Pirilo e Belinha eram casados há pouco tempo. Para ser preciso, há sete meses, quatro dias e pouco mais de 12 horas, levando em consideração a hora exata em que o Pirilo deu o sim. Belinha mantinha este números em sua cabeça e os update todos os dias. Quem diria! O velho Pirilo, finalmente, sossegando o facho…
Belinha Castenheda era magrinha, quase raquítica, abstinha-se de carnes, gorduras, carboidratos, qualquer coisa que tivesse sódio e salgados. Vegetariana por convicção tinha ainda verdadeira obsessão pela higiene bucal. Todos os dias ela escovava a língua após as refeições e a esterilizava pelo menos uma vez por mês. Trocava de escovas de dentes, de 15 em 15 dias, tal o uso que fazia delas e gastava 2,3% de seu salário em fios dentais e líquidos coloridos para gargarejo e matança de possíveis bactérias que escapassem ao poder da escova e ao criterioso crivo do fio dental.
“A boca é o maior foco de infecções” - dizia ela a suas amigas.
Belinha era tão Caxias, que quando ainda noivos, em mais de uma oportunidade esquecera de levar as camisinhas para o fim de semana na praia. Pirilo sofrera. Mas em compensação, nunca deixara para trás a escova de dentes, o fio dental, os três tipos de dentifrícios e o desodorante bucal. Nos restaurantes, entre a entrada e o prato principal, ela ia ao banheiro para escovar os dentes e antes da sobremesa, voltava para dar uma nova passada de fio dental. Detalhe e organização eram pontos fortes em sua personalidade. Tratava a vida como um teclado que tinha que ser minuciosamente dedilhado devido a sua rígida formação musical.
Pianista que começou os estudos no instrumento em sua cidade natal, Recife, com Waldemar de Almeida, ela já havia representado o Brasil no Concurso Internacional Frédéric Chopin e, por isso, recebera uma bolsa de estudos em Varsóvia, para completar sua formação. Foi, exatamente ali, que se tornou vegetariana, mais pelo alto custo dos alimentos e por causa das filas às portas dos açougues existentes na era comunista, do que, propriamente, pela necessidade de limpeza do organismo. De volta ao Brasil, dois anos depois, no entanto, essa passou a ser sua meta. Tornou-se vegetariana.
O Pirilo, menino bonito da Tijuca, mantinha uma razoável higiene bucal, embora seu apreço por esse item não fosse tão espartano quanto o de sua jovem esposa. Em contrapartida, embora não aderisse ao vegetarianismo, cuidava demais da dieta e do corpo. Malhava de três a quatro horas por dia, após o trabalho, e corria cinco quilômetros muito cedo pela manhã, antes mesmo de pegar no batente. Era conhecido na Praça Saens Pena como, o maratonista. Não fumava, nunca colocara uma gota sequer de álcool na boca e era avesso a frituras. Gostava de vez em quando de uma carninha, mas tinha que ser na grelha sem óleo, com batatinha sequinha, quase esturricada. Bem ao gosto da Belinha. Um atleta em potencial.
Pirilo, ao contrário de Belinha, não era um erudito. Preferia o chope ao Chopin. A única mania que cultivava era o desenvolvimento do corpo e por isso mesmo, trabalhava como assessor da gerência de vendas em uma grande multinacional. Sua empresa vendia vitaminas que atrofiavam o cérebro e os testículos, mas que faziam os músculos masculinos saltarem das pernas e dos braços e tornavam os corpos femininos, masculinos. Entretanto, a diversidade de formação e gostos de maneira alguma tornara-se um impasse para que aquela relação prosperasse e se tornasse sólida. Nos fins de semana, os dois passeavam de mãos dadas, iam à praia, ao cinema, tomavam refrescos no mesmo canudinho e dificilmente discutiam. Pareciam almas feitas uma para a outra, como Adão e Eva antes da maçã, ou mesmo a outra Eva e Juan Domingo Peron antes da primeira discussão a respeito de uma futura partilha de bens. Não havia ninguém em seu círculo de amizades que pudesse supor, que um dia eles, iriam se separar. E, o pior de tudo, num divórcio litigioso e mau cheiroso.
“O Pirilo? Meu Deus, parece cego pela Belinha. Chega até a ter nojo de mulher. Só fala da Belinha. É Belinha para aqui, é Belinha para acolá. Se tornou um verdadeiro babaca! Tem urticária só de pensar sacanagem!” - comentava indignado o Afrânio, seu antigo colega de farras nas noites cariocas e hoje seu superior imediato na empresa em que trabalhavam no centro da cidade.
