Estavam todos os nove, presos no elevador de um hotel de luxo em Recife, há poucos minutos do início de mais um jogo da Copa. Um casal brasileiro, dois maranhenses, um japonês que escapou centimetros de ser um anão, um árabe, um norte-americano, um executivo paulista e uma aeromoça portuguesa.
Orozimbo, um dos que estavam no elevador, nunca fora um ser abonado pela sorte. Mas tinha senso e sabia exatamente quem era o responsável por aquele terrível odor que rapidamente expalhara-se pelo apertado elevador.
O peido saíra sem som e pegara a todos traiçoeiramente. Peido sem som é que nem torpedo de submarino, explode com tudo quando menos se espera. Pouco a pouco foi tomando o nariz de cada um com aquele aca própria das flatulências contidas. Imediatamente um misto de pânico e desespero tomou conta de todos. Cada um começou a suspeitar do seu vizinho. Olhares foram trocados, mas ninguém tivera a coragem de acusar ao próximo. Sem som, não há culpado.
- What is that? – perguntou indignado o norte-americano com aquela total falta de respeito humano emitida por um dos passageiros do elevador.
- O porco - exclamou o árabe de dedo em riste.
Peidar num elevador cheio, enguiçado, num calor infernal e com uma circulação de ar precária, era um atentado a integridade física. Merecia no mínimo denúncia. E assim Orozimbo não teve a menor complacência. Olhou para o acuado rabino, corroborando a denúncia do árabe.
- Trata-se de um peido clerical - comentou entre dentes Orozimbo.
- What? (O que?)
- Was him. (Foi ele).
O árabe saciou a curiosidade norte-americana, apontando diretamente para o rabino que agora suava e tinha a face roxa.
- O que este cara comeu? Um urubu? - perguntou o executivo, que por estar agachado, tinha suas narinas mais próximas da área de produção daqueles gases mortíferos.
- Com peidos como estes, o Arafat não agüenta mais do que quinze minutos na Palestina - deixou claro o maranhense, rindo a seguir para sua esposa.
- Lá eles usam gases piores que estes contra nós - enunciou o árabe que espumava de raiva e deixando antever que seu hálito não era muito melhor do que os gases expelidos pelo rabino.
Orozimbo estava vendo a hora que o árabe iria partir para cima do rabino e o gringo iria achar um jeito de telefonar para seu advogado para abrir um processo contra o peidão. Mas foi o executivo paulista que tomou a iniciativa.
- Peidar não! Ô de Israel!
Fora uma súplica exasperada, cheia de irritação, embasada em protesto e regada ao fato dele estar possesso por não ter podido completar a sua ligação.
- Chelo luim…luim! Pum! Pum! - esperneou o japonês com os dedos espremido suas narinas.
- Non lo posso crer… solo en Brasil… - demonstrou desagravo o argentino que estava de terno e gravata, como todo habitante de Buenos Aires.
- O gajo precisa de um copo d’água - exclamou a hospedeira se esquecendo do fato que ela não tinha uma cozinha à sua disposição no fundo do elevador como possuía no avião.
- Eu sabia, eu sabia. Tudo culpa sua! - reclamou Cristina, apertando ainda mais o braço de Orozimbo.
O rabino se manteve calado em total estado de enrustição, mas sabia que se desse outro daqueles cheirosos, iria sair por aquele pequeno orifício.
- O Ariel Sharon deve estar pensando no muro das lamentações - comentou mal humorado o árabe -
Mas se der outro peido eu te faço passar por este buraco - completou a seguir.
O executivo de volta a seus pés, havia desistindo de completar a sua ligação. E agora tinha seu nariz na altura da boca do árabe e o fogo cruzado de odores o deixou tonto por alguns segundos.
- Mas que merda é esta? - tonitruou demonstrando total impaciência e quase inconciência.
Mas alguém estava se aproximando e isto atraíra a atenção de todos. Era um empregado do hotel, acompanhado de outro que trazia um ventilador e um rádio de pilha as mãos.
- Todos ai? - perguntou o beócio.
- Não. Dois saíram para ir ao banheiro, mas voltam já, - respondeu Orozimbo, cutucado por Cristina, que mais uma vez o lembrou que a culpa era toda sua de estarem na situação em que se encontravam.
- Ao em vez de ficar a dizer gracinhas para o pobre do rapaz que está tentando nos ajudar, devia se lembrar que poderíamos ter descido pela escada e não estaríamos neste sufoco. Tudo culpa sua.
- Aqui estão o ventilador e o radinho. O técnico já deve estar a caminho... Mas que cheiro é este?
- A merda do judeu peidou - vociferou o árabe.
Mas Orozimbo não se preocupou com o fato. Havia algo mais perigoso solto no ar do que aqueles bacilos fecais. Era aquele “deve” do ajudante. Conhecedor como era da indolência nordestina, Orozimbo pressentiu que aquele deve poderia ser mortal. Para sempre. Talvez segunda-feira…
Domingo. Dia de jogo do Brasil na Copa. Soou qual uma sentença de morte para o Orozimbo que parecia ser o único entre os aprisionados a conhecer o psique do nordestino. Dormia com uma há 25 anos. Aquilo iria ser pior que uma tortura. O “deve” era normalmente sinônimo de “esquece negão, você sifu”.
O executivo esbravejou a todo pulmão.
- Se este seu ‘deve’ for mais de dez minutos eu vou arrumar um barraco neste hotel que vocês nunca irão esquecer. Tenho compromissos e não posso sequer usar meu celular. Vocês sabem quanto isto pode me custar?
- Que emissora vocês querem ouvir? - perguntou um dos prestativos empregados sem se importar com as ameaças do jovem executivo.
- O jogo do Brasil é claro! – exclamou o maranhense.
- Mas é que existem varias emissoras…
- Coloca qualquer uma, cabra da peste - ordenou a nortista apenas para acelerar o processo.
Os dois empregados do hotel não tardaram a desaparecer da presença daqueles pobres dez coitados em cativeiro gasoso. Provavelmente haviam corrido para assistir o jogo na televisão. Imediatamente a voz do locutor foi ouvida. O Brasil acabara de perder um gol. Orozimbo suou frio.
- Estar preso aun así tener que oír el Brasil jugar.
- Que mala este cara! Até quando o Brasil vai deixar estes flagelados virem para cá? Olha aqui o meu.
Cala a porra da boca ou eu não respondo por mim. - era o executivo perdendo efetivamente sua paciência e demonstrando estar louco para executar o Gardel ali mesmo. Para bem de todos e felicidade geral dos presente, o argentino mais uma vez afinou. Ele afinou e o Orozimbo cresceu.
- E você tem sorte que só entrou no 5th andar. Estou agüentando este paletó desde o décimo nono. O cara não é uma mala. É uma bagagem inteira!
- Não vá me criar mais encrenca. Estamos aqui por sua única e exclusiva culpa. Nunca me ouve e depois sou eu que tenho que pagar pelas suas cagadas. Você não aprende nunca - lembrou Cristina o cutucando mais uma vez a altura das costelas.
Orozimbo detestava aquelas cutucadas. Ser pé frio já era dose. Mas ser lembrado diariamente do fato por intermédio de catucadas era demais.
- Why they did not come yet? I have a plane to catch. (Porque não vieram ainda. Eu tenho um avião para pegar)
- Because brazilians are complet idiots. (Porque brasileiros são uns completos idiotas)” - provocou o argentino.
