distinto em sua existência. Afinal, era um novo ano. Uma nova manhã. Um novo mijo...


      O ato de urinar por controle próprio o fez sentir-se novamente dono de si. Balançou lentamente seu membro. Fazia tempo que não o mirava. Como o chinelo, sempre estava lá quando precisava. Sentiu prazer até o último pingo, que não foi o da cueca, pois não a usará naquela noite, nem o fraldão que sua filha teimava que lhe seria útil. Este estava seco. Não dormira nu, da forma que chegara ao mundo e gostaria um dia, se despedir do mesmo. Mas estar nu, agora mesmo dentro de um banheiro que nem janelas tinha, era ao ver de sua filha outra forma de se contrair pneumonia. Ela parecia ter neuroses com pneumonias. Mas não com mofo. Já que era virgem e beata, aos 57 anos de idade. Logo, estava mofada dos cabelos aos pés. Só falava do padre, da igreja, do sermão, das atividades beneficentes, do que a congregação comentara a respeito dos últimos crimes apresentados no Jornal Nacional. Um bando de inúteis, mofados em toda suas mediocridades, que nada faziam, produziam ou geravam. Apenas discutiam coisas que não os levariam a lugar algum. Não haviam acordado para o fato que era um novo ano. Uma nova manhã...


      De volta ao quarto, arriscou-se a chegar a janela nu como estava e pretendia permanecer. O fez lentamente, como tantos outros prazeres sentira desta mesma forma. A brisa que soprava branda e constante não tardou a encontrar o seu corpo e a sensação tenra de uma vida afora o fez sentir-se mais novo. Ela o pegou em cheio. O atingira no rosto e no peito cada vez mais franzino e destituído de músculos. Era uma brisa nova. Produto de um novo ano. De uma nova manhã. Seria ela capaz de lhe trazer a tão temida por sua filha pneumonia? Acreditava que não. Livrar-lo-ía sim, do mofo que estava tentando tomar conta de si devido aquela reclusão imposta por aquela virgem recalcada ao quarto que conhecia de cor e salteado, mas que não mais conseguia suportar. Odiava-o.


Ser velho era uma merda. Ser tratado como tal pior ainda. Mas aquele dia tudo seria diferente. Era um novo ano. Uma nova manhã e ele tivera o sonho. Não um sonho. Ele tivera o sonho. A revelação. Fora um aviso divino. A luz que necessitava para achar o final de seu túnel. Ou melhor daquele quarto que odiava, daquela cama que era sua maior inimiga... Ou melhor sua segunda maior inimiga.


Filha... nem mesmo de seu sangue ela o era. Desdemona era filha de sua mulher, produto de um primeiro casamento curto, e de um viuvez longa. Não tinha a sutileza, nem a beleza, nem mesmo o destemor da heroína de Shakespeare. Sempre fora uma tonta, temente a Deus e a pneumonia. Nunca notara o mofo que a recobria.


Conhecera-a com 14 anos quando já era uma pateta e nada se podia fazer para retroceder seu processo de imbecilidade mental. Tornara-se sua enteada depois de dois anos de namoro com Iara, e Iara valia todo e qualquer sacrifício. Mesmo o de ter sob seu próprio teto aquela parva. Primeira colocada no ginásio, no cientifico, no vestibular e na faculdade. E tudo isto para que? Para ser uma funcionaria de um banco mofado, a duas quadras de sua própria casa e ter sua carreira limitada a uma mesa com uma flor e dois porta-retratos. Todos igualmente mofados. E era virgem. Logo igualmente mofada.


Mofo... como odiava o mofo...


Desdemona não namorara, não casara, não constituíra família e agora se achava no direito de culpá-lo pelo fato. Achava que a doença que levou sua mãe à morte ainda muito cedo e aquela outra que os médicos não sabiam diagnosticar, mas que fazia ele permanecer na cama a maior parte do tempo, eram os responsáveis por ela nunca ter tido tempo de procurar por um companheiro. Leda mentira. Ela era feia, chata, magra que nem um vara pau e mofada. Lia apenas a Bíblia e gostava tão somente de igrejas e orações. Da casa para o trabalho. Do trabalho para a igreja. Da igreja para o supermercado. Do supermercado para a casa. Quem poderia se interessar por uma coisa como esta? Talvez o padre. Mas este tinha seus votos a cumprir.


