sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

NÃO ME DEIXE MAL, Ô PHILOMENA

Sentiu em resposta a seu convite, um olhar cítrico. Como podia alguém encarar um outro ser humano como se suas pupilas fossem limões? Ficou estupefato.

Desta vez com o fato de alguém, como ele, ainda ser capaz de usar o termo estupefato. Controlou sua vontade de rir. Ela poderia encarar como um deboche ante a sua negativa. Estupefato... Talvez fosse esta a razão que aquela menina não fosse com ele para a cama. Pertenciam a séculos distintos. Quem sabe a raças distintas. Pouco se importou. Estava bêbado e aos bêbados tudo é válido. Até mijar em suas próprias calças.

Instintivamente desceu seus olhos em direção a brarriguilha de sua bermuda. A coitadinha fez o mesmo, talvez imaginando ser ele um tarado. Seu membro continua lá, quieto, encolhido que nem uma couve-flor, embora minutos antes tivesse tido efêmeros instintos de tomar-se de uma barroca excitação. Tão logo, aquela colombina suburbana sentara-se a seu lado naquele balcão do bar.

Seria a fantasia dela de colombina? De deusa do mares do sul? Ou quem sabe o último pássaro do paraíso? Não saberia como definir. Isto também pouco o importava. Ela chegara, ele se excitara. Ela pedira uma vodka, ele se oferecera, imediatamente, para pagar-lhe o drinque. Ela sem agradecer recusou, ele a convidou para irem para a cama. Ela soltou aquele olhar cítrico, ele conferira o estado em que se encontrava sua bermuda. Felizmente não se mijara, como de outras oportunidades.

Era diabético e uma das coisas que atacam os diabéticos é aquela vontade eterna de mijar. Quando menos se espera vem aquela dor fininha e se um banheiro não estiver em seu raio visual de ação, o membro pinga, pinga, pinga até que jorra sem que você o possa controlar. Uma merda. Logo, ele um cara tão cônscio de sua aparência, tão vaidoso com as roupas que comprava.

- Eu me encanto, com o canto, deste recanto e por isto canto... – rima barata, mas fora o que melhor lhe veio a cabeça.

Levantou seus olhos e notou que ninguém lhe dera bola. Isaías enxugava um copo. Era o que todo barman fazia, quando nada tinha a fazer. A menina engolia de uma só vez o liquido transparente de seu copo. Era uma profissa. Só profissionais bebiam daquela forma. Se não o fosse, acabara de ser traída. Mulher quando se sente traída faz coisas muito estranhas. Adalgisa se masturbava. Carmem trancava-se no banheiro e chorava até não haverem mais lágrimas a escorrer. Gildinha emudecia. Norma agia qual uma pedra: mantinha-se imóvel e dura. Eleonora procurava o primeiro homem para dar. Gertrude cantava uma ária de Aída. Eneida lia a Iliada. Mas aquela parecia se contentar em beber. Talvez fosse apenas um alcoólatra. Uma profissa alcoólatra que acabara de voltar de algum baile de carnaval de mãos vazias. Perdera a noite.

- Isaias, coloca mais um para mim. Mas exagera...

Porque todo homem que trabalhava atrás de um balcão de bar tinha nome de profeta? No final da rua, no Mal Cheiro, o rapaz se chamava Moisés. Teria sido Moisés um profeta? Não tinha certeza. Sabia apenas que recebera os mandamentos em condições até hoje não muito bem explicadas. Matou seu patrão, abandonou o Egito levando com ele a sua tribo, abriu um rio, em condições igualmente não muito bem explicadas e morreu sem chegar a terra prometida. Uma terra prometida, mas sem petróleo. Pobre promessa. Viveu 120 anos e nunca conseguiu chegar a Israel. Não devia ter muito senso direcional. Ou bebia que nem ele.

- Me dê uma outra vodka - ordenou a menina, com uma voz rouca de tenor de ópera bufa.