- Olha aqui o Maradona. Na tua terra, já teriam roubado o elevador para pagar a divida externa. Logo, cale a boca, escute o jogo antes que eu lhe faça sair por esta frestinha.
Até a hospedeira da TAP havia concordado com o executivo paulista. O Gardel já estava passando dos limites. Orozimbo concordava. Ele e o rabino peidão estavam na marca do pênalti. E ademais o executivo era uma porta. 2,20 por 90, cercado de músculos por todos os lados. Com estas dimensões e características, ele tinha não só direito a opinião, como pleno apoio de quem quer que seja. Pelo menos ele o tinha do Orozimbo.
E o radiozinho colocado piedosamente por um dos funcionários do hotel avisou pela primeira vez que o Brasil já ganhava de dois a zero.
- Já está dois a zero. Gols de quem?
- Não interessa de quem. Fizemos dois e isto é que interessa! - retrucou Orozimbo sorrindo para o casal maranhense, porém temeroso que agora que estava ouvindo o jogo, a coisa engrossasse.
- China luim, luim. Blasil gana de 10 a zero.
Aquele ruidosinho típico do peido contido mas não retido pode ser ouvido vindo da área aonde se encontrava o rabino. Veio fininho que nem a turbina de um avião quando colocada em movimento. E o odor não tardou a tomar as narinas apertadas, mas ainda presentes a aquele elevador.
- Outro peido não! - exclamou o maranhense.
- O Sharon se segura - ordenou o Orozimbo.
- Mas um e te arranco estas meleixas - avisou o árabe em forma de ultimato, já babando de desejo.
E para culminar a China quase marca.
- Orozimbo, eu acho melhor pedir para desligar este rádio.
- Se segura amorzinho, pois aqui ninguém sabe...
- Sabe o que? - perguntou o executivo curioso com toda aquela preocupação da esposa do vara pau.
Orozimbo gelou dentro de suas veias, pois, conhecia sua esposa, que respondia antes e pensava depois. Mas Cristina, pela primeira vez, conteve-se. Nada adiantaria todos ali saberem que tudo que estava acontecendo era culpa única e exclusiva de seu marido, um azarado de caderneta.
O executivo estava possesso. Suava e a brilhantina que anteriormente domesticava à força os fios rebeldes da vasta cabeleira, não conseguia mais fazer o efeito esperado. O argentino, expremido contra a parede do elevador borrifava saliva para todos os lados. O árabe, possuidor da argúcia de olhos farejadores, acostumados as altas temperaturas do deserto, mostrava-se pronto para atacar. Orozimbo pode prever que em breve as víceras do judeu estariam aparentes, viscosas e putrefatas aos olhos de todos. Mas foi o executivo sulista que advertiu a todos.
- Se vocês dois tentarem transformar este elevador num campo de batalha Palestino, não respondo por mim - e olhando fixamente para ambos, deixou claro que não estava brincando - Se você peidar e você abrir mais uma vez esta sua boca fétida, vou começar a distribuir porrada a torta e a direita. Entenderam?
A poeira pouco a pouco voltou ao chão.
- Alguém ai fora sabe quem fez os gols do Brasil? - perguntou de forma suplicante a maranhense.
- Precisamos sim urgentemente são de máscaras de oxigênio. Alguém tem uma mascara de oxigênio? - suplicou Cristina que tinha certamente o mais apurado olfato entre os presentes e estava apavorada que aquele odores a pudessem contaminar.
Mas a curiosidade da maranhense tinha que ser sanada o mais rápido possível, caso contrario viraria agulha de vitrola emperrada.
- Alguém ai fora sabe quem fez os gols do Brasil?
Nenhuma resposta.
- Alguém ai fora sabe quem fez os gols do Brasil?
- O Maranhão, por favor mude o disco - reclamou o executivo.
- Es lo momento propicio para hacerle frente a los acontecimientos.
- E o que você quer que façamos, o argentino de merda? - perguntou o executivo – Você quer que iremos invadir as Falklands, para levar aquela sova que vocês levaram dos britânicos? Que cantemos o hino argentino, para ver se esta porra despenca de vez que nem o Peso?
- Alguém ai fora sabe quem fez os gols do Brasil?
A agulha da vitrola realmente emperrara, mas graças a Deus, desta vez alguém a ouviu.
- Roberto Carlos de falta e Rivaldo de cabeça.
A voz era do mecânico do elevador que acabara de chegar.
- E como estamos jogando? - voltou ela a perguntar enquanto seu marido pedia para calar-se.
- Não sei madame. Estava dando show até me chamarem para consertar esta geringônça. mas que cheiro é este? Alguém morreu?
- Teria sido melhor nós termos ficado em São Luiz. Lá não tem elevador e a gente estaria vendo o jogo pela televisão.
O mecânico deixou claro sua abalizada opinião futebolística para quem quisesse ouvir.
- Estamos jogando uma bola da gota. Os chineses não existem. Como todos estão ai?
- Peidando. Se vocês não tirarem a gente daqui rápido este judeu vai sufocar a todos aqui. -era desta feita o executivo sulista que pingava dentro de sua gravata já desabrochada.
Orozimbo notou mais um detalhe: executivo paulista sem poder usar seu celular e com a gravata desabrochada, não funcionava 100%.
- Se aquietem. Não se avexem não, que vai demorar um pouco.
Aquele um pouco é que tirou novamente o Orozimbo do sério. Ele sabia muito bem o que representava um pouco num fim de semana com um jogo do Brasil rolando na Copa. Seria no mínimo uma eternidade.
- Se preocupem, não. Estamos fazendo todo o possível. Se assentem, escutem o jogo e se preocupem não. Volto já.
Ele tinha ido para sempre, pensou Orozimbo.
Aos 41minutos, Ronaldo recebeu um cruzamento dentro da área e cabeceou por sobre o gol. Raspando a trave como diria o locutor. Aliás, as bolas sempre raspavam a trave quando ouvidas pelo rádio. E principalmente quando o Orozimbo estava na escuta.
- No mínimo passou a dois palmos - comentou o doce maranhense para a sua esposa, que só conseguia ficar emudecida em situações como aquelas.
Mas faltando dois minutos para o encerramento da primeira etapa o Brasil marcou o terceiro. A dupla Ro-Ro tabelou e o "Fenômeno" foi derrubado na área: Pênalti.
- Ninguém pula se for gol! - advertiu o executivo e completou antes que a penalidade viesse a ser convertida. - Não pulem que esta porra despenca de uma só vez. Estamos em Pernambuco, lembrem-se!
Cristina apertou o braço do marido em pânico. Só faltava perderem o penalty. Rezou a todos os seus santos, para perdoarem o fato de seu marido estar escutando aquela narração.
- Tape os ouvidos.
- Mas querida...
- Tape os ouvidos Orozimbo!
Não haveria margem para discução. Orozimbo obedeceu a contragosto.
Ronaldinho Gaúcho marcou. Três a zero e terminou o primeiro tempo. Que alivio.
- E ai Gardel? Brasil tá dentro e a Argentina vai ter que cagar sangue com a Dinamarca para continuar na disputa - gozou o executivo.
- Sangue? Blood? What is going on? - preocupou-se o norte-americano agora realmente aflito com o que poderia acontecer.
- Chelo luim... muito luim...
O gringo não só perderia o avião como também teria que ser testemunha de algo sanguinolento. Aquilo realmente não estava dentro dos seus planos. Sentiu saudades de Idaho.
- Do not worry is only an expression. (Não se preocupe isto é apenas uma expressão)” - apaziguou a aeromoça com aquela voz típica.