“A Belinha mudou também da água para o vinho. Antes parecia até lésbica. Não se interessava por homem algum, só tinha partituras na cabeça e, sempre que era cortejada por alguém, tremia e pulava fora apavorada. Tinha medo de pênis como o diabo da cruz. Agora não fica duas horas sem trepar com o Pirilo. Parece uma gata ninfomaníaca. Olha como eles não conseguem ficar sem roçar um segundo sequer um no outro” - reclamou Miriam com dor de cotovelo.
Ela dava mais do que chuchu na serra, mas ainda mantinha-se solteira, enquanto aquela desenxabida de sua amiga arrumara um cara lindo e disputado como o Pirilo. Logo o Pirilo, que ela sempre desejou e nunca a possuiu.
“Eu acho que amor é pele. Esses dois têm o chamado da pele. Do cheiro, do sabor, do tato. Veja como não conseguem largar as mãos. Chega a ser doentio. Quando se beijam, juntam as amídalas. Elas dão um nó! Observe como ele está a toda hora levantando aquela franjinha que cai na cara dela. Que escrotidão. Logo o Pirilo, que era conhecido por bater em mulher. E ela não pára de cheirar o cangote dele. Que atração!” - esse foi o comentário do Arruda que, no verão, como a árvore homônima, ficava vermelho com listras escuras, principalmente quando era testemunha ocular das cenas românticas entre Belinha e Pirilo.
“Não sabia que você era epidemiologista” - contemporizou Rabelo tentando não demonstrar rancor. Logo o Rabelo, que tinha cabelo em todos os lugares e por isso nunca conseguira ir adiante em seus galanteios com a Belinha. Seu colóquio unilateral se transformou, numa incompatibilidade epidérmica.
Enfim, como qualquer relação perfeita e harmoniosa, tinha todos os amigos em volta torcendo contra. Era bom demais para se suportar. Chegava a dar caspa o simples fato de contemplar a felicidade daqueles dois.
“Perfeição demais, para mim, dá câncer” - sempre fora a teoria do Rabelo.
“Coisa tão certinha acaba em monotonia. Olha como ela está magrinha, alquebrada, melancólica como nas garras da tuberculose” - replicava Miriam.
“É tudo para inglês ver. Aposto como, na cama, é cada um para seu lado. Ela só pensa em asseio e ele em desenvolvimento muscular. Ela sonha com um piano, ele com um halteres. Não dou mais um mês para eles se separarem” - deixou claro o Arruda, com aquela certeza granítica de militar no poder.
“Cama? Ela não agüenta cinco minutos com o Pirilo. Ele a verga em duas” - voltou a opinar o Rabelo.
"Vocês disseram isto há mais de dois meses e eles ainda estão por aí inteirinhos e apaixonados”. - lembrou Miriam.
"Um halterofilista e uma pianista, como isso poderia dar certo?” - perguntou em voz alta, meneando a cabeça consternado, o Rabelo que de tão transtornado já estava falando sozinho.
“Existe tanta harmonia que, no dia em que esses dois resolverem brigar, vai ser uma só! E cada um para o seu lado” - vaticinou o Afrânio que tinha fama de ser um profeta, pois, um dia acertara o América contra o Flamengo em sua loteria esportiva.
Tanto a turma agourou que um dia a coisa aconteceu. Evidentemente, com um empurrãozinho do despeitado do Afrânio. Foi numa festa na casa do chefe do Pirilo, o Pereirinha, na Barra da Tijuca. Ou melhor, na mansão do Pereirinha, porque aquela casa era maior do que o estádio do Botafogo. Está bem que ser maior que o do Botafogo não era muita vantagem. Mas, com certeza, a mansão do Pereirinha regulava com as Laranjeiras. A princípio a Belinha não estava querendo ir. Torceu o narizinho afilado. Comer fora de casa era coisa que ela não gostava de fazer. Mas o Pirilo insistiu tanto que ela acabou cedendo. Afinal, não havia ainda aprendido a dizer não para o seu Fofó.
- Você sabe que sou vegetariana.
- Eu sei disso muito bem, meu bombom de coco-bingolê.
Ela adorava aquelas escorregadelas que o marido dava ao relembrar seus quitutes favoritos do tempo de férias de infância no Ceará. Porém a situação ainda lhe parecia nebulosa.