Era o primeiro dia do ano. O único dia que Desdemona se dignava a deixá-lo em paz. Não vinha checá-lo pela manhã. Mas o telefonava para saber se tudo estava bem. Entrava cedo no banco para aquelas enfadonhas reuniões de discussão de diretrizes. Ou melhor de como os bancos iriam ganhar mais dinheiro naquele ano, daqueles que conseguiam seu ganha pão honestamente com o suor de seu próprio trabalho. Bancos: uns sangue sugas. Uns parasitas. Uns mofados.


Ela ligaria em minutos. E eles não respeitavam sequer o que deveria ser um feriado. Contra senso infernal! O que lhe dava o direito de achar que um velho mofado como ele não poderia passar mal ou mesmo morrer no primeiro dia de um novo ano. De uma nova manhã. Seu ótimo relacionamento com o Senhor? Quem lhe dava o direito de determinar quando ele poderia ou não passar mal ou morrer? O simples fato dela ter aquelas reuniões e estar bem com as ordens do paraíso? Pois, que ela tomasse conhecimento que velhos morrem de Domingo a Domingo. Qualquer dia era dia e o primeiro dia de um novo ano não era exceção. E ele pedia todos os dias a Deus, que se um dia tivesse que ser levado a seus braços, o fosse no primeiro dia de um novo ano, só para aquela santa de pau oco, ter remorso e tomar ciência que toda aquela sua preocupação nos outros 364 dias, onde não haviam as reuniões de diretrizes, fora inútil. Mas para aquele aprendiz de santa, ele teria que estar bem no primeiro dia no primeiro dia de um novo ano, já ela tinha aquelas inoperantes e mofadas reuniões, antes da abertura das portas do banco. Que na verdade não seriam abertas ao público. Mas sim para ele...


Olhou para o pulso. Estava fino e sem o seu relógio. O havia deixado na mesinha de cabeceira junto ao copo da dentadura. Olhou para aquela peça fictícia que tentava passar por real, mas que pelo menos o fazia ainda conseguir mastigar alimentos mais leves. Ela se mantinha impávida e mergulhada na água que assumia uma cor estranha. Era degradante, mas pelo menos submersa, não mofaria. Ele já tinha partes suficientes em seu corpo mofadas para ter outra em sua boca.


Baixou as vistas e mirou a mais mofada de todas. Seu órgão genital. Afinal foi assim que sua mãe o ensinou a se dirigir a seu membro. Que eufemismo. Pica soava mais real, menos pomposo e mais efetivo. Talvez ela tivesse mofado entre as suas pernas, por ter sido sempre tratado ridiculamente de órgão genital. Ou quem sabe por seu excessivo uso, afinal tivera uma saudável mocidade e Iara nunca negara fogo. Até mesmo pouco antes de fenecer.


Lentamente caminhou em direção de volta à sua cama. Apossou-se de seu  relógio, assumiu sua dentadura, botou as calças e calçou suas antigas botas. Foi quando teve aquela dúvida. Não seria mais fácil se calçar as calças e se botar as botas? A língua portuguesa era mesmo deveras complicada. Nunca a entendera. Por isto estava repleta de acentos e definitivamente mofava. Como tudo naquele pais de merda que não tratava condignamente aposentados, como ele. Mesmo no alvorecer de um novo ano, de uma nova manhã...


Trabalhara, defendera com bravura sua bandeira em terras italianas, fora condecorado mas nunca recebera uma pensão condizente com o suor que deixara, na escola, nos campos de batalha e mesmo depois na chefatura de policia. Ganhara aquele relógio de ouro, com uma gravação a fogo que todo dia tocava sua pele, escrita por seus subalternos por ter sido, segundo eles próprios, sempre um exemplo de integridade, honestidade e destemor. E o que isto lhe trouxera? O que aquela honorabilidade o levara? Ao mofo.

Ninguém se lembrava mais dele, ninguém o visitava. Enquanto isto, aqueles que conhecera tão bem, que nunca foram brindados com relógios de ouro, mas roubaram muitos dos mesmos durante as suas pouco honestas vigências profissionais, hoje gozavam um final melhor, com muito dinheiro e a garantia que o mofo nunca os iria atingir. Mofo não atinge rico. 

Caminhou lentamente, quase que se arrastando até o armário onde não teve dúvidas de pegar aquela camisa que Iara lhe presenteara, no dia de sua aposentadoria. Dois meses antes de fenecer. Que para ele era de muito maior valor do que o relógio de ouro que cada dia se fazia se sentir mais pesado em seu pulso. Colocou a gravata. Não tinha certeza se ainda saberia como dar o nó na mesma. Ficou feliz que sua ecmnésia não o havia feito esquecer. Existiam realmente coisas que seu pai lhe dissera que um homem nunca esquece. Andar de bicicleta e dar um nó em uma gravata eram duas delas. A terceira não tinha tanta certeza: o de ter sempre orgulho de si próprio. Talvez seu pai assim o pensasse por ter morrido cedo, em um desastre aéreo, antes de ter sido atacado pelo mofo. 