Porque aquelas moças sempre pensam que necessitam agir como as mãezinhas da humanidade? O que dava a elas esta vontade de achar que até num elevador teriam que acalmar os passageiros? O que aquela portuguesa entendia de elevadores?
- Quagarrr sangue? What is Quagarrr?
- Cagar. Attention please. CAGAR. Let me spell to you. (Deixa em soletrar para você) C de Charles, A de Apple, G de Gary, A de Appel, R de Robert! Repeat! (Repita) - assumiu o executivo a tradução para o apavorado gringo.
- GACAR!
- Não. Not Gagar. It is CAGAR With C. C of Charles, Cincinnati, Connecticut. Did you understand ? (Você entendeu?)
Orozimbo não conseguia acreditar naquele diálogo desenvolvido entre o executivo e o pobre americano de Idaho frente aos olhos esbugalhados de uma hospedeira portuguesa e tudo isto tendo os resquícios do peido de um judeu e o mau hálito de um árabe, com pano de fundo. O gringo que agora mais parecia uma batata, pois, além de gordo, estava pegajoso, estava a pronto de aprontar também.
Mas os olhos de Orozimbo se mantinham pregados no rabino que a seu ver estava pronto para soltar outro bombástico. Pelos sons advindos de barriga roncante seria desta feita um trovão. O árabe estava pensando em emitir uma opinião mas ao ser encarado pelo executivo, manteve a sua boca fechada. Só o japona nada notava, pois até pos maranhenses passaram a sentir a gravidade em que todos se encontravam.
Orozimbo tinha que pensar em algo que estancassem aquela onda de gases, mau hálito e pressão psicológica. Uma distração que mantivesse a atenção do rabino em outra coisa que não fosse o funcionamento de seu intestino. Que fizesse o árabe manter sua boca fechada e o norte-americano com os olhos fora do decote da aeromoça. E assim perguntou se dirigindo ao executivo.
- Quando você entrou no elevador estavas falando de Mercosul. E ai, isto vai vingar ou não?
Cristina olhou para o marido perplexa. Da onde ele tirara aquele súbito interesse por assuntos econômicos?
- Como sem falar uma mesma linguagem, se o produto interno bruto do Uruguai inteiro é menos da metade do que a Cidade de Campinas? E na Argentina não há dinheiro circulante, só pero que si, pero que no! E tudo no corralito para receber daqui há dez anos. Dá para acreditar? O Brasil não pode agüentar tudo nas costas. Temos que dar uma banana para estas cucarachas e nos alinhar com os norte-americanos.
- Não sei como vocês podem falar de economia numa hora como esta, ora pois, pois - atalhou a hospedera.
- Tristinha porque ainda não conseguiu pescar o bagre yankee, queridinha?
Ela olhou para o executivo com uma expressão lasciva. Estaria a lusitana inclinada aos prazeres do sexo ali mesmo naquele elevador? Ela abrira sua blusa e o gringo tinha agora seus olhos pregados e o nariz quase enfronhado dentro daqueles seios que quase pulavam fora no apertado algodão branco. O japonês sentiu algo tocar seus fundilhos. O norte-americano, empolgado com as formas da zona mamária da portuguesa, acabara de iniciar uma ereção e apertados como todos estavam, o pobre do japona é que levou com a rebarba.
- Enlabar não. Enlabar não.
E deu uma cotovelada no gringo. Outra Hiroshima não iria suportar. Mas o efeito foi dominó. O gringo refugando bateu no argentino e este acabou por espremer a Cristina que ao proteger-se da investida levou o corpo de seu marido a ir contra o do judeu que não mais pode suportar. O estrondo foi mais do que convincente. Foi cruel.
O japonês, que de veado não tinha nada, arfava com violência. Logo foi o que aspirou com mais intensidade aquele gás quase venenoso. Ele ia aprontar outro Pearl Harbor se o red neck não voltasse logo a seu estado normal de inércia sexual.
- What are you doing?” (O que você está fazendo?). - reclamou o gringo sem entender patavina do porque daquela agressão e do porque daquele cheiro asfixiante.
- Japonês não e vilado não.
O tempo passou e o segundo tempo começou e o Brasil fez o seu quarto gol, mas ninguém mais parecia estar interessado no jogo, ou mesmo no resultado positivo brasileiro. Todos suavam em bicas e sofriam com os odores. Só quando faltavam quinze minutos para o término da peleja os enclausurados daquele elevador definitivamente vieram a ser liberados. Neste ínterim todos tiveram que conviver com mais três peidos do judeu e duas aberturas de boca do árabe. Mas entre mortos e feridos todos se salvaram. Intoxicados mas ainda vivos.
O norte-americano perdeu o avião mas ganhou o cartão pessoal da lusitana. O executivo conseguiu fazer o seu celular funcionar e comprou as ações que despencariam dois dias a seguir. O maranhense jurou que nunca viria mais ao Recife assistir a uma Copa do Mundo. O japonês chamou a segurança para tentar prender o gringo por assedio sexual. O árabe seguiu de forma suspeita o judeu até a rua. E o Orozimbo levou o maior esporro da Cristina. Que exigiu que mudassem para o segundo andar.
Mas o melhor é que durante a disputa, ninguém morreu, ninguém roubou, ninguém traiu, ninguém seqüestrou e ninguém se reuniu para protestar contra o assassinato de Tim Lopes. O único evento anormal naquelas duas horas, foram os peidos do judeu.
O Brasil ganhou. Vendo mais tarde o vídeo Orozimbo tomou conhecimento que o seu herói Dada Maravilha era mesmo um profeta. Ele estava mais uma vez certo;
- Ganhar da China era mais fácil do que comer macarrão.
Nem pé frio podia reverter aquela situação.
A IDÉIA DESTE BLOG É A DE BRINDAR AO PUBLICO QUE ME LÊ DE UM CONTO SEMANAL PARA PODER DESFRUTAR NO FIM DE SEMANA E AO LONGO DA SEMANA SEGUINTE ESPERO QUE VOCÊS GOSTEM E COMENTEM, POIS, EXISTE LUGAR PARA TAL, BEM NO FINAL DO TEXTO. VAMOS VER ATÉ ONDE A INSPIRAÇÃO ME LEVA...
sábado, 13 de fevereiro de 2010
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010
AMÉLIA ERA QUE ERA A MULHER DA VERDADE
Era duro agüentar a turma daquela redação. Só tinha gozador e gente metida a intelectual. Poucos ali sabiam escrever, mas todos tinham seu público cativo. E ele como o responsável da seção de turfe, era o que mais apanhava. Pois, seu público era ínfimo.
Não fora assim 20 anos antes, quando ele tinha uma página inteira a seu dispor e a granfinagem se engalfinhava para ter seu nome, ou a sua fotografia, estampada na primeira semana de Agosto, quando então era disputado o Grande Prêmio Brasil - onde até presidente da república comparecia. Os ricos lhe agraciavam com caixas de vinho francês, gravatas importadas à Itália e outros presentes. Só para ter certeza que seu nome e a foto da mulher estariam publicados na manhã de segunda-feira. Mas o turfe decresceu, o futebol tomou conta e houveram outros esportes que igualmente ganharam projeção.