Tinha decisão em seu pedido. Isaías obedeceu. Esta era a sua função, obedecer. Tinha que aturar bêbados, escutar suas histórias e no final lhes dar a conta. E depois de tudo, pegar um ônibus para o Méier. Não era um profeta. Era um santo.

Olhei para a suburbana. Ela tinha cara de suburbana, jeito de suburbana e bebia qual uma suburbana. Tinha vastos peitos, braços fortes e cílios postiços. Fumava e bebia e estes não pareciam ser seus únicos vícios. Suas mãos e seus pés eram maiores que a média. Perdera uma sandália e sua meia, que mais parecia uma rede de pescar, tinha dois furos aparentes. Suas unhas estavam pintadas de um vermelho quase escarlate. Algumas descascadas. Mas ela parecia não se importar. Agia qual Cleópatra. Só lhe faltava o Egito.

Não sabia o que o atraíra. Talvez a indiferença. Quem sabe aquela sua cor brasileira, café com leite. Mas para café, do que propriamente para leite. Talvez se sóbrio estivesse, não houvesse havido uma atração sequer. Ereção nem pensar. Mas num domingo de carnaval no Rio de Janeiro, duas coisas tinham que ficar claras: primeiro é impossível se estar sóbrio e segundo, todo peixe que caía na rede parecia apetitoso, principalmente a aquela hora da manhã.

- Me faça uma caricia, não tenha malicia, me deixa entrar...

Consultou seu relógio. Eram oito e quinze da manhã. A aquela hora da manhã ninguém o deixaria entrar. Não dormira. A zinha com certeza que também não e o Isaías muito menos. Na atual crise, os bares ali daquela área da zona sul se mantinham abertos, tentando faturar cada centavo que lhe caísse sobre o balcão. O Jóia não podia ser exceção. Ele era o ponto de concentração do bloco Suvaco de Cristo. Na verdade colocara a rua Faro no mapa. Uma rua pequenininha que ligava nada a porra nenhuma.  Que nem viaduto em cidade pequena do nordeste. Será que a menina estava a espera do desfile? Era cedo. No mínimo quatro horas para os primeiros foliões começassem a chegar. Foliões... será que alguém ainda usava aquele termo? Soava como estupefato. Antediluviano. Tudo produto de sua terminologia pré-histórica. Tinha pouco mais de quarenta, agia como tivesse sessenta e em aspecto parecia ter oitenta. Pelo menos naquela madrugada, em que fora colocado para fora de casa.

Está certo que a casa não era sua. Era de Adalgisa, que devia estar se masturbando. Mas quem mandou voltar de sua viagem antes da hora? Fora para a Bahia. Durante semanas lhe mostrara acintosamente os tickets aéreos e a reserva de hotel. E em menos de 48 horas, ficou atacada pela saudade e voltou. Voltou e deu com a Carmem de quatro sendo por ele possuída, na cama de sua avó. A cama e a avó eram de Adalgisa. E o pior vexou-se com a resposta que dera. Mas o que ela poderia esperar? Ele estava tendo com Carmem uma relação anal e ela lhe perguntara ao escancarar a porta o que estava eu fazendo. O que poderia responder: comendo o cu da Carmem!

Foi um Deus nos acuda. Carmem correu para o banheiro para debulhar-se em lágrimas, ciente agora que aquele não era o seu apartamento e sim da mulher que lhe sustentava. Adalgisa lhe sentou a frasqueira nos cornos e ele com as poucas peças que pode recolher desceu as escadas do prédio nu, em fuga desabalada. Imaginem uma mulher que ainda usava frasqueira se indignar com um coito anal. Há de se convir que o anus não era dela, mas a cama, o apartamento e o amante o eram. Talvez esta fosse a razão de sua ira.

Na rua, em um final de noite onde todos pareciam se divertir ele refugiou-se naquele bar. Não tinha um puto sequer no bolso, mas o Isaías, como todo homem com nome de profeta, era generoso. O conhecia e o serviria fiado. Mais tarde, com os ânimos apaziguados, ele faria as pazes com a Adalgisa, reaveria seus pertences e saldaria a divida. Se assim não o fosse, existia a Gildinha, que já devia ter lhe perdoado de sua traição com a prima mineira, a Eleonora. Quem sabe a Norma que aceitava qualquer desaforo. E gertrude, que de há muito não encenava uma ária...

