quinta-feira, 11 de março de 2010

O MORCEGÃO DE VILA VELHA


Carlos Eduardo Prates de Oliveira, sentado atrás daquela pequena mesa podia se sentir, o mais infeliz entre os quase vinte jornalistas alocados naquele andar. Era o seu primeiro dia no grande jornal. Seu pseudônimo fora vendido e alardeado durante uma semana, juntamente com aquele seu currículo fajuta, escrito por gente que conhecia todos os truques da mídia, em seus mínimos detalhes. Ele não tinha nome, ele não tinha sequer sexo. A ele fora dado o pseudônimo de uma mulher.

Eram os anos 60. O Brasil passava por uma transformação e os mineiros felizes com seu conterrâneo JK. O simpático pé de valsa levara adiante o seu sonho de construir uma nova capital, Brasília. Mas todos ansiavam por coisas ainda mais novas. E a doutora Elizabeth propunha-se ser um deles. Mas em contrapartida era, igualmente, de se ficar enojado como o público podia ser enganado da forma como certa parte da imprensa o fazia. Pior ainda, como ele estava enganando a si próprio, para poder manter aquele estilo de vida ao qual acostumara-se. De que adiantara ter se formado em literatura inglesa, em história e jornalismo? Não estava conseguindo emprego no cinema, no teatro, na televisão, no rádio e na mídia escrita. 

Culpa sua. Jogara tudo por água abaixo por ter dormido com a mulher de um grande editor. Queimara-se no mercado de verde e amarelo. Tivera que pastar por meses e a única posição que conseguira para si, fora a de consultor sentimental de um jornal marrom, mas que pagava bem, e segundo o amigo que lhe conseguira o emprego e igualmente ali trabalhava, o mais importante de tudo: em dia.

Elizabeth Loren Kennedy. Que nome arrumaram para ele. Inglesa, psicóloga, com doutorado em Harvard e uma pós-graduação em Yale. A ordem inversa teria sido melhor, mas felizmente, aqui no Brasil, não sabiam da diferença. E ele que nunca passara de Fortaleza e nem conhecia os Estados Unidos. 

Nascera, crescera e se formara em Minas. Fizera duas viagens ao norte e ao nordeste e em apenas uma oportunidade fora ao Rio de Janeiro e outra a São Paulo. Pisara na jaca junto a “cariocada” e voltara a terra que nascera, com o rabo entre as pernas, a procura de sobrevivência. E de uma hora para outra, transformara-se em psicóloga com os mais importantes e renomados cursos de aperfeiçoamento naquele setor. Xavecada da grossa! Era o preço que estava tendo que pagar por comer a mulher errada. Até que seu nome fosse esquecido, tinha que ter duas refeições diárias e um teto para dormir. E se era de Elizabeth Loren Kennedy que iria atacar, que assim o fosse. Estava pronto para enfrentar as cartas que um dia viriam a pousar a sua frente.

Passou o espanador em sua máquina de escrever. Não era nova, mas também, não de se jogar fora. Como Alexandra, a mulher que o levara ao cadafalso.

- E ai, já recebeu alguma?

Olhou para o amigo e salvador da pátria. José Augusto o chefe do setor de classificados. Sorriu:

- Estou pronta para o que der e vier.

- Este é o espírito, doutora Elizabeth. Dias melhores hão de vir. Dê um tempo que tudo vai se ajustar como antes. Não dou dois anos e você estará assinando com o seu próprio nome criticas de livros e cinema. É só ter calma.

- Obrigado mais uma vez. Estou aqui a espera. O menino da correspondência pelo que soube passa as dez. Está por chegar.

E quem lhe informara, o informara certo. Miquimba, o pretinho sestroso e rápido qual um raio, passou jogando duas cartas sobre sua mesa de trabalho. Mas a caminho de outras mesas, não deixou de saborear sua primeira gozação:

- Bota para quebrar, ô Beth.

- Ciao Beth, te deixo com os problemas sentimentais alheios. – despediu-se o amigo.

O que havia de se fazer...