Imaginem alguém na década de 60 gastando meia página com vôlei e outras duas meia páginas com fórmula 1 e tênis. Quem fizesse isto teria que fechar o jornal. Hoje quem fizer ao contrário o fecha mais rápido ainda. Modernidade, como diziam os jovens chefes de seção, quase todos pálidos, cabeludinhos, de barba, sandálias de dedo, com calcanhares encardidos e saídos no ano anterior de suas respectivas universidades. Prontinho para revolucionar a humanidade...
Mas a verdade nua e crua, é que ninguém mais se interessa pelos cavalos e muito menos por seus jóqueis. Foi-se o tempo do violinista Rigoni. De Pancho Irigoyen, de Oswaldo Ulloa, todos importados a peso de ouro de países vizinhos para defender as sedas dos Peixoto de Castro, dos Paula Machados, dos Seabras... Hoje nem mais de seda as fardas são feitas... Materiais sintéticos... Potrancas com crinas de anjinhos barrocos encharcadas em perfume francês... era um tempo que não volta jamais. Para se ter uma idéia, hoje, tinhamos o recordista mundial de carreiras ganhas neste planeta, que se chama Jorge Ricardo, filho de outro grande jóquei chamado Antônio Ricardo, e que teve que ir para a Argentina fazer grana, pois, aqui no Brasil os prêmios inviabilizavam que ele viesse a ganhar mais do que o beque central do Madureira. No mundo inteiro estaria milionário.
Hoje, restava-lhe no jornal pouco mais que o espaço de um anúncio barato. E quando pintava o anúncio, nem espaço lhe sobrava. Mas ele mantinha a mesma qualidade de texto, embora muitas vezes o espaço a ele reservado, mal dava para imprimir o programa do hipódromo da Gávea. E evidentemente todos aqueles ricos que o pajeavam, desapareceram, assim como as caixas de vinhos, as gravatas importadas, os tapinhas nas costas e tudo mais, que um dia teve direito.
Mas gostava de escrever e lançara um livro por conta própria, que nada tinha com assunto de turfe.
Produção independente, como rotulavam os moderninhos da redação. Quebrara a cara. Ninguém o comprou. Afinal o pequeno público que tinha, só queria dele ler sobre cavalos e corridas. Que lhe interessavam um romance passado no Cairo? Lá, haviam camelos, não cavalos e as pirâmides na realidade estavam off-broadway. Ai veio aquele amigo que sempre o incentivara e disse. Você tem talento, a forma que escreve é boa. Existe humor em seu texto, sua formatação é agradável e a maneira como você expõe esta ficção histórica, agrada. O que você tem que achar é o seu público.
- O grande público lê Jorge Amado pelos palavrões e Paulo Coelho pelo nonsense. Ah, ia me esquecendo, o Jô Soares porque ele tem um programa de televisão. Todos os três eram a seu ver, ótimos escritores, mas possuíam atrativos maiores para cativar público. Pelas barbas do profeta! Onde vou achar eu público, Malaquias?
O amigo deu ombros. Não sabia como aconselhá-lo, mas pelo menos demonstrava boa vontade.
Todo mundo daquela redação torcera contra. Onde já se viu um cara que escreve sobre um esporte que somente meia-dúzia acompanham, ter a petulância de lançar um livro de ficção histórica? Que ele pensava da vida? Nenhum de seus colegas de trabalho, alguns de 30 anos de convivência, sequer compareceram a noite de autógrafos em uma livraria da Tijuca. As desculpas foram as mais esfarrapadas. Da morte da avó a uma súbita dor de dente. E ele que tivera a pachorra de separar um grupo de livros, que não seriam cobrados, para aqueles que se dignassem a comparecer. A pilha se manteve intacta. Paciência. Todavia, isto não era o pior. Como o livro pouco apareceu em outros jornais e nenhum programa de televisão se deu ao trabalho de divulgá-lo, as vendas foram ridículas.
Ridículas não, vexantes. Pois, para serem ridículas, você tem que no mínimo vender 10% da edição. E o livro vendera 32 volumes na noite de lançamento e dali para frente mais doze. Ai, ter que agüentar os comentário dos companheiros de jornal, foi ainda pior.
Paulinho Sued das sociais, só o chamava de meu doce Paulo Coelho. E depois disto lhe beijava a careca. A Nilzinha Braga, da área das artes e poesia, perguntava toda semana como iam as vendas do bestseller. Ela que reconhecidamente dava para um dos donos dos jornais e nunca conseguira entender a diferença entre Monet e Manet. Até o pobre coitado do Josival (que nem sobrenome ninguém dali sabia) da coluna dos óbitos, o sacaneava: quando vamos ter o segundo? Era revoltante. Mas ele agüentava o pau quieto, qual um coelho amestrado. Um dia quem sabe, alguém o leria e o transformaria em um filme com Hugh Grant e Julia Roberts como ele sonhara. Mas eles fizeram o Notting Hill e seu Aconteceu no Cairo, continuava mofando nas prateleiras das poucas livrarias que se dignaram a aceitá-lo por consignação. Um desastre. E pior: uma humilhação.
Pelo menos criticas não houveram, pois, nenhum dos críticos - 72 ao todo - espalhados pelas principais capitais brasileiras sequer o leu. Mas o desgosto maior foi duas semanas depois do lançamento, ver todo o seu trabalho de pesquisa e de longas horas não dormidas ser oferecido na Amazon, novo por 5 reais, quando o preço nas livrarias era de 29... Deviam ser aqueles que receberam de graça os volumes promocionais para a divulgação, mas que preferiam receber 5 reais a ter o trabalho de o abrir e o guardar em uma estante. Poucos seriam aqueles que colocariam uma obra de Oracy Coelho (dai a brincadeira do Paulinho Sued, que escrevia pior do que o Ibrahim) junto dos volumes de Ibsen, Jorge Amado, Virginia Wolf e William Faulkner.
Mais eles que esperassem. Sempre haveria um dia melhor do que o outro... O que era seu, o seria por direito. E gato nenhum o iria comer. Apoio tivera apenas de sua mulher. Amélia, jazia em uma cama em processo terminal de câncer. Foi dela que veio aquela idéia maluca. Lembrava-se quando ela a teve, quando o viu chorar pelo insucesso da empreitada.
- Oracy. Escreve outro, com muito palavrão, excesso de promiscuidade, sexo e principalmente com o vilão se dando bem no final. Isto é que o povo quer. Assina o livro em meu nome, pois estou no final. Tenho certeza que escritor brasileiro vende bem, só depois de morto.
- Mas Amélia, isto não seria honesto...
- Hoje no Brasil honestidade não enche a barriga de ninguém. E da mesma forma que você afirma que não é honesto, afirmo que não é desonesto. É apenas dúbio. E dúbio cola! Sempre colou. Veja o Lula. Se faz do povo, mas ele e o filho estão milionários com passaportes italianos.
- Mulher nunca afirme aquilo que não pode provar...
- Oracy, o filho do Lula era fiscal de zoológico e hoje é dono de canal de televisão, de empresa de celular e sei lá de mais o que. Acorda Oracy. O pais das oportunidades não é o Brasil. É os Estados Unidos. Aqui arruma quem estiver no poder. Saem os leopardos e entram os chacais. Você se lembra daquele filme italiano com o Burt Lancaster?
- Lembro, mas não acredito que possa dar certo...
- Faça-o por mim. É meu último pedido
Os olhos de ambos encheram-se de lágrimas. Último era uma palavra que lhe doía ao peito. Virou-se para que sua mulher não o visse chorar. Sabia que não iria lhe furtar aquele pedido.