Que culpa tinha ele, se as mulheres se encantavam com sua forma de ser. Mamãe passou açúcar em mim... Como não trabalhava tinha tempo de as cortejar... Será que existia gente que usava a palavra cortejar? Meu Deus. Ele estava parado no tempo e no espaço!

- Vou voltar, sei que ainda vou voltar, para o meu lugar... – será que a Adalgisa seria da mesma opinião? Dificilmente nas próximas 24 horas.

- Mais um Waldercy?

Ele olhou para o doce e impávido profeta.

- Se meu crédito ainda estiver bom.

Isaías serviu mais uma dose de whisky. Desta vez caprichada. O liquido dourado foi até o gogó daquele copo, que fazia parte de sua vida naquelas últimas oito horas. Com certeza os dois casais de paulistas sentado a mesa do fundo pagariam pela diferença. Foi isto que sentiu com a piscada de olho do velho companheiro de noites mal dormidas.

- Como alguém pode se chamar Waldercy?

A voz rouca lhe fez sentir quem fora a mentora daquele comentário.

Sentou-se melhor no banco e conseguiu ter uma melhor visão daquela que agora lhe dirigia a palavra. A profissa alcoólatra. Não valeria a pena perder tempo em explicar para aquela desmiolada que quando sua mãe de chama Dercy e seu pai Waldemar, é melhor se chamar Waldercy do que Dercywal.

- Porque Daniela? Você não gostou?

Os olhos da víbora tornaram-se incandescentes como os de Norma, quando tomou conhecimento que ele estourara com seu cheque especial.

- Quem lhe disse que me chamo Daniela?

Tratava-se de uma profissa, alcoólatra e completamente destituída de massa cefálica. Perfeita para a ocasião.

- Ninguém, para dizer a verdade. Porém, eu diria que toda suburbana metida a besta tem nome cafona. Nome de miss. Daniela, Monique, Adalgisa.

Ela o encarou no fundo dos olhos. O álcool já lhe tomara os sentidos. Porejava em sua testa e uma fina baba de saliva lhe escorria nas laterais de seus lábios, que agora pareciam dois borrões de um antigo vermelho. Ela não era feia. Não chegava a ser bonita. Resumindo, servia para o gasto. Mas era dona de trejeitos estranhos. Seu peito arfava, suas mandíbulas tremiam e seu nariz parecia iniciar aquele processo de expelir fogo. Talvez fosse um dragão.

- Suburbana é a vaca da tua mãe.

Era afiada na língua, só esperava que o fosse também na cama. Era degluti-la e colocá-la em um taxi.

- Por incrível que pareça, você acertou. Minha mãe era uma ruminante que morava em Ramos. Logo, suburbana que nem você. Tu é do ramal da Central ou da Leopoldina, ô Monique?

- Monique é o scambal, seu velho nojento. Moro aqui na Gávea. E tenho nome de pedra preciosa.

Devia fazer ponto na porta do Flamengo ou das Sendas e chamar-se Esmeralda.

- O papo está muito bom, mas tenho o que fazer. Entendi, que uma trepada nos próximos minutos está totalmente fora de cogitação?

Enfureceu-se. De pé, Daniela, Monique ou o nome pela qual atendesse parecia ser bem maior do que sentada e sua mão espalmada em direção a seu rosto, tinha a mesma forma e circunferência de uma raquete de frescobol. Como Bush, ele conseguiu se desviar daquela tabefe e esperou pelo segundo sapato. A suburba se equilibrou novamente, e agora mais perto tentou acertá-lo, desta feita, com a mão cerrada.