- Vou acabar não comendo nada e vão me chamar de antipática, de esnobe, até de desmancha-prazeres. Você sabe disso. É sempre assim. Lembra-se lá na casa do seu amigo Arruda?
- Esqueça o Arruda. Na casa do Dr. Pereira é diferente. O homem é podre de rico e a mulher dele também é magrinha. Deve haver umas chicórias, beterrabas e quem sabe até uma berinjela daquelas que você adora.
Os olhinhos de Belinha estavam dando voltas nas órbitas. Aquilo era tudo o que ela queria. Chicória, beterraba, berinjela, que maná! Tudo como em Varsóvia...
- Será que eles não têm pamonha, tapioca, humhumhumhum…
Belinha vinha lá de cima do Brasil, já estava no Rio de Janeiro há mais de dez anos, mas nunca conseguira se afastar em forma definitiva dos hábitos alimentares de sua região. Quando via uma acerola, uma serigüela, um inhame-gudu ou um jerimum-paranapuçá, entrava em êxtase. Era melhor que sexo.
- Essas coisas eu não garanto, meu bombomzinho caramelado.
- Nãoimporta. Por você sou capaz de qualquer sacrifício, meu Fofó”.
- Obrigado, minha serigüela amazônica.
- Meu sorvete de gengibre.
- Minha baba-de-moça.
- Meu jerimum-paranapuçá.
E completaram a cena, juntando como sempre os narizes e se beijando qual esquimós. E assim foram, felizes e fagueiros para a Barra da Tijuca. A felicidade era tanta, que a sorte os seguia, e conseguiram passar pelo Vidigal, sem que uma bala perdida os encontrasse. Mas na festa, para o desespero da Belinha, não havia raízes, vegetais e muito menos produtos macrobióticos. A mulher do chefe do Pirilo podia até ter sido magra um dia. Hoje, porém, parecia mais um cubo. E as razões estavam sobre a mesa: carnes, frituras e molho para tudo que era lado. Belinha franziu o nariz, entortou os beiços e, olhando para seu jerimum que não parecia naquele momento tão paranapuçado, reclamou:
- Já senti que não vou ter o que comer.
- Desculpe, meu jasmim. Nunca poderia imaginar que, com uma mulher magra como a que tem o Pereira, não pudesse ter umas verduras na grelha ou um arrozinho integral.
- Você acha que ela é realmente magra, Fofó? Para mim, ela deve tomar remédios para emagrecer, pois a vi minutos atrás devorando uma costela de porco com uma caneca de chope. A mulher parece um cubo.
- Não é possível. Não posso crer. Era tão magrinha. Deve estar grávida.
O Pereirinha se aproximou do casal que se mantinha até aquele momento a um canto e, ao ver seu funcionário com a linda esposa, ambos de mãos abanando, ordenou de forma veemente:
- Vocês dois aí. Não vão me fazer cerimônia a esta altura do campeonato. Isso aqui é uma casa portuguesa com certeza e, como tal, não comer é um insulto imperdoável. Igual a xingar a mãe. Aqui estão dois pratos. Quero vê-los cheios. O Afrânio me garantiu que vocês dois comem de tudo!
Sempre o Afrânio! Aquele sem-vergonha, balofento, putrefato, fétido, pestilento do Afrânio, pensou a Belinha sem dizer nada, mas olhando para seu jerimum com a cara fechada.
Aquilo não iria ficar assim. E o Pirilo tinha consciência, que cabeças iriam rolar. Mas se conteve. Ele sabia que o Afrânio adorava pregar aquelas peças e, de vez em quando, pegava pesado demais. Na verdade, irritar a Belinha era um de seus passatempos prediletos. Mas apelar para aquilo também já era demais. Principalmente à frente de seu chefe. Ele iria à forra, mais cedo ou mais tarde.
- Vamos até a mesa, embromamos e fingimos que comemos - cochichou ela tentando manter a calma. Pode deixar que o Afrânio me paga.
Ela voltou a sorrir. Nada como ter um marido que, além de apaixonado, era um companheiro e tanto. Capaz de ir contra o melhor amigo de infância, e agora seu superior imediato, em sua defesa. Era realmente uma mulher de muita sorte... Mas junto da mesa, seu estômago embolou.
- Não consigo ver nada que dê para, pelo menos, embromar. Só de imaginar estas coisas gordurosas no interior de meu corpo, já sinto náuseas. Se comer, é impaludismo na certa.