Oracy pegou firme na labuta. Pesquisou nas páginas policiais da biblioteca do jornal, pediu ajuda ao Clemente, o responsável pela seção e montou a boneca da ação. Tendo em mente a promessa que fizera a sua mulher, que a cada dia definhava mais. Meteu palavrão, sacanagem, promiscuidade, incesto e no final de tudo a vitória do mal contra o bem. O bandido levou a melhor e fugiu para o Paraguai.
Apavorou-se com o resultado final, mas mesmo assim o leu para a Amélia que fez questão de colocar mais algumas coisas que o arrepiaram. Ao final o veredicto de sua amada:
- Ficou mais pesado que Rubem Fonseca. Vai ser sucesso na certa.
O passo seguinte foi procurar outra editora, pois, na que editara seu primeiro livro, ninguém parecia estar desocupado quando ele ligava. Tomou coragem e deixou o trabalho assinado por Amélia Coelho, numa grande.
- Minha mulher está muito doente e não pode vir aqui entregar sua obra.
Os olhos da matusquela, brilharam. Talvez sua mulher tivesse razão. Escritor em estado terminal era quente. Quatro meses depois, pelo correio veio a resposta. Eles editariam o livro e precisavam de um currículo da escritora. Amélia já não mais ouvia e pouco se comunicava nos parcos momentos de lucidez. Era mantida em morfina e pela presença de Oracy sempre na cabeceira de seu leito hospitalar. Mal conseguiu assinar o contrato, cedeu a doença.
Oracy se desligou do jornal. Não sentia a mínima vontade de sequer viver. E nem se preocupou em seguir de perto o andamento do livro, até que um dia alguém da editora lhe telefonou e perguntou quando e como gostariam de fazer a noite de autógrafos. Oracy só então deu a noticia que sua esposa já estava morta a dois meses. O lançamento foi um sucesso. Em Ipanema, com um retrato de Amélia ao fundo e uma mídia nunca antes vista. Colunáveis aos borbotões. Políticos alguns e principalmente a turba ipanemense e do Leblon. Saia gente pelo ladrão. 316 livros na noite de estréia e esgotamento da primeira edição em apenas seis semanas. O sadismo do livro fizera sucesso. As criticas eram altamente favoráveis. Não havia ninguém que não o quisesse adquirir. Um critico taxou Amélia de a François Sagan carioca. Não quiseram colocar do Grajaú, porque nada do Grajaú colava. E a coisa seguiu de vento em popa.
Quando Oracy foi chamado para assinar o novo contrato na editora para a edição de número seis, dois anos e meio depois, pode, finalmente, ter pela primeira vez um melhor contato com aquele que era responsável por Amélia dentro da editora. Uma espécie de agente. Seu nome era Carlos. Ou melhor José Carlos Felinto de Andrade. Rapaz novo, bem afeiçoado, vindo de boa família e com formação em administração e marketing.
Conversa vai, conversa vem em uma determinada hora, Carlos – como gostava de ser chamado, pois lhe detestava o José – achou que era hora de entrar naquele assunto que vinha esperando a muito.
- Senhor Oracy. Há muito tenho pensado em conversar com o senhor sobre uma idéia que me veio à cabeça. O senhor teria um tempinho?
- Sou todo ouvidos meu filho, pois, tempo é o que não me falta.
- Vou tentar explicar de uma forma que o senhor não se ofenda...
- Por favor, direto ao assunto. Esta é a forma que nunca irá me ofender.
- Assim me sinto melhor. Tomei conhecimento que o senhor escreve...- Quem escreveria se tivesse algo melhor para fazer?- Esta frase é sua?
- Infelizmente não. É de Byron. Li recentemente em um livro de Rubem Fonseca e entendi perfeitamente o conteúdo.
Carlos cada vez mais se afeiçoa a aquele homem. Exalava integridade pelos poros, tinha extrema facilidade de expor seu ponto de vista e o mais importante de tudo: deixava a todos a sua volta a vontade. Principalmente ele.
- Como você descobriu isto, se não foi colocado no currículo de Amélia? Por acaso é amante dos cavalinhos de corrida?
- Fui duas vezes ao Jockey Club. Mas não foi por ai que descobri esta sua qualidade. Tomei conhecimento que o senhor, anos atrás, publicou um livro chamado Aconteceu no Cairo. E este livro na realidade vendeu pouco.
- 42 exemplares ao todo. Onde você quer chegar?
- Eu li o seu livro. Sou um dos 42.
Oracy procurou controlar sua expressão facial. Mas era difícil à frente de alguém que se dignara a abrir seu livro e o lera. Pigarreou.
- Você é a terceira pessoa que conheço que o fez.
- Posso lhe dizer uma coisa extremamente pessoal e honesta?
- Gostaria que não fosse de outra forma.
- O livro é ótimo. Ri em seu inicio, chorei ao seu final e não consegui parar um segundo sequer de lê-lo. O fiz em uma noite. E custa-me crer que tenha vendido tão pouco. Dois a meu ver, devem ter sido as razões: falta de marketing e outra falta, está na narrativa. Como vou me expressar...?
- Faltou sexo, promiscuidade, palavrões, incestos, enfim toda e qualquer sacanagem que fizeram do Os Ardentes Desejos de Isaura, um sucesso.
- 72,318 livros vendidos em menos de três anos. Poucos são os autores que conseguem vender este volume...
- E apenas dois Coelhos o fizeram.
Carlos soltou a gargalhada. Agora tinha certeza. Fora ele que escrevera Isaura. A mesma picardia, o mesmo toque refinado em abordar as questões. Seu primeiro livro não merecia ter vendido tão pouco.
Como odiava aquele mercado prostituído e manipulado por uma meia dúzia de pessoas que só pensavam em promover aos já promovidos ou reeditar os já mortos e consagrados. Olhou o velho bem no fundo de seus olhos. Não queria de forma alguma que ele se sentisse humilhado ou usado. Não era este o seu intuito. Tinha que vender a mutreta, mas de forma honesta. Ou melhor, semi-honesta.
- Senhor Oracy, reeditar o Aconteceu no Cairo seria impossível e não creio que um terceiro Coelho pudesse chegar ao sucesso. Dois coelhos já são enough. Ou melhor...
- Não se preocupe, entendo inglês, e mais do que isto, sei exatamente onde você quer chegar...
- Melhor assim. Com todo respeito a dona Amélia, eu não tenho dúvidas que foi o senhor que escreveu o Isaura...
-Antes que você continue quero esclarecer uma coisa. É muito importante e não creia que eu esteja a usando como justificativa para o ato pouco honesto que cometi, ao usar como pseudônimo, o nome da coisa mais importante que aconteceu em minha vida: minha mulher. Creia-me, Amélia era uma mulher suave e que nunca em sua existência foi capaz de proferir um palavrão sequer. Seria incapaz de gerar tanta obscenidade quanto a posta no livro. Mas a idéia foi dela, quando me viu alquebrado com as péssimas vendas do Aconteceu no Cairo. Ela fez a proposta. Eu recusei a principio. Ela me fez ceder, como sendo seu último pedido. Não tive outra alternativa. Escrevi, o que de mais sórdido podia escrever e li para ela. E sabe o que ela me disse - Carlos sorriu, meneando negativamente a cabeça - Ficou mais pesado que Rubem Fonseca. Vai ser sucesso na certa - Carlos soltou outra estrondosa gargalhada - Quantas anomalias como o Isaura vocês irão necessitar?
- O ideal seriam quatro. Mas talvez quatro seja demais...