Quarenta anos de zona sul do Rio de Janeiro, equivalem a 150 anos de zona norte. Com um passo atrás baixando a cabeça, apoiando sua mão esquerda no banco que antes sentara, ele lançou sua perna rasa em um movimento rápido. Com um leve toque, fez a menina ir ao chão. Era o famoso rabo de arraia que tantas vezes o salvara no desfile do cordão do bola preta e o fizera famoso nas rodas de capoeira.

O baque foi firme e surdo. Qual uma melancia que rolara da mesa onde estava postada. Caída seus olhos se tornaram mais arregalados. Parecia não estar acreditando o que o destino lhe reservara. Estava bêbada, abandonada e no chão. Derrubada por um bêbado de bermuda descamisado, que mais parecia um pedinte na estação da central do Brasil.

Ela tentou se levantar, mas o índice etílico a impossibilitou de levar avante seu desejo. Sua expressão se tornou turva. Como se estivesse acabado de ter um choque anafilático.

Isaías, como todo bom samaritano, veio em seu auxílio. Ele conhecia a noite e os freqüentadores de seu bar. Existiam gente de bom caráter. Gente de mal caráter e o Waldercy, que não era dotado de caráter algum. Waldercy, era gente boa, mas quando bebia se excedia. Mas a menina não facilitara as coisas e ainda por cima era pesada. O pobre do Isaías franzino do jeito que desajeitado deste pequenininho, bem que tentou. Mas foi impossível. A mulher era forte e estava encharcada de álcool. E desta forma, ele foi ao chão. Dois corpos no assoalho frio e viscoso.

Os dois casais paulistas se levantaram. Não estavam acostumados a aquelas cenas de pugilato, bem tipo de cariocas. De fininho deixaram o recinto, sem antes jogar sobre a mesa algumas cédulas surradas. Recinto, nunca conseguira se afastar do seu linguajar de delegacia. Com certeza os indivíduos estavam a caminho de suas respectivas viaturas. Coisa de delega. Riu ao lembrar da cara do delegado Nicanor, quando o expulsou da corporação depois de tomar conhecimento que sua filha virgem e freqüentadora do Sacre Coeur de Marie, estava dele grávida.

Duas pessoas que passavam pela rua, diminuíram o ritmo de suas passadas para entender o que estava acontecendo naquele bar. Um mulher grande e um homem pequenos deitados no piso, um sobre o outro. Não conseguiam a chegar a um ponto comum. Coisa de carnaval, devem ter pensado, pois, seguiram, logo a seguir, o seu caminho.

Este é o grande retrato da zona sul do Rio de Janeiro. Eu tô na minha. Tu fica na tua. E assim estamos na nossa!

- Não me deixe mal ô Philomena, pois isto não vale nunca a pena, deixa de lado esta sua cena e ...

A suburba havia desmaiado e o pobre do Isaías não a conseguia içar. Por segundos, teve a nítida impressão de estar assistindo ao capitão Ahab tentando fazer o mesmo com Moby Dick.

Parou de cantarolar mas não voltou a se sentar. Muita água ainda haveria de rolar. Pegou o copo, olhou para aquele whisky que lhe deixava ver através. Nada viu. Bem que tentou. Fechou então os mesmos e engoliu o liquido de um só vez. Ele desceu mais morno que os anteriores e sua garganta agradeceu o gesto. Colocou o copo sobre a mesa e foi dar na rua.

- Não me deixe mal ô Esmeralda, pois isto pode derrubar a calda, e com isto molhar a sua fralda ...
Espreguiçou-se. Aquele seria um longo carnaval.

Renato Gameiro

Um comentário:

  1. NÃO SEI SE VC RECEBEU MEU COMENTÁRIO SOBRE O SEU CONTO (ULTIMO), LEIO SMPRE AOS DOMINGOS E COMO ESTAVA NO ESCRITÓRIO E HAVIA DADO UM PROBLEMA DE REDE, CASO VC NÃO TENHA RECEBIDO POR FAVOR INFORME. COMO SEMPRE GOSTEI MUITO, NA VERDADE É HILÁRIO E EU ME DIVIRTO COMO SEMPRE. GRATA, MARILIA GUIMARÃES

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