Carlos Eduardo fitou aquelas duas cartas que agora faziam parte de sua existência. Duas pessoas que confiariam em seus conselhos. Ou melhor da pós graduada Elizabeth Lauren Kennedy. Respirou fundo, encheu seus pulmões de ar rarefeito e tomou coragem antes que desistisse. Abriu a primeira. Era de uma mulher. Podia sentir pela folha em que foi escrita e pelo tipo de letra constante na mesma. Uma mulher jovem.

Doutora Elizabeth,
Desculpe a franqueza, mas não sei se uma mulher de sua estatura, procedência e formação profissional possa resolver o meu dilema, ou melhor o meu problema, pois, a decisão crucial eu já tomei e assumi de corpo e alma. Diria que mais de corpo do que propriamente de alma...

Sou de família mineira, conservadora, rica e de forte projeção social. Tenho dezesseis anos, sou vista como virgem e prodígio, por meus pais, que a mim nada negaram. Mas desde os doze anos me achei uma garota diferente. Nunca fui atraída pelos rapazes. Sempre me senti melhor em companhia feminina. Namoro um rapaz de ótima família, quatro anos mais velho do que eu e sinto que há muito gosto entre ambas famílias que nos casemos. Como, igualmente, tenho certeza que ele gosta de mim.

Todavia, de uns tempos para cá ele vem tentando forçar uma situação. A senhora entende o que estou falando. Quer sexo. Tenho fugido do comprometimento com a desculpa que sou virgem. Ele entende, mas não aceita. Como lhe disse anteriormente não sinto o menor prazer em qualquer atividade sexual com ele. Tenho nojo de beijá-lo e me sinto mal quando ele acaricia meus seios e minhas partes íntimas. Arrumo todo o tipo de desculpa e sinto que elas já não surtindo o efeito de antes. Ele está se impacientando.
Antes de pedir por seu conselho gostaria que a senhora tomasse conhecimento da segunda parte de minha história. Conheci no colégio uma moça de um outro estado e nos tornamos muito amigas. O tempo nos fez ver que éramos almas gêmeas, uma feita para a outra. Não conseguimos ficar um minuto sequer uma longe da outra. Minha família gosta dela e inclusive perguntou-me porque não fazê-la minha dama de honra, se eu resolvesse casar com o Cesar. A senhora há de aceitar que este não é o verdadeiro nome de meu namorado por razões óbvias. Pois bem, semana passada, bebemos um pouco mais, e eu e esta amiga acabamos em minha cama. Foi a mais significativa noite de minha existência. Senti coisas que supunha não ser possível sentir e sei que a recíproca foi verdadeira. Estamos definitivamente apaixonadas e decidimos contar para minha família e para meu namorado, a felicidade em que vivemos. Sinto que o Brasil está avançando em todos os sentidos. Todavia, ao lermos que a senhora assumiria esta posição no jornal, achamos melhor primeiro consultá-la. Afinal a senhora viveu em países mais desenvolvidos onde as mentes parecem ser mais abertas.

Acreditamos que não possa haver nada de errado em duas pessoas de mesmo sexo se amarem. Tabus precisam ser quebrados e nós, na flor de nossas adolescências, estamos prontas a fazê-lo. Contamos com o seu auxílio. O que a senhora nos aconselha a fazer?

Virgem das Mercês. 

Que pepino. Lesbianismo freudiano. E logo na primeira correspondência. Pensou um pouco. Seu editor, o senhor Alencar fora claro. Queria uma coluna para frente, com muito otimismo e cheia de modernidade. Nada de baixo astral e comprometimentos, pois, de processos o jornal já estava cheio até a tampa. Encarou sua nova companheira, a Remington à sua frente, e partiu faceiro para a sua primeira resposta a uma consulta sentimental.

Minha cara Virgem das Mercês,

Você tem toda razão. Não existe nada de errado em duas pessoas do mesmo sexo se amarem, porém, você igualmente há de convir que nem todos pensam desta forma. Principalmente em Minas. Nos Estados Unidos, onde me pós graduei, existem movimentos de emancipação sexual, tanto na costa oeste como na costa este. Mas estão ainda em seu inicio. Esta mudança de comportamento leva tempo e são necessárias gerações para que se cristalizem em novas leis morais de cada povo. O pioneirismo nem sempre soa salutar. Paga-se um preço pesado pelo mesmo. Talvez sua família e seu noivo não aceitem esta sua nova forma de se sentir feliz. Mas creio que será a sua própria consciência que deverá decidir o rumo a tomar.
Não se deixe abater e lembre-se que a melhor forma de se estar bem com sua família, seu namorado e sua amiga é primeiro estar feliz consigo própria. Mas não esqueça que talvez se torne impossível de se agradar a todos.