Oracy coçou a cabeça. Já não lhe sobravam sequer um fiapo de cabelo. Eles haviam ido como Amélia e tudo que tivera de bom em sua existência. Inclusive seu nome como escritor.
- Vamos fechar em três, pois, confesso que mais do que isto eu prefiro o suicídio.
Carlos voltou a gargalhar pela terceira vez. Oracy era um senhor envolvente e Amélia certamente deveria ter sido uma pessoa especial. Lembrou-se de seus pais e isto o fez esmorecer. E tão logo, que conseguiu controlar-se, assumiu aquela sua máscara diária, a de uma séria postura profissional.
- Três está de excelente tamanho. Obras póstumas de manuscritos achados no porão de sua casa.
Sua voz falseou em sua últimas palavras. Incerto se o sarcasmo havia sido bem colocado, numa situação delicada e que deveria ser tratada com tal.
- Os manuscritos estavam em excelente estado e eu relutei bastante em liberá-los, depois que os achei no porão, pois, eram livros que não tinha certeza se Amélia os queria publicar.
- Soa muito bem seu Oracy e desculpe se possa ter me excedido ...
- Você nada tem que se desculpar. Tenho certeza que Amélia apoiaria esta nossa pequena traquinagem.
- Como o senhor mesmo diria, não poderia ser de outra forma.
O rapaz além de bem educado sabia como lidar com situações delicadas. Merecia estar na posição que ocupava. Ascendeu levemente com a cabeça.
- E é claro que isto fica entre nos dois.
- Não haveria de ser de outra forma.
Carlos se sentiu aliviado. A faixa vermelha fora ultrapassada e cada vez mais ele admirava aquele velho homem à sua frente. Para muitos o senhor Oracy poderia representar desilusão. Para ele apenas uma luz que se esvaía.
- O lado triste desta posição é que isto automaticamente implica que o senhor não poderá escrever mais nada assinando em seu nome...o que para mim é uma perda para a nossa pobre literatura nacional.
- Como você bem posicionou anteriormente, não existe lugar para três coelhos na literatura brasileira.
- E dois deste coelhos poderiam ser reconhecidos se juntados em uma mesma cartola. Como eu reconheci, outros tranquilamente o poderiam fazer.
- Acho muito difícil, mas não lhe tiro a razão.
Era necessário alertá-lo.
- Algo me preocupa senhor Oracy. O senhor ainda tem alguns dos exemplares do Aconteceu no Cairo em prateleiras e acredito que um armário inteiro em sua editora. Penso que deveríamos...
- Não mais.
Os olhos de Carlos arregalaram-se.
- Como não?
- Amélia me convenceu a comprar todo o lote da editora antes de trazer nosso manuscrito para o parecer de seu conselho editorial. Venderam para mim o Aconteceu no Cairo pela metade do preço de custo, simplesmente para ganhar espaço de estocagem. Amélia pensava em tudo. Mesmo com seus dias contados...
Carlos sentiu que Oracy iria começar a chorar. Levantou-se e indo as costas de seu interlocutor levou suas mãos aos ombros do mesmo. Fez uma ligeira pressão e complementou:
- Senhor Oracy, tenha certeza de uma coisa. O Mário Lago é que sempre esteve certo. Amélia sempre foi a mulher de verdade...
- O Mário era gênio, Carlos. Um gênio... - comentou ele não conseguindo mais conter suas lágrimas.
Não fora assim 20 anos antes, quando ele tinha uma página inteira a seu dispor e a granfinagem se engalfinhava para ter seu nome, ou a sua fotografia, estampada na primeira semana de Agosto, quando então era disputado o Grande Prêmio Brasil - onde até presidente da república comparecia. Os ricos lhe agraciavam com caixas de vinho francês, gravatas importadas à Itália e outros presentes. Só para ter certeza que seu nome e a foto da mulher estariam publicados na manhã de segunda-feira. Mas o turfe decresceu, o futebol tomou conta e houveram outros esportes que igualmente ganharam projeção.
Imaginem alguém na década de 60 gastando meia página com vôlei e outras duas meia páginas com fórmula 1 e tênis. Quem fizesse isto teria que fechar o jornal. Hoje quem fizer ao contrário o fecha mais rápido ainda. Modernidade, como diziam os jovens chefes de seção, quase todos pálidos, cabeludinhos, de barba, sandálias de dedo, com calcanhares encardidos e saídos no ano anterior de suas respectivas universidades. Prontinho para revolucionar a humanidade...
Mas a verdade nua e crua, é que ninguém mais se interessa pelos cavalos e muito menos por seus jóqueis. Foi-se o tempo do violinista Rigoni. De Pancho Irigoyen, de Oswaldo Ulloa, todos importados a peso de ouro de países vizinhos para defender as sedas dos Peixoto de Castro, dos Paula Machados, dos Seabras... Hoje nem mais de seda as fardas são feitas... Materiais sintéticos... Potrancas com crinas de anjinhos barrocos encharcadas em perfume francês... era um tempo que não volta jamais. Para se ter uma idéia, hoje, tinhamos o recordista mundial de carreiras ganhas neste planeta, que se chama Jorge Ricardo, filho de outro grande jóquei chamado Antônio Ricardo, e que teve que ir para a Argentina fazer grana, pois, aqui no Brasil os prêmios inviabilizavam que ele viesse a ganhar mais do que o beque central do Madureira. No mundo inteiro estaria milionário.
Hoje, restava-lhe no jornal pouco mais que o espaço de um anúncio barato. E quando pintava o anúncio, nem espaço lhe sobrava. Mas ele mantinha a mesma qualidade de texto, embora muitas vezes o espaço a ele reservado, mal dava para imprimir o programa do hipódromo da Gávea. E evidentemente todos aqueles ricos que o pajeavam, desapareceram, assim como as caixas de vinhos, as gravatas importadas, os tapinhas nas costas e tudo mais, que um dia teve direito.
Mas gostava de escrever e lançara um livro por conta própria, que nada tinha com assunto de turfe.
Produção independente, como rotulavam os moderninhos da redação. Quebrara a cara. Ninguém o comprou. Afinal o pequeno público que tinha, só queria dele ler sobre cavalos e corridas. Que lhe interessavam um romance passado no Cairo? Lá, haviam camelos, não cavalos e as pirâmides na realidade estavam off-broadway. Ai veio aquele amigo que sempre o incentivara e disse. Você tem talento, a forma que escreve é boa. Existe humor em seu texto, sua formatação é agradável e a maneira como você expõe esta ficção histórica, agrada. O que você tem que achar é o seu público.
- O grande público lê Jorge Amado pelos palavrões e Paulo Coelho pelo nonsense. Ah, ia me esquecendo, o Jô Soares porque ele tem um programa de televisão. Todos os três eram a seu ver, ótimos escritores, mas possuíam atrativos maiores para cativar público. Pelas barbas do profeta! Onde vou achar eu público, Malaquias?
O amigo deu ombros. Não sabia como aconselhá-lo, mas pelo menos demonstrava boa vontade.
Todo mundo daquela redação torcera contra. Onde já se viu um cara que escreve sobre um esporte que somente meia-dúzia acompanham, ter a petulância de lançar um livro de ficção histórica? Que ele pensava da vida? Nenhum de seus colegas de trabalho, alguns de 30 anos de convivência, sequer compareceram a noite de autógrafos em uma livraria da Tijuca. As desculpas foram as mais esfarrapadas. Da morte da avó a uma súbita dor de dente. E ele que tivera a pachorra de separar um grupo de livros, que não seriam cobrados, para aqueles que se dignassem a comparecer. A pilha se manteve intacta. Paciência. Todavia, isto não era o pior. Como o livro pouco apareceu em outros jornais e nenhum programa de televisão se deu ao trabalho de divulgá-lo, as vendas foram ridículas.