Pirilo concordou com a cabeça. Quem escolhera aquele menu tinha preferências escandalosas por uma morte breve e dolorosa. Naquela mesa havia mais gordura que na cintura da Wilza Carla, pensou o Pirilo que quando ainda muito jovem, teve uma queda pela vedete quando a mesma ainda era magra e fazia parte das certinhas do Stanislaw Ponte Preta. A posterior obesidade da citada, o havia traumatizado.
- Foi mamãe que bolou e preparou toda esta comida. - e dizendo, o Pereirinha se afastou para receber outros convidados.
- Ôche que sorte - comentou Belinha que ansiava que o anfitrião não tomasse conhecimento da embromação que ela iria aprontar.
Pensamentos escabrosos passaram a seguir pela mente de Belinha. Tais como, quem poderia ser a mãe do Pereirinha. Uma bruxa agourenta? O que aqueles venenos seriam capazes de fazer a seu estômago? Mas ela tinha que se controlar. Xô stress, xô stress...
Notando a preocupação estampada na face da esposa, Pirilo deu força:
- Güenta firme, meu quindim. Comida não dá febre amarela. Que tal uma batatinha?
- Aquela ali? Deus o livre! Está empaçocada em óleo. Olha que coisa pegajosa. Eca!
- E essas alfaces…?
- Ôche! Você sabe muito bem que eu não como alface fora de casa. Acha que as pessoas se preocupam em lavá-las como eu? Tenho um medo da gota que não as tenham lavado.
- E o ovo? Pelo menos está cozido.
- Vigê Maria! Você acha que eu sou mulher de comer ovo, Pirilo? Tá me desconhecendo?
Belinha o chamara pelo nome. Aquilo era um mau sintoma, pensou ele, engolindo em seco. Em que enrascada o Afrânio o colocara! Não custava nada ele ter dito para o Pereira que a Belinha era vegetariana e uma batata cozida e um arrozinho integral já estariam mais do que suficiente para saciar a fome daquela canarinha nordestina. Ela tinha o estomagozinho de uma cambaxirra. Qualquer verdurinha lhe satisfazia.
Aquela batatinha não estava sequinha como ele gostaria que estivesse, mas pelo menos tinha com cara boa, quase honesta e o Pirilo arriscou colocá-la no prato, pois, acreditava que poderia encará-la sem arrependimento futuro.
- Fofó, você me ama muito?
- Mais do que o céu e a terra, Quiquinha.
- Então não coma esta batatinha que está empaçocada de gordura. Imagine isso em seu estômago, Fofó.
- Eu tenho que comer algo, Quiquinha, senão o Pereira vai notar e perco ponto lá no trabalho. Ele é filho de português, lembra o que disse?
- Pega, então, umas folhas de alface que eu levo ao banheiro e lavo tudinho. Eu trouxe aqui na bolsa o meu limpador de legumes.
- Como você quiser, minha vida.
E desistindo de trazer para o prato as batatinhas que, para ele, não estavam tão paçoquentas quanto a Belinha achava, Pirilo substituiu-as pelas desinteressantes alfaces. Pensando bem, dentro dos aspectos culinários, o Pirilo não acreditava que pudesse existir algo que fosse mais desinteressante que uma folha de alface. Talvez o rabanete...
- Não posso acreditar. Dr. Pereira, olha aqui esses dois com cerimônias. Não estão comendo nada! Vão ficar apenas na alface! - era o Afrânio.
- Já estamos no segundo prato, Afrânio…
- Que mentira, Pirilo. Você é lá homem de comer alface. O rei da buchada de bode da Lapa.
Um piano caíra sobre a cabeça de Belinha.
- Buchada de bode? - perguntou quase em vômitos.
- Sim, buchada de bode. Ele comia duas de madrugada e raspava o prato com as migalhas do pão. Você vai agora me desmentir, Pirilo?
- Isto é coisa do passado…
- Quer dizer que você já comeu buchada de bode? - perguntou Belinha com uma cara de nojo. Não podia creditar. Era ultrajante. Repulsivo. Eca! Como poderia ter beijado aquela boca que um dia saboreou os restos de um bode? Não é à toa que em diversas oportunidades achara a saliva de seu marido um pouco salgada. Era a buchada. Só poderia ser aquela maldita buchada que ficara entranhada para sempre em suas gengivas. Talvez por isso ela tivera aquela infecção na boca há dois meses... Só podia ser a buchada...