Pronto! Não dissera nada com nada. Enfeitara o maracá e saíra de fininho. Realmente aquilo poderia dar certo para ele. Era só escrever bonito, demonstrar altivez e deixar que os outros tomassem suas próprias decisões. Tirou a página da máquina e a colocou na cesta de assuntos a se publicar. Agora era partir para a segunda. Sorriu ao colocar nova página na máquina.

- Pronta para o prelo! – exclamou otimísta.

Sopa no mel... Abriu animado a segunda carta. Era de um homem. Ou melhor de um rapaz.

Cara Doutora Kennedy, 
Não sou uma pessoa erudita e muito menos afeita a escrever cartas. Mas creio que o problema que vivo deva ser endereçado a senhora que parece ter muita experiência em casos como o meu. Tenho 25 anos, trabalho duro e prezo a minha vida e tudo que consegui com o suor de meu esforço.

Vou direto ao assunto. Gosto de uma menina. Ela me parece boa, honesta e virgem. É de boa família. Com bem mais dinheiro do que a minha e sinto que os pais delas me olham com extrema reserva. Talvez pensando que queira estar dando o golpe do baú. Não é o caso, como nunca o será. Mas este também não é o problema que me traz à senhora.

Tenho tentado junto a minha noiva convencê-la a testarmos nosso amor e consumá-lo antes de nosso casamento. Penso que é melhor se ter uma idéia antes do que possa ser depois e assim não cometer os erros de outros e tudo um dia acabar em um desquite. Como o acontecido com meus pais. Ela não coaduna desta minha idéia e creio que estamos a beira de um impasse.

Confesso que possa existir uma outra razão para ela estar hesitando. Pode não ser mais virgem ou quem sabe ter um outro amor. Se assim o for, teria que vingar minha honra em sangue.bO que a senhora me sugere a fazer?

Morcegão de Vila Velha.

Se pudesse responder aquilo que, realmente, pensava, Carlos Eduardo certamente iria contrariar o que seu editor lhe prescrevera. O negócio era mandar a idiota por espaço com seu hímem incólume. Tinha um lema que aplicava para si próprio. Casar era que nem comprar um carro zero quilômetro. Não se podia fazê-lo sem testar a máquina. Mas tinha que remar conforme a maré, pois, a última coisa que poderia arriscar era perder aquele emprego. Partiria para outra vasilinada.

Caro Morcegão de Vila Velha,

Primeiramente, diria que honra alguma deve ser defendida com o sangue de quem quer que seja. Já passamos da era medieval. Logo, vamos a parte sensata de sua missiva. Não posso dizer que você não tenha a sua razão. Mas essa é tão somente sua. É uma ótica masculina e como tal moldada na forma prática em que os homens encaram suas existências. Como mulher que sou, digo que a mente feminina é distinta. Pensa de uma forma diferente. Diria que em muitas oportunidades, diametralmente oposta. 

Menos prática e mais romântica. Agora, ponha-se no lugar de sua noiva. Se ela for fazer o aludido teste “da máquina” com todo aquele que com ela almeje casar, quando o encontrar poderá não ser mais um carro zero quilômetros e sim um já bem rodado. E aí eu pergunto, como fica o machismo de vocês? Aceitariam um carro rodado que não satisfez a outros motoristas?

As coisas não são simples. Tenha primeiro bastante certeza de seu amor para com a sua noiva é real, pois, ao contrário do que você afirmou em sua missiva, amor não se testa. Amor é um sentimento que está dentro de si. Você tem ou não tem e quer dá-lo e ser retribuído em relação a uma determinada pessoa.

Depois de ter esta certeza, convide sua noiva para uma conversa e exponha seu caso de maneira franca e aberta, pois casamento não tem devolução ou garantia de bom funcionamento por determinado prazo. Casamento, é para sempre. Carro se muda de quatro em quatro anos.