Após colocar o velho paletó de tantas fainas, abaixou-se lentamente e com muito cuidado para não quebrar ao meio. Naquela caixa de sapato que mantinha escondida abaixo de outros sapatos que não mais usava, apossou-se de sua velha amiga: a Ritinha. A velha quarenta e cinco que como Iara nunca falhara, era uma das únicas coisas que possuía que não estava mofada. Trabalhara muito, como seu órgão genital, mas na realidade fora mais bem cuidada por ele. Nunca tivera uma gonorréia. O órgão, várias. Por isto mofou. 

Voltou a encarar Ritinha. Bela. Sentiu prazer em empunhá-la. Ela mandara vários de volta para o lugar de onde nunca deveriam ter nascido. Orgulhava-se do fato. Não se deu ao luxo de colocar sua cartucheira. Ela era também uma velha amiga e entenderia o desconforto que aquilo causaria em seu ombro. Apenas deixou Ritinha assentar-se no fundo do bolso de seu paletó. Para manter o mesmo simétrismo em seu corpo, colocou o não mais usado cinzeiro, - presente de Iara - no outro bolso. O peso de ambos era quase idêntico. Trabalho perfeito. Ele ainda não esquecera de seus macetes.

Iara nunca mofara, pois era eternamente viva e jovem em espírito. Lhe presenteara com aquele cinzeiro, mesmo sendo contra seu vicio, que hoje fazia apenas um de seus pulmões funcionarem. Quis o destino que ela fosse antes, com um câncer no pulmão, sendo abstêmia, vegetariana e sem nunca ter tido vontade sequer de colocar um cigarro em seus lábios. Crueldades daquele que sua parva filha tanto respeitava e idolatrava. Muitos anos haviam se passado e iara nunca mais teve o ensejo de viver um novo ano, uma nova manhã. 

Olhou-se no espelho. Não reconheceu-se. De há muito deixara de lado o hábito de olhar-se. Estava realmente mofado. Não era apenas impressão, ou coisa de velho bobo que não tinha nada para fazer, como a parva costumava dizer. Uma mofada bíblica...


Consultou o de ouro. As portas do banco estariam fechadas, mas em vinte minutos que ele calculava ser o tempo necessário que levaria para vencer aquelas duas quadras, ele estaria lá. Acenaria para sua filha e já imaginava o torpor de sua expressão em imaginar como ele saíra da cama. Imediatamente faria o guarda o deixar entrar. Afinal mesmo em um novo ano em uma nova manhã, a rua era uma geradora de pneumonias. O sonho fora perfeito.

Não saía fazia muito tempo. Muito tempo era maneira de dizer. Eram anos. Quase uma década. Outrossim, distâncias não mudam nem mofam... Outrossim, o que está a sua volta, sim... 

Como a si próprio, o velho Antônio da portaria não o reconheceu. Melhor assim. Seria uma inchação no saco escrotal ficar dando explicações de coisas que não tinham a menor explicação. Ele tinha uma vida a viver e Antônio, como toda aquela portaria de cara nova, estava mofado. E quase cego.


Afora, sentiu o calor que tanto sentia falta. Como era bom suar. Evitava o mofo. Olhou a seu redor, lentamente. Não conseguiu reconhecer aquela rua que fora durante quase toda a sua existência, parte de seu dia a dia. Havia uma nova farmácia na esquina e tinham acabado com a sorveteria do Lopes. Porque aquela parva não lhe avisara? Não lhe trazia sorvetes porque dizia que lhe poderiam causar pneumonia, diarréia e outras invenções de sua pervertida mente bíblica. Se tivesse dito que a sorveteria do Lopes fechara, ele não teria sofrido tantos anos com a ânsia de poder saboreá-los. Pérfida criatura. O mofo já lhe atingira realmente o cérebro.


Lembrou-se de quantas vezes de mãos dadas por ali passeou com Iara. Sentiu seus olhos úmidos. Em pouco se encheriam de lágrimas. Conteve-se. Estava mofado mas não derretido. Empertigou-se e seguiu a direção que achava ser a do seu banco. Caminhou lentamente, desviando-se das bostas dos cachorros, dos buracos no pavimento e dos pára-choques dos carros estacionados indevidamente na calçada. O Rio de Janeiro, realmente não mudara absolutamente nada em certos detalhes. Neste ponto não mofara.