Ridículas não, vexantes. Pois, para serem ridículas, você tem que no mínimo vender 10% da edição. E o livro vendera 32 volumes na noite de lançamento e dali para frente mais doze. Ai, ter que agüentar os comentário dos companheiros de jornal, foi ainda pior.
Paulinho Sued das sociais, só o chamava de meu doce Paulo Coelho. E depois disto lhe beijava a careca. A Nilzinha Braga, da área das artes e poesia, perguntava toda semana como iam as vendas do bestseller. Ela que reconhecidamente dava para um dos donos dos jornais e nunca conseguira entender a diferença entre Monet e Manet. Até o pobre coitado do Josival (que nem sobrenome ninguém dali sabia) da coluna dos óbitos, o sacaneava: quando vamos ter o segundo? Era revoltante. Mas ele agüentava o pau quieto, qual um coelho amestrado. Um dia quem sabe, alguém o leria e o transformaria em um filme com Hugh Grant e Julia Roberts como ele sonhara. Mas eles fizeram o Notting Hill e seu Aconteceu no Cairo, continuava mofando nas prateleiras das poucas livrarias que se dignaram a aceitá-lo por consignação. Um desastre. E pior: uma humilhação.
Pelo menos criticas não houveram, pois, nenhum dos críticos - 72 ao todo - espalhados pelas principais capitais brasileiras sequer o leu. Mas o desgosto maior foi duas semanas depois do lançamento, ver todo o seu trabalho de pesquisa e de longas horas não dormidas ser oferecido na Amazon, novo por 5 reais, quando o preço nas livrarias era de 29... Deviam ser aqueles que receberam de graça os volumes promocionais para a divulgação, mas que preferiam receber 5 reais a ter o trabalho de o abrir e o guardar em uma estante. Poucos seriam aqueles que colocariam uma obra de Oracy Coelho (dai a brincadeira do Paulinho Sued, que escrevia pior do que o Ibrahim) junto dos volumes de Ibsen, Jorge Amado, Virginia Wolf e William Faulkner.
Mais eles que esperassem. Sempre haveria um dia melhor do que o outro... O que era seu, o seria por direito. E gato nenhum o iria comer. Apoio tivera apenas de sua mulher. Amélia, jazia em uma cama em processo terminal de câncer. Foi dela que veio aquela idéia maluca. Lembrava-se quando ela a teve, quando o viu chorar pelo insucesso da empreitada.
- Oracy. Escreve outro, com muito palavrão, excesso de promiscuidade, sexo e principalmente com o vilão se dando bem no final. Isto é que o povo quer. Assina o livro em meu nome, pois estou no final. Tenho certeza que escritor brasileiro vende bem, só depois de morto.
- Mas Amélia, isto não seria honesto...
- Hoje no Brasil honestidade não enche a barriga de ninguém. E da mesma forma que você afirma que não é honesto, afirmo que não é desonesto. É apenas dúbio. E dúbio cola! Sempre colou. Veja o Lula. Se faz do povo, mas ele e o filho estão milionários com passaportes italianos.
- Mulher nunca afirme aquilo que não pode provar...
- Oracy, o filho do Lula era fiscal de zoológico e hoje é dono de canal de televisão, de empresa de celular e sei lá de mais o que. Acorda Oracy. O pais das oportunidades não é o Brasil. É os Estados Unidos. Aqui arruma quem estiver no poder. Saem os leopardos e entram os chacais. Você se lembra daquele filme italiano com o Burt Lancaster?
- Lembro, mas não acredito que possa dar certo...
- Faça-o por mim. É meu último pedido
Os olhos de ambos encheram-se de lágrimas. Último era uma palavra que lhe doía ao peito. Virou-se para que sua mulher não o visse chorar. Sabia que não iria lhe furtar aquele pedido.
Oracy pegou firme na labuta. Pesquisou nas páginas policiais da biblioteca do jornal, pediu ajuda ao Clemente, o responsável pela seção e montou a boneca da ação. Tendo em mente a promessa que fizera a sua mulher, que a cada dia definhava mais. Meteu palavrão, sacanagem, promiscuidade, incesto e no final de tudo a vitória do mal contra o bem. O bandido levou a melhor e fugiu para o Paraguai.
Apavorou-se com o resultado final, mas mesmo assim o leu para a Amélia que fez questão de colocar mais algumas coisas que o arrepiaram. Ao final o veredicto de sua amada:
- Ficou mais pesado que Rubem Fonseca. Vai ser sucesso na certa.
O passo seguinte foi procurar outra editora, pois, na que editara seu primeiro livro, ninguém parecia estar desocupado quando ele ligava. Tomou coragem e deixou o trabalho assinado por Amélia Coelho, numa grande.
- Minha mulher está muito doente e não pode vir aqui entregar sua obra.
Os olhos da matusquela, brilharam. Talvez sua mulher tivesse razão. Escritor em estado terminal era quente. Quatro meses depois, pelo correio veio a resposta. Eles editariam o livro e precisavam de um currículo da escritora. Amélia já não mais ouvia e pouco se comunicava nos parcos momentos de lucidez. Era mantida em morfina e pela presença de Oracy sempre na cabeceira de seu leito hospitalar. Mal conseguiu assinar o contrato, cedeu a doença.
Oracy se desligou do jornal. Não sentia a mínima vontade de sequer viver. E nem se preocupou em seguir de perto o andamento do livro, até que um dia alguém da editora lhe telefonou e perguntou quando e como gostariam de fazer a noite de autógrafos. Oracy só então deu a noticia que sua esposa já estava morta a dois meses. O lançamento foi um sucesso. Em Ipanema, com um retrato de Amélia ao fundo e uma mídia nunca antes vista. Colunáveis aos borbotões. Políticos alguns e principalmente a turba ipanemense e do Leblon. Saia gente pelo ladrão. 316 livros na noite de estréia e esgotamento da primeira edição em apenas seis semanas. O sadismo do livro fizera sucesso. As criticas eram altamente favoráveis. Não havia ninguém que não o quisesse adquirir. Um critico taxou Amélia de a François Sagan carioca. Não quiseram colocar do Grajaú, porque nada do Grajaú colava. E a coisa seguiu de vento em popa.
Quando Oracy foi chamado para assinar o novo contrato na editora para a edição de número seis, dois anos e meio depois, pode, finalmente, ter pela primeira vez um melhor contato com aquele que era responsável por Amélia dentro da editora. Uma espécie de agente. Seu nome era Carlos. Ou melhor José Carlos Felinto de Andrade. Rapaz novo, bem afeiçoado, vindo de boa família e com formação em administração e marketing.
Conversa vai, conversa vem em uma determinada hora, Carlos – como gostava de ser chamado, pois lhe detestava o José – achou que era hora de entrar naquele assunto que vinha esperando a muito.
- Senhor Oracy. Há muito tenho pensado em conversar com o senhor sobre uma idéia que me veio à cabeça. O senhor teria um tempinho?
- Sou todo ouvidos meu filho, pois, tempo é o que não me falta.
- Vou tentar explicar de uma forma que o senhor não se ofenda...
- Por favor, direto ao assunto. Esta é a forma que nunca irá me ofender.