Sorriu ao terminar, Realmente era muito mais fácil do que ele suponha no inicio. Juntava-se um bando de palavras bonitas, tentava-se dar um mínimo senso ao raciocínio e jogava de volta tudo nas mãos daqueles que haviam escrito, eximindo-se assim do problema que na verdade nunca fora de dona Elizabeth. Afinal, estavam em Minas Gerais, onde politicamente todos gostavam de estar corretos. Era isto aí. Resolveu que Elizabeth Loren Kennedy, de uma vez por todas, seria a versão feminina de José Maria Alkimin.

Os dias se passaram e cartas e mais cartas eram trazidas pelo Mikimba que as jogava em sua rápida passada, na mesa de doutora Elizabeth. Sua coluna colara. Ia de vento em popa. Eram cartas até de outros estados, pois, a fama da cursada psicóloga estava começando a atravessar fronteiras. Todos pareciam felizes com as respostas de Doutora Elizabeth. O editor, os leitores e ele próprio. Ganhara um aumento e consolidara seu prestigio perante seus companheiros de trabalho, que não mais o tratavam qual uma pilhéria. Como disse o Juvenal Mascarenhas da página policial, “o cara sabe das coisas”, ou mesmo a Letícia Petrossiam das sociais, “ele tem alma de mulher”, mas que depois devidamente testada em sua própria cama, aquiesceu “que era igualmente possuidor de uma extraordinária força máscula”.

Tudo ia as mil maravilhas, quando um dia no café o Juvenal Mascarenhas veio a ele com a última edição em suas mãos. Parecia preocupado, mas manteve o clima afável:

- Você leu o que publicamos ontem na página policial?

Carlos Eduardo não quis parecer esnobe e dizer a verdade. Não lia aquele pasquim. Quanto mais sua página policial. Preferia enfurnar-se, em suas noites vazias – que na verdade eram muito poucas - em Ibsen, Proust, Chaucer, Byron ou mesmo Sheakespeare. Nunca em Juvenal Mascarenhas. Mas tinha que maneirar, pois, a maré estava muito boa para si e ele não precisava colecionar mais inimigos. Já bastava os que fizera no Rio de Janeiro, por causa de uma boa trepada. Que na verdade não havia sido nem tão boa assim.


- Juro que não tive tempo ainda de ler. Estive estudando umas cartas que levei para casa...

- Não precisa se justificar. Sei que sua coluna está pegando fogo e fico feliz com isto. Ninguém parece interessado mais na página policial. Tem crime todo o santo dia e todos soam iguais. Mudam apenas nomes e locais. A tua funciona. Símbolo da modernidade. Mas para mim está ótimo, pois, garante vendagem e com isto uma garantia a mais para com todos os nossos empregos. Jânio vem ai e penso que a coisa possa ficar preta para o nosso lado. O homem é maluco e pode varrer com toda a imprensa. Principalmente com o nosso jornal que infelizmente apoiou o general Lott. Mas acho bom você dar uma olhada e depois dê uma passadinha pela minha mesa. Assunto de seu interesse.

- Certamente o farei, tão logo terminar meu café.

Assunto de meu interesse??? Duvidava.

Juvenal se afastou. Era muito jovem e puxava de uma perna. Diziam ter sido policial dos bons que levara um tiro de um marido traído, mas poderoso politicamente e com isto jogara pela janela uma profissão no qual era tido como um meteoro. Uma lástima... mas para sua felicidade, o senhor Alencar era seu tio e desta forma arrumou um emprego pelo menos naquilo de que entendia.

Mulheres sempre um problema na vida dos barba azuis: Numa sociedade fechada como a mineira, as que gostavam e podiam dar, eram normalmente casadas, falavam muito e deixavam rastros. Uma combinação letal para os provedores da felicidade alheia, como ele e o Juvenal, numa cidade provinciana como Belo Horizonte, que era bela, mas não parecia ter horizontes.

Que saco ter que ler matéria policial, mas o Juvenal era um cara legal. O faria e depois passaria pela sua mesa para dar qualquer satisfação. Aprendera desde cedo que jornalista gosta de ser lido e adulado. Ele e Juvenal, embora ainda bastante jovens, não seriam exceções.

