terça-feira, 2 de março de 2010

ELIAS O HEMORROIDÁRIO

Elias era um garoto bonito. Bonito até demais. Cheio de vida e conhecido nas redondezas como a ilha. Sim exatamente isto que vocês leram, a ilha. E não por ser recluso, anti-social ou mesmo solitário. Ele era assim reconhecido, pois, mantinha-se cercado por gatinhas de todos os lados. Mulher para ele era como pingo de chuva, caía a rodo. Na boléia de sua mota, havia passado o que de melhor havia da Glória à Barra da Tijuca. E sua vida era uma maravilha! Invejado por flamenguistas e mangueirenses ele vivia a sua vida sem empáfia e muito menos soberba. Era um cara simples e legal. Até que um belo dia, daqueles que não há nada para se fazer, resolveu ir a um médico para ver se poderia contornar um pequenino problema que vinha lhe atazanando a paciência. Principalmente quando na moto. E o inferno teve o seu inicio. Suas hemorróidas.

Aquilo não era concebível. Estava totalmente fora de questão. Afinal ele não tinha sequer 24 anos completos. Como poderia ter sido atacado pelas hemorróidas, ainda no inicio de sua vida? Logo, na flor da idade, quando fisicamente você está no pico de sua existência e com a pica funcionando a mil por hora. Comia a tudo e a todos. E agora aquele louco do Dr. Albuquerque vinha taxativamente decretar aquele horrendo diagnóstico. A culpa de suas hemorróidas eram aquele raio do computador e a porra de sua motoca. Sentou, hemorroidou! Triste destino. Elias de Mattos se transformara num hemorroidário por causa da Apple e da Kawasaki.

Que merda! Poderia ele acionar judicialmente qualquer das duas companhias? Poderia esta ação atingir o patamar de perdas e danos, morais e financeiros? Afinal cu é coisa séria!

Mas ele não poderia nunca supor, que o simples ato de se manter sentado, agiria como agente no desenvolvimento de veias varicosas na região anal. Para Elias, as razões básicas de hemorróidas seriam o esforço físico, a evacuação de fezes ressecadas, a obstipação crônica ou até o abuso excessivo de laxantes. Ele se certificara destes sintomas após a sua consulta, em suas pesquisas naquele que fora um dos causadores de seu declínio anal. A Internet... Era verdade que a grande realeza da estória da humanidade, fora igualmente atacada por problemas constantes de hemorróidas e isto era agora fácil de se entender. Passavam muito tempo sentados em seus tronos, ouvindo seus ministros e súditos e muitas vezes dali mesmo, resolvendo os destinos de seus impérios e reinados. Clinicamente segundo o Dr. Albuquerque, o ato de manter sua bunda estática por horas numa superfície plana que não deixe ventilar seu feófo, pode gerar hemorróidas. O pior de tudo é que Elias descobriu que o tratamento das hemorróidas era muito mais complexo do que ele inicialmente poderia supor. Não havia uma pilulazinha antiinflamatória capaz de fazê-las ceder instantaneamente. O problema tinha que ser atacado in loco, isto é, lá em baixo mesmo. Na dita cuja!

- E as gatinhas doutor?

- Problema algum. Seria um problema se você tivesse de olho nos gatinhos. Se bem que se este fosse o caso, não ficaria tanto tempo com seu traseiro na posição horizontal.

- Pó, sai dessa doutor! Desconjuro! Tô nessa não!

 E achando um pedaço de madeira bateu insistentemente até ter certeza que aquela praga não pegara. Parando de rir, o debochado doutor, que o vira nascer, complementou;

- Elias, o seu caso, graças ao bom Deus, não é dos mais cabeludos e por isto mesmo não será necessário a cirurgia ou a utilização penosa daquelas ligaduras elásticas mas é bem mais complicado que a média..

- E...

- E, meu velho é que acredito que o infra-vermelho seja inevitável. Ou então cirurgia ou a liga. Você escolhe.

- Cirurgia? To fora, doutor. Na bundinha de Elias Ilha Grande, marmanjo algum põe a mão. Que dirá Zé mané de bisturi ou ti-ti-ti de liga elástica. Tá louco Zé bedeu? Imagine doutor...

- Então?

- Pô, infra-vermelho é dose! Este corpinho que Deus fez, ficar agora num consultório médico horas a fio, com a bunda para o ar e com um aparelho emissor de raio infra-vermelho atochado no rabo. Tô gostando disto não!

- Mas lembre-se Elias, se este for realmente o caso, pelo menos estas desgraçadas seriam coaguladas, para posterior cicatrização num sistema de foto coagulação.

- Concordo Dr. Albuquerque. Sei que o senhor é considerado craque em doenças anais. Mas no cu dos outros, negão! No meu neca de pitibiriba. Neste que maínha passou talco, degenerado algum vai passar a mão.

- Você é que sabe, Elias.

- O homem é gênio em cu!
Garantira-lhe o