- Buchada? Buchada é pouco. Esse cara era doido por língua de boi, orelha de porco e testículos de carneiro. Os testículos ele chupava-os como se fossem cerejas. Se lembra, ô meu? Na porta do Maracanã…
Orelha de porco, testículos de carneiro à porta do Maracanã? E esse era o homem que ela escolhera para compartilhar a vida, até os últimos dias de sua existência? Aquilo não era um homem. Aquilo era um depósito de lixo! Eca!
O Pereirinha se aproximou.
- E fazendo cerimônia aqui na minha casa, Pirilo? Me dêem seus pratos, que eu vou fazê-los para vocês. E quero vê-los vazios para a repetição. Vou ficar melindrado se encontrar restos de comida.
Belinha não podia acreditar. O tal do Pereirinha praticamente havia arrancado o prato de sua mão relutante e agora o enchia como se ela e seu Fofó fossem dois estivadores do cais do porto. E com todas aquelas coisas horrendas e pegajosas, que só uma mãe desnaturada podia ter preparado.
- Vamos ver. Essas costelinhas de porco, essas batatinhas que estão estalando, o quiabinho que é receita de minha avó, macarrão que é a especialidade da casa. Isso para começar. Porque, depois, os dois vão se esbaldar no carneiro que está sendo cozido na gordura dele próprio, ao estilo grego. Receita de minha mulher. Para você, Pirilo, vou mandar separar os testículos.
Ao receber o prato em suas mãos, Belinha não conseguiu conter o grunhido de asco:
- Eca!
- Se segura, Belinha. Por favor - ordenou consternado Pirilo entre dentes.
- Segura você, Pirilo. Ô chente! Ou você acha que eu vou comer esse macarrão nadando em óleo, esse quiabo que tem a baba grudenta e essas batatinhas que parecem uma paçoca? Nem morta, nem morta…
- Mas foi a mãe do Pereirinha que fez...
- Que fosse ele próprio. Nem morta!
O Afrânio tentou se chegar para ouvir melhor o que os dois pombinhos estavam discutindo em voz baixa. Mas o olhar reprovador de Pirilo o fez estancar.
- Arreda daqui demônio! – vociferou Belinha que estava possuída.
Afrânio obedeceu incontinente. Sua brincadeira fora longe demais. Os olhos da Belinha haviam deixado isto mais do que claro. Pirilo tentou contornar a situação.
- Pelo menos engana, minha gatinha.
- Como enganar? A não ser que eu tropece e deixe este lixo paçoquento cair no tapete desta grega porca.
Tinha que ser grega aquela falsa magrela, pensou Belinha completamente fora de si. E o cheiro? Aquela comida cheirava a restaurante de terceira categoria no centro da cidade. O odor do óleo e o aroma sebento da gordura estavam agora entranhados nas narinas de Belinha que mal conseguia respirar.
- Belinha! Cuidado que ela é mulher do Pereira…
- E só por isso deixa de ser porca? Carneiro assado na própria banha. Isso é fétido, Pirilo. Imagine o que deve ser o banheiro dessa porca? Um esgoto.
- E aí? - era o Pereirinha de volta, doido para saber a opinião de ambos - Gostaram do quiabo? - voltou a perguntar ansioso.
- Uma delícia, especialmente o quiabo. - respondeu o Pirilo, enchendo a boca com aquela gosma verde.
- Receita de minha velha avó. Que Deus a tenha num bom lugar.
Provavelmente no inferno, pensou Belinha emburrada.
- Eu sabia que você iria gosta Pirilo. Homem que não gostar deste quiabo é porque não tem cérebro.
Coma que tem muito mais. Fazemos aqui de latões. Dia um dia para o outro. E você, minha querida Lindinha, do que mais gostou?
- Belinha. O nome dela é Belinha, dr. Pereira. Belinha come muito devagar. Ela é do tipo macrobiótica. Mastiga bastante antes de engolir. - tentou atenuar Pirilo, pois, sabia que Belinha estava por explodir.
- Detesto coisas macrobióticas - deixou claro o Pereirinha.
- Nós também - concordou imediatamente o Pirilo.
- Mas entendi que sua esposa era macrobiótica...
- Foi. Há alguns anos. Hoje mantém apenas certos hábitos como mastigar quiabo bem devagar e coisas assim.
- Quero sua opinião. Volto já - e o Pereirinha se afastou com o indicador em pé, a girar de um lado para o outro, sem ouvir o colossal “Eca!” de Belinha.