A medida que ele lia a matéria sobre um assassinato de uma menina da alta sociedade, sentia que o caso da Virgem das Mercedes tinha talvez algo a ver com a personagem principal daquela tragédia. Nomes e idades eram diferentes, mas quem diria a verdade em uma carta que seria publicada? Passou a ter mais atenção aos detalhes da noticia. Estava bem escrita. De forma objetiva e clara. Tinhas as impressões digitais do Juvenal. Quando terminou, levantou-se e foi ter a mesa do companheiro de trabalho. Sentiu que durante o seu trajeto, muitos foram os olhos que o encararam. Todavia, desta feita, de uma maneira distinta das anteriores. Havia uma certa pincelada de ódio nos femininos e de reprovação nos masculinos. Será que todos haviam sacado as vitimas naquele crime hediondo? Sentiu ao chegar ao final do corredor que sim.

- Li e gostei. Você escreve muito bem e dá sempre um sentido psicológico de criminologia em seus artigos. Notei isto em vários outros.

Ele sorriu ao receber o jornal de volta. Porém, em sua face estava escrito que sabia que ele não havia lido sequer sua página policial até aquele momento. Juvenal era astuto e não parecia ser uma pessoa fácil de se enganar.

- Poupe seu elogios. Agradeço-os mas não massageiam meu ego. Nasci policial e policial o seria, se não tivesse escolhido amar uma mulher que já tinha dono... – Pelo menos ele a amou, com Alexandra fora apenas sexo - ... mas isto é outra questão.  Vamos ao que interessa. Por acaso você não reconheceu na vitima alguém, que lhe escreveu uma carta, pedindo ajuda?

Estava contra a parede. Não funcionaria tentar mentir. Não com um cara perspicaz como o Juvenal. E afinal se a metade de seus colegas já parecia ter matado a charada, porque negar? Nada tinha a temer. Ou teria?

- Confesso que vi similaridades com minha primeira paciente – respondeu com cara de inocente e fazendo questão de com os dedos demonstrar aspas na última de suas palavras.

- Similaridades... Como soa poético vindo de você, doutora... Pois saiba, que existem mais do que similaridades meu caro Carlos Eduardo. Está na cara que é ela. Tudo se encaixa. A família, a amante lésbica de outro estado, o convite para ser sua dama de honra no casamento por parte dos pais e o papo que ela teve com os mesmos e o namorado com jargões como “Acreditamos que não possa haver nada de errado em duas pessoas de mesmo sexo se amarem” E que tal esta “Tabus precisam ser quebrados e nós na flor de nossas adolescências estamos prontas a fazê-lo”. Isto não lhe toca um sino?

- Ela assim o escreveu em sua missiva.

- Porra! Porque vocês jornalistas de formação teimam em usar palavras mortas. Aonde já se viu chamar carta de missiva? O que esta pobre menina escreveu foi uma carta! E a infeliz foi assassinada, com sua namoradinha, pelo ex-namorado que “quis lavar sua honra em sangue”, como o dito pelo Morcegão de Vila Velha - fora ele, agora, a utilizar-se com os dedos, do artifício das aspas.

Juvenal pareciadesnorteado. Mas porquê? O que ele tinha a ver com uma desmiolada tentar ser o exemplo para uma humanidade que não estava ainda pronta para sequer discutir o assunto, que dirá analisar exemplos? O Morcegão não era o namorado assassino, pois, se o assim o fosse diria. Fora apenas uma coincidência o fato dele querer lavar sua honra em sangue. Aliás, um fato que estava se tornando uma constante entre maridos mineiros traídos. Ele, ou melhor a doutora Elizabeth, tentara demover tanto o Morcegão quanto Maria Helena Ramos de Albuquerque Lima... Tinha a consciência tranqüila. Olhou novamente para o jornal. A virgem tinha um nome composto e um sobrenome que mais parecia um trem e agora uma face... Tinha a expressão de um anjo, agora gravada em sua mente, para sempre. Tinha que desfazer a inquietação:

- Desculpe-me mas não vejo razão para você se exasperar...