- Assim me sinto melhor. Tomei conhecimento que o senhor escreve...- Quem escreveria se tivesse algo melhor para fazer?- Esta frase é sua?
- Infelizmente não. É de Byron. Li recentemente em um livro de Rubem Fonseca e entendi perfeitamente o conteúdo.
Carlos cada vez mais se afeiçoa a aquele homem. Exalava integridade pelos poros, tinha extrema facilidade de expor seu ponto de vista e o mais importante de tudo: deixava a todos a sua volta a vontade. Principalmente ele.
- Como você descobriu isto, se não foi colocado no currículo de Amélia? Por acaso é amante dos cavalinhos de corrida?
- Fui duas vezes ao Jockey Club. Mas não foi por ai que descobri esta sua qualidade. Tomei conhecimento que o senhor, anos atrás, publicou um livro chamado Aconteceu no Cairo. E este livro na realidade vendeu pouco.
- 42 exemplares ao todo. Onde você quer chegar?
- Eu li o seu livro. Sou um dos 42.
Oracy procurou controlar sua expressão facial. Mas era difícil à frente de alguém que se dignara a abrir seu livro e o lera. Pigarreou.
- Você é a terceira pessoa que conheço que o fez.
- Posso lhe dizer uma coisa extremamente pessoal e honesta?
- Gostaria que não fosse de outra forma.
- O livro é ótimo. Ri em seu inicio, chorei ao seu final e não consegui parar um segundo sequer de lê-lo. O fiz em uma noite. E custa-me crer que tenha vendido tão pouco. Dois a meu ver, devem ter sido as razões: falta de marketing e outra falta, está na narrativa. Como vou me expressar...?
- Faltou sexo, promiscuidade, palavrões, incestos, enfim toda e qualquer sacanagem que fizeram do Os Ardentes Desejos de Isaura, um sucesso.
- 72,318 livros vendidos em menos de três anos. Poucos são os autores que conseguem vender este volume...
- E apenas dois Coelhos o fizeram.
Carlos soltou a gargalhada. Agora tinha certeza. Fora ele que escrevera Isaura. A mesma picardia, o mesmo toque refinado em abordar as questões. Seu primeiro livro não merecia ter vendido tão pouco.
Como odiava aquele mercado prostituído e manipulado por uma meia dúzia de pessoas que só pensavam em promover aos já promovidos ou reeditar os já mortos e consagrados. Olhou o velho bem no fundo de seus olhos. Não queria de forma alguma que ele se sentisse humilhado ou usado. Não era este o seu intuito. Tinha que vender a mutreta, mas de forma honesta. Ou melhor, semi-honesta.
- Senhor Oracy, reeditar o Aconteceu no Cairo seria impossível e não creio que um terceiro Coelho pudesse chegar ao sucesso. Dois coelhos já são enough. Ou melhor...
- Não se preocupe, entendo inglês, e mais do que isto, sei exatamente onde você quer chegar...
- Melhor assim. Com todo respeito a dona Amélia, eu não tenho dúvidas que foi o senhor que escreveu o Isaura...
-Antes que você continue quero esclarecer uma coisa. É muito importante e não creia que eu esteja a usando como justificativa para o ato pouco honesto que cometi, ao usar como pseudônimo, o nome da coisa mais importante que aconteceu em minha vida: minha mulher. Creia-me, Amélia era uma mulher suave e que nunca em sua existência foi capaz de proferir um palavrão sequer. Seria incapaz de gerar tanta obscenidade quanto a posta no livro. Mas a idéia foi dela, quando me viu alquebrado com as péssimas vendas do Aconteceu no Cairo. Ela fez a proposta. Eu recusei a principio. Ela me fez ceder, como sendo seu último pedido. Não tive outra alternativa. Escrevi, o que de mais sórdido podia escrever e li para ela. E sabe o que ela me disse - Carlos sorriu, meneando negativamente a cabeça - Ficou mais pesado que Rubem Fonseca. Vai ser sucesso na certa - Carlos soltou outra estrondosa gargalhada - Quantas anomalias como o Isaura vocês irão necessitar?
- O ideal seriam quatro. Mas talvez quatro seja demais...
Oracy coçou a cabeça. Já não lhe sobravam sequer um fiapo de cabelo. Eles haviam ido como Amélia e tudo que tivera de bom em sua existência. Inclusive seu nome como escritor.
- Vamos fechar em três, pois, confesso que mais do que isto eu prefiro o suicídio.
Carlos voltou a gargalhar pela terceira vez. Oracy era um senhor envolvente e Amélia certamente deveria ter sido uma pessoa especial. Lembrou-se de seus pais e isto o fez esmorecer. E tão logo, que conseguiu controlar-se, assumiu aquela sua máscara diária, a de uma séria postura profissional.
- Três está de excelente tamanho. Obras póstumas de manuscritos achados no porão de sua casa.
Sua voz falseou em sua últimas palavras. Incerto se o sarcasmo havia sido bem colocado, numa situação delicada e que deveria ser tratada com tal.
- Os manuscritos estavam em excelente estado e eu relutei bastante em liberá-los, depois que os achei no porão, pois, eram livros que não tinha certeza se Amélia os queria publicar.
- Soa muito bem seu Oracy e desculpe se possa ter me excedido ...
- Você nada tem que se desculpar. Tenho certeza que Amélia apoiaria esta nossa pequena traquinagem.
- Como o senhor mesmo diria, não poderia ser de outra forma.
O rapaz além de bem educado sabia como lidar com situações delicadas. Merecia estar na posição que ocupava. Ascendeu levemente com a cabeça.
- E é claro que isto fica entre nos dois.
- Não haveria de ser de outra forma.
Carlos se sentiu aliviado. A faixa vermelha fora ultrapassada e cada vez mais ele admirava aquele velho homem à sua frente. Para muitos o senhor Oracy poderia representar desilusão. Para ele apenas uma luz que se esvaía.
- O lado triste desta posição é que isto automaticamente implica que o senhor não poderá escrever mais nada assinando em seu nome...o que para mim é uma perda para a nossa pobre literatura nacional.
- Como você bem posicionou anteriormente, não existe lugar para três coelhos na literatura brasileira.
- E dois deste coelhos poderiam ser reconhecidos se juntados em uma mesma cartola. Como eu reconheci, outros tranquilamente o poderiam fazer.
- Acho muito difícil, mas não lhe tiro a razão.
Era necessário alertá-lo.
- Algo me preocupa senhor Oracy. O senhor ainda tem alguns dos exemplares do Aconteceu no Cairo em prateleiras e acredito que um armário inteiro em sua editora. Penso que deveríamos...
- Não mais.
Os olhos de Carlos arregalaram-se.
- Como não?
- Amélia me convenceu a comprar todo o lote da editora antes de trazer nosso manuscrito para o parecer de seu conselho editorial. Venderam para mim o Aconteceu no Cairo pela metade do preço de custo, simplesmente para ganhar espaço de estocagem. Amélia pensava em tudo. Mesmo com seus dias contados...
Carlos sentiu que Oracy iria começar a chorar. Levantou-se e indo as costas de seu interlocutor levou suas mãos aos ombros do mesmo. Fez uma ligeira pressão e complementou:
- Senhor Oracy, tenha certeza de uma coisa. O Mário Lago é que sempre esteve certo. Amélia sempre foi a mulher de verdade...
- O Mário era gênio, Carlos. Um gênio... - comentou ele não conseguindo mais conter suas lágrimas.
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