- Opinião? Que presunçoso da gota! Não é a toa que a avó dele deve estar nos quintos dos infernos. Eu não vou comer essa merda, nem morta. Nem vou ficar aqui ouvindo você se desmanchar qual um tapete, para este seu chefe.
- Come um pouquinho, só um pouquinho, Quiquinha.
- Nem morta, Fofó. Só porque seu chefe cochichou todas essas baboseiras você acha que eu vou assumir um suicídio alimentar? Se ele ficar com abuso terá dois problemas. O de ficar e deixar de ficar! Isto se sobreviver a diarréia que terá amanhã pela manhã com todo este veneno.
- Faça isso por mim Quiquinha, por favor.
- Escuta aqui, ó Pirilo. Você comer buchada de bode e nunca ter me avisado já me deixou maluca.
Testículos de carneiro, orelha de porco, língua de boi… O que mais você comeu? Bosta de vaca, cérebros de macacos, olhos de serpentes, asas de morcegos? E beijando sua boca por todos esses meses?
- Não exagera, Belinha.
Belinha? Pirilo? Aqueles dois chamando-se pelos próprios nomes. Hum! Tinha caroço naquele angu. Eles estavam prontos para entornar o caldo era só dar uma mexidinha... Afrânio, sentiu que a briga era iminente. De onde estava deliciava-se com aquele inicio de discussão.
- Não exagera você, Pirilo! Não vou comer e pronto.
- Pois vai!
Belinha olhou com incredulidade. Era a primeira vez naqueles sete meses, quatro dias, 12 horas e alguns minutos que o seu Fofó aumentava o tom da voz e se dirigia a ela em tom imperativo. Teria sido a buchada que deixara seqüelas irreversíveis em seu cérebro?
- Você está comendo queijo escondido. Seu cérebro o
está traindo, ou por acaso você acredita que manda em mim, ou no que eu como ou deixo de comer?
- Você vai comer e pronto!
Aquilo era demais. O caldo acabara de ser entornado!
- Não vou - respondeu ela batendo o pé, indignada.
- Vai, e vai comer agora, senão eu vou perder o emprego e, se isso acontecer, quem vai sustentar a sua esquizofrenia de fios dentais? Quem vai ter que sair de madrugada com chuva para comprar desodorantes bucais? Quem?
- Esquizofrenia de fios dentais? Por acaso ser asseada com a boca agora é pecado? Você sabe quantos germens ficam acumulados em uma boca após as refeições? Não, você não deve saber. Afinal, como você poderia saber se raspa o prato de buchada de bode na Lapa e chupa testículos de carneiro à porta do Maracanã, como se fossem cerejas? Você e esta aquela grega, são porcos.
- Vê como você fala comigo, Belinha. - ameaçou ele de dedo em riste, engolindo a seguir tudo o que estava no prato para deixá-la ainda mais irritada e mostrar quem mandava naquela relação.
- Baixe este dedo Pirilo!
- Venha baixar!
- Como estão os meus dois pombinhos? - perguntou o Afrânio sorrindo qual um vampiro, ao sentir o suave aroma de sangue no ar.
- Vá à merda! - responderam ambos a uma só voz.
Afrânio se retirou, pois sentiu que sua presença não estava agradando os afilhados de casamento, mas o fez satisfeito, ciente de que conseguira o seu intento. Aqueles dois modelos de virtudes hoje iam se engalfinhar.
Pirilo respirou fundo e chegou a conclusão que perdera a calma e que a Belinha não merecia ser tratada daquela forma. Belinha estava arrependida, mas não seria ela a primeira a dar o braço a torcer.
- Quiquinha, desculpe-me. Exagerei. Mas por favor pense no seguinte. Se você não comer eu vou acabar perdendo o emprego. Faz esse sacrifício por seu Fofó. Uma vez só. Eu juro que não caio mais numa arapuca como essa.
- E você quer que me suicide para que você não perder seu empreguinho?
- Pense positivamente. Amanhã tudo estará no esgoto.
Belinha fez cara de nojo só de pensar naquilo que seu Fofó havia sugerido. Como alguém poderia ser tão frio ao analisar uma refeição daquela forma? Mas pensou por alguns segundos, e chegou a seguinte conclusão. Valeria a pena ela criar problema em uma relação que era perfeita, por causa daquela pasta subaquática? Daquele despeitado do Afrânio? Decidiu que não. Não seria um prato de quiabo ou de macarrão que terminaria o seu casamento, muito menos com o seu estômago. Mas a cabeça do Afrânio tinha que estar naquele acordo.