- Ah! Quer dizer que a doutora Elizabeth não vê uma razão para eu me exasperar... Olha aqui Carlos Eduardo, pode ser que lá nas universidades você cursou não tenha tido tempo de lhe ensinar o que eu aprendi nas ruas e nas sarjetas. O pai desta menina é poderoso e vai querer achar um bode expiatório. Nunca irá admitir que possa ter existido uma falha na educação em sua filha única. Que acobertou uma amizade que se transformou em mais do que íntima. Não vai levar em consideração que Maria Helena era mimada e que resolveu levantar a bandeira do lesbianismo no seio da católica família mineira. A falha nunca será dele. Terá que achar um bode expiatório.

- Mas o que eu tenho com isto? Eu inclusive aconselhei que ela...

- Carlos Eduardo, será que você se transportou definitivamente para o mundo fictício de sua doutora? Cara a garota era virgem. Não se dá conselhos a uma virgem. Principalmente a uma perturbada mental de dezesseis anos que acabou de assumir seu lesbianismo. Você escreveu que não vê nada de errado em duas pessoas do mesmo sexo se amarem. Que o mundo não está preparado ainda para o que ela está fazendo. Que ela deve agir por sua própria consciência. Pois é, ela agiu e hoje está morta! - Juvenal tinha razão... - Virgem é alguém que está fora da realidade. Uma pergunta: quantas virgens você descabaçou? - na realidade não se lembrava de nenhuma... - Pois é, provavelmente nenhuma. Eu também. Virgens são seres de outro planeta, amarguradas e descontentes com a sua própria existência. Por isto, a maioria depois que se casa, passa a dar mais do que xuxu na serra. E nós é que acabamos de pagar o pato com seus maridos traídos...

Conhecia bem aquela história, mas não gostaria de interromper ao Juvenal. A coisa parecia mais grave do que preverá inicialmente. Que confusão  aprontara!

- ... pois é minha querida doutora Elizabeth, teremos que enfrentar um problema, maior que nós mesmos.
- Teremos? Você quer dizer eu e a doutora?

- Não. Eu e você - Juvenal certificou-se que ninguém estava ligado naquela conversação, mas mesmo assim abaixou o tom de sua voz. Olhou firmemente nos olhos de Carlos Eduardo e decretou a nova surpresa de toda aquela esdrúxula situação: - Eu sou o Morcegão de Vila Velha - pela primeira vez baixou os olhos e perdeu aquela sua característica objetividade.

- Escrevi de sacanagem aquela carta. Queria ser o primeiro. Uma espécie de boas vindas, pois, achei que não pingariam tão cedo, cartas em sua caixa postal. Brinquei com fogo e para variar amanheci mijado.
Não seria queimado?

- E daí. Ninguém vai ligar seu nome ao pseudônimo que você criou e ademais o Morcegão não matou ninguém, nem influenciou em nada no crime cometido contra Maria Helena. Bem, diríamos que influenciou em parte com aquela história de lavar a honra em sangue...

Pobre Maria Helena. Tinha um nome... uma face... uma família... quatro tiros na cabeça e sete palmos de terra sobre si...

- Antes fosse assim. Na policia todos sabem quem é o Morcegão de Vila Velha. Era meu apelido na chefatura.

Mas Carlos Eduardo tentou ainda assim vislumbrar o lado positivo da coisa:

- Espero que os pais delas tenham bom senso...

- E que meu tio, segure a barra de nossos empregos...

- Que bom que encontrei a ambos – era o editor, o senhor Alencar, que os interrompia – tem alguém cercado de advogados por todos os lados, a procura do Morcegão de Vila Velha e da doutora Elizabeth Loren Kennedy. Vocês podem imaginar quem seja, não? 

    

2 comentários:

  1. Olá Renato!


    Como sempre adorei. E fico aguardando quando você juntar toda esta "diversão" em um único volume, vai ser ótimo. Eu irei simplesmente achar fantástico.Abçs Marilia Guimarães

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  2. muito bom, um pouco de suspense e final inesperado, Morcegão de Vila Velha era o Juvenal que não era o assasino.
    Coitado do Carlos Prates ou melhor Dra. Elizabeth metendo-se em uma enrascada por contas a pagar.
    Muito bom mesmo

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