Conseguiu atravessar a primeira rua. Teve o cuidado de dar alguns segundos para si, depois que o sinal abriu. Apenas por garantia. Estava certo. Duas viaturas haviam avançado o sinal. Um taxi e um esporte conversível que não conseguira reconhecer o modelo ou sequer a marca. Devia ser importado. Rico sempre adorou avançar o sinal. Nas ruas e em seus negócios. Rico era a única coisa que não mofava no Brasil. Estavam ilesos ao mofo e as leis. As desrespeitavam, pois, a eles não se aplicavam, mesmo em um novo ano e em uma nova manhã.


No segundo quarteirão descobriu que a casa Mattos havia sido também extirpada em sua existência. Talvez tivesse mofado, afinal estava cheia de livros e papéis. Coisas que perecem com extrema facilidade. Quando então, quase foi alcançado por dois meninos em alta velocidade. Voavam sobre pranchas de rodas. Nunca as tinha visto. Não eram os velhos patins. Eram pranchas de jacaré minimizadas e com rodas. Talvez os patins tivessem igualmente mofado.


Novas lojas apareceram à sua frente. Não as reconhecia. Todo o velho comércio de Ipanema desaparecera. Era outro mundo. Outra Ipanema. Outra vida. Onde estariam seus antigos donos? Provavelmente mofados em seus quartos a espera de partir desta para uma vida melhor. Doce ilusão...


Lembrou-se de Iara. Ela sempre quis um apartamento de frente. Se a tivesse ouvido, teria acompanhado da janela a evolução pelo menos de sua rua. De seu único contato com o mundo afora, via apenas as áreas de serviço dos apartamentos de um prédio vizinho. Conhecia todas as empregadas. Elas riam ao vê-lo passear nu pelo quarto.


Divisou a entrada do banco. Mudara. Era agora de vidro e mais moderna. Tinha até um individuo uniformizado e armado por trás dos mesmos. Segurança. Sabia que a cidade ficara ainda mais violenta. Via televisão de vez em quando. Adorava saber das desgraças. Elas o faziam sentir-se menos infeliz. Onde se mantinha cativo, tinha segurança. Mofava mas sobrevivia.


Fez um sinal para o guarda contatar-se com sua filha. O mesmo tinha as mesmas características de um símio. Físicas e mentais. Custou a entender. Mas um pouco e ele teria realmente sido atacado pela pneumonia. Mas sem o auxilio de uma banana ele finalmente entendeu. Sua filha teve a parte inferior de suas mandíbulas insustentáveis. Deixo-as pendentes. Mas pelo menos teve o reflexo de ordenar o guarda que o deixasse entrar.


Penetrou no recinto. Recinto... viatura... individuo... Meu Deus, sentia-se como em seus tempos na décima terceira da Nossa Senhora de Copacabana. Que deveria estar igualmente mofada, ou demolida.


Quando entrou a geringonça apitou. Haviam criado detectores de metal para as entradas dos bancos. Que modernidade. O guarda se aproximou dele. Tinha a mesma expressão de sua filha: parva.


- O senhor trás algum metal? Chaves? Moedas?


Evidente que sim, senão aquela porra não teria apitado.


- Um revólver – respondeu cinicamente.


O individuo arregalou os olhos. Faltavam-lhe vários dentes em ambas as arcadas e um considerável volume de massa cefálica entre suas orelhas. Não tinha mais dúvidas. Era o par perfeito para sua filha. Dois mofados. Um macaco e uma banana! Mofados não, pútridos. Talvez fornicassem no final do expediente. Fez uma cara de velho bobo e sapecou:


- Estou brincando. São meus joelhos. Restaurados em metal. Não dá para retirá-los, o senhor há de convir...


Ele como todo bom parvo acreditou. Afinal o que um velho murcho e mofado estaria fazendo armado? Sorriu e o convidou a entrar. Pobre idiota. Era mais que um símio. Era um símio retardado.


Reconheceu sua filha em uma das salas de vidro da esquerda. Tinha dois elementos de origem árabes à sua frente. Provavelmente estava extorquindo os últimos centavos de ambos, com os juros indecentes que aquele banco cheio de frescura deveria cobrar. Ela rezava a noite e extorquia durante o dia.


Todos os funcionários ali presentes eram mais jovens do que ele e tranquilamente o poderiam render. Mas a vida lhe ensinara que todos os poderes foram obtidos pela força. A fraqueza e a covardia, incitam a opressão e o despotismo. Ninguém deu bola para ele. Porque haveriam de dar? Era um velho mofado? Só os coveiros lucravam com pessoas como ele. Todos mais pareciam interessados em seus tarefas, suas máquinas que usavam sem o menor constrangimento. Seria mais fácil do que no sonho. E afinal era um novo ano, uma nova manhã...