- Você jura que briga de uma vez por todas com o Afrânio?
- Ele já está fora de minha vida. Não quero ver mais este filho da puta nem pintado de ouro. Agora entendo o porquê de sua ojeriza por ele. Ele quer criar discórdia entre nós. Você tinha razão. Aliás, você está sempre com a razão, meu jenipapo silvestre.
- Você jura que esta será a primeira e a última vez?
- Juro, meu Toblerone.
- Você jura que nunca mais coloca na boca um testículo de carneiro, uma orelha de porco e todas aquelas coisas nojentas que um dia você comeu?
- Juro pela alma de minha mãe. Isto é passado.
- Pela alma de sua mãe não vale, porque você nunca gostou daquela víbora. Jure pela sua potência sexual.
Exigiu ela fazendo menção de que ia derrubar o prato no tapete persa da grega porca.
- Juro! Juro!
- Ok, mas lembre-se que esta é a última vez que você me faz passar por uma situação semelhante. Seu Fofó endiabrado!
- Sabia que poderia contar com você, minha quiquinha doidinha. Ti amo!
- E eu a você, meu jerimum-paranapuçá.
Seus narizes se encontraram num colóquio amoroso e logo a seguir ela engoliu um pouco do macarrão. Eca!
Afrânio do outro lado da sala estava inconsolável. Seu plano escorrera por água abaixo. Aqueles dois estavam de novo trocando caricias e juras de amor. Era pegajoso. A seu lado Rabelo esticou a mão cobrando a aposta. Aqueles realmente não iriam mais brigar.
Horas depois, Belinha e Pirilo, ou Quiquinha e Fofó, já haviam se esquecido daquele entrevero. Uma rusga sem importância. Belinha havia engolido parte da comida horrenda, sem deixar que nada tocasse em sua língua e, logo a seguir, correra para o banheiro onde escovara os dentes e passara quilômetros de fio dental. Sua estada naquele banheiro fez com que uma fila se formasse à porta, o que, além de causar transtorno, já que o chope rolava solto, trouxe certa apreensão ao anfitrião da festa.
- Alguma coisa errada com a Terezinha? - perguntou o chefe apreensivo.
- Belinha. Ela se chama Belinha, dr. Pereira.
- Sim, Belinha...
- Não, apenas uma leve indisposição. Está grávida. Adorou o quiabo. Aliás, quer a receita.
- Essa é de família. Não posso ceder. Mas, sempre que fizermos, juro que chamo vocês dois. Parabéns, sempre é bom ser pai.
Pirilo perdera uma boa oportunidade de ficar calado. Belinha saiu a seguir.
- Como foi lá no banheiro? - perguntou ele, preocupado.
- Desinfetei tudo. Só espero que amanhã esteja ainda viva. Tudo culpa sua.
- Eu sei. Você quer dançar?.
- Nada me agradaria mais do que isto.
Dançando no salão principal da mansão, eles haviam deixado para trás os problemas e estavam acabando de provar para o Afrânio que não havia seqüelas. Aquela união era para sempre.
- Por essa não esperava. Esse casamento é indissolúvel. Desisto. - comentou Afrânio com Miriam que estava de mau humor, pois já não dava para ninguém há mais de uma semana.
- Não há indissolubilidade que se mantenha após um peido como estes - comentou a mal comida.
- Como assim? - assustou-se Afrânio, que resfriado como estava, não notara o odor, mas que agora parecia estar realmente interessado.
- Você não sentiu?
- Não...
Era verdade. Um estranho odor estava agora presente naquela sala e vinha de Belinha. Ela sorria, mas sua face perdera aquela castidade alva e se mostrava um tanto esverdeada. Só podia ser o quiabo fazendo efeito, pensou o Afrânio.
Pirilo se mostrava tão feliz que não notara o que estava acontecendo. Como bebera chope, o que estava fora de seus padrões habituais, simplesmente ria à toa. O peido para ele cheirava como Bulgari e o barulho, como uma sonata de Beethoven. Pouco a pouco, no entanto, a situação foi se agravando. O quiabo estava se engalfinhando com a costela, para deleite do macarrão, e a bateria antiaérea comeu solta. Um torpedo após o outro.