Sentiu que o guarda deu as costas para ele. Sua filha levantou-se. Ambos nunca iriam pressentir qualquer perigo. Era um parvo, com cérebro de mico retardado e que nunca deveria ter tido a oportunidade de empunhar uma arma consigo. E uma banana podre que só pensava na Bíblia.


Em um movimento ágil apossou-se da arma do vigilante e deu um tiro para cima. Com a outra, trouxe Ritinha para fora do bolso de seu paletó. Todos os olharam. Inclusive sua filha que não parecia acreditar no que seus olhos lhe diziam. Agora é que aquela sua mandíbula inferior não voltaria mais para o seu lugar.


- Bom dia macacada!


Sem exceção todos os ali presentes o olharam com estupor, mesmo sendo um novo dia, de um novo ano, de uma nova manhã.


- Todos no chão. De bruços. Isto é uma assalto seus mofados!


Obediência geral e irrestrita.


A única que desobedeceu a principio foi sua própria filha. Ela estava branca qual cera. Mas logo deitou-se igualmente ao solo, pois, tinha convicção que nenhum homem esquece de como portar uma arma de fogo. Seu pai muito menos. E ele agora tinha duas em suas mãos.
Renato Gameiro

8 comentários:

  1. Creio q a dependência é o pior dos "mofos" mesmo, porém mais triste q todas as consequencias da velhice q ele carregava era a mágoa q guardava em seu coração.
    Parabéns, Renato, seu conto me prendeu até o final q me surpreendeu bastante.
    Boa sorte c/ seu blog.
    Bjs e FELIZ 2010!

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  2. Excelente, tinha a intenção de ler em um outro horário, mas não consegui parar e acabei lendo até o final. Acho que vou ficar fã desta página!

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  3. Gostei muito, pensei tb em ler mais tarde quando percebi a extensão, mas fiquei completamente absorta. Muito bom!!!
    Seguirei.

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  4. Como outros, tb pensei em continuar a ler depois, já que estava de saída... Fui envolvido por suas palavras e por sua chamada para esta realidade do envelhecimento. Você conseguiu nossa atenção e respeito. Parabéns e espero que possamos conseguir envelhecer com direito a uma atenção digna e cercados de anti-mofos afetivos e vivos !!!

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  5. às coisas "velhas" só mesmo à força se presta atenção. Infelizmente, porque se perde o saber adquirido. Mas eu não pude deixar de prestar atenção à sua estória, o que mostra que a sua ideia e o seu blogue, neste modelo, são uns "Jovens". Envelheçam por favor.Connosco.
    E.Martins

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  6. Adorei Renato
    Comecei a ler e nao pude parar,hj de manha havia comentado sobre a historia de um VELHO amigo,muito proximo,de quem vc talvez ate se recorde ( O Cidene do haras Sao Luiz).
    Pois bem a mulher era voluntaria DO HOSPITAL DAS CLINICAS,A FILHA GERIATRA E O DEIXARAM MORRER A MINGUA,LITERALMENTE MOFADO
    Talvez ele nao tivesse uma arma !!!!!!!!!!!!!!!!!
    Vou virar fregues do blog
    abracao
    NANINHO

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  7. Renato.
    Gostei e não gostei.
    O que é bacana porque vc atingiu seu objetivo!
    A verdade nua e crua de que a velhice é uma merda. Tic Tac Tic Tac...
    O final do seu conto, abrupto como a morte.
    O que desgostei não tem nada haver com vc.
    É de como tento ver as coisas.
    Sou sempre pelo copo cheio.
    Tem uma passagem maravilhosa no "Zorba o grego",
    em que ele está passando na estrada de uma vila e tem um velho bem velhinho plantando uma árvore.
    Zorba pergunta pra ele:
    -Vovozinho com essa idade, pq está plantando está árvore?
    O velho responde.
    - Faço as coisas como se nunca fosse morrer!
    E Zorba responde:
    - Eu faço as coisas como se fosse morrer a cada instante!
    Acho isso. Bater e aliviar,morder e soprar...suspense e surpresa...tristeza e encantamento.
    Beijo Grande.
    Ajax.

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  8. Renato: gostei muito do que li, tanto assim que me permití enviar para vários amigos.Vamos aguardar os semanais.Com certeza serão do mesmo calibre.Em tempo: para os "mofados" , chá de cânfora...Um abraço do Badra (The First)

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