Existem três tipos de peidos na classificação dos chamados sonoros. O Peidinho, o Traque e o Rojão. Belinha, furtivamente, escalou aquela contenção hierárquica. Depois de dois ou três peidinhos, que cheiravam mais do que zumbiam, ela veio com o seu primeiro Traque. Foi rápido, seco e curto. Qual uma bomba de São João! Porém, capaz de criar um espaço em torno de si, com o afastamento dos casais mais próximos. Alguns outros presentes notaram, riram, mas relevaram. Afinal, a moça estava grávida, pois o Pereirinha tinha tratado de espalhar a boa notícia pelos quatro cantos da casa. Todavia, devido aos movimentos que fazia dançando, Belinha não tardou muito a soltar seu primeiro Rojão. E Rojão ninguém agüenta. Aliás, ninguém pode sair impunemente depois de ter brindado a todos com um rojão sonoro e fedorento como aquele. Parecia que a Belinha havia engolido um porco inteiro e este acabara de explodir.
Imediatamente, um espaço se formou entre ela e o resto da festa. Houve uma debandada geral e o pobre do Pirilo, que o álcool parecia ter ensurdecido e privado do resto do olfato, perguntou inocentemente, com a idiotice própria dos bêbados apaixonados:
- O que houve?
E o Afrânio não livrou a cara. Estava ai a chance de sua vingança. Partiu direto para a consumação.
- Tua mulher peidou!
- Infâmia. Eu? - exclamou Belinha piscando os inocentes olhos azuis e provando que havia realmente perdido por completo o controle sobre suas paredes glúteas. E soltou outro ainda pior, de ampla sonoridade.
- Você agora ouviu? - desafiou o Afrânio, cujo suor gotejava na fronte.
Desta feita nem o grau etílico em que se encontrava o Pirilo fora capaz de deixar passar a desapercebido a flatulência de sua amada. A ele nem aos outros convidados que restaram na sala ao lado. O estampido soou qual um torpedo ao atingir seu objetivo e o cheiro a seguir, fez as moscas saírem em debandada. Algumas caíram sufocadas.
- Fofó, foi apenas uma flatulência...
- Quiquinha, desculpe-me, mas isto foi um peido. Ou melhor isto foi mais do qual um peido. Isto foi um rojão!
- Mas Fofo, só pode ter sido o quiabo.
Pereirinha que achegara-se, não pode conter-se.
- Como você é capaz de falar mal do quiabo de minha avó dona Rosinha.
Belinha, que não agüentava mais o Pirilo, o quiabo e muito menos a degenerada da avó do Pereira, deitou a boca no mundo:
- Rosinha é a puta que te pariu, seu porco! Meu nome é Belinha!
Fofó entrou com um pedido de divórcio litigioso. Pirilo nunca aceitou o fato de ter passado por aquela vergonha logo na casa de seu chefe e, posteriormente, ter perdido o emprego. Inserido no mesmo havia um pedido de indenização por perdas e danos contra a ex-mulher. O Pereirinha podia aceitar tudo, menos que o quiabo de sua avó fosse o acusado de toda aquela baixaria. Sua família tinha um nome a zelar, assim, não só despediu o Pirilo, como também o Afrânio. O Afrânio, que depois teve descoberta sua enrustida preferência homossexual e seu amor nunca confessado pelo amigo de infância, o Pirilo, não foi sequer aceito como testemunha ocular, auditiva e olfativa no divórcio. Passou o resto de sua vida carregando estandartes em passeatas gays. Belinha, embora vexada, tomou uma decisão. Não iria mais viver mesmo com um ser que a obrigara a se envenenar e que, além disso, era capaz de comer buchada de bode, saborear orelha de porco, deliciar-se com língua de boi e ainda por cima, chupar testículos de carneiro. Entrou com uma ação contra seu ex-marido, por tentativa de envenenamento e por transmissão de infecções bucais.
E todos viveram tristes para sempre.
Renato Gameiro
Caro Renato Gameiro, adorei seu conto, foi muito divertido e agradavél.
ResponderExcluirParabéns!!!
Muito obrigado,
Clay Lopes
oiiiii..bom dia.....adorei...morri de ri...gargalhei mesmo...
ResponderExcluirBelinha e Pirilo!!!!...e a comida pesada do Pereirinha;também Belinha exagerava..vegetariana???tudo bem...mais um quiabozinho de nada ..só poque tinha gordura demais..hahaha..e o resultado!!! ri demais mesmo...
muito bom...ótimo domingo pra voce
Olá meu querido!!!
ResponderExcluirAdorei seu conto...ri muito aqui,esse casal foi hilário e a situação,nem me fale...rsss
Você é mil, meu querido...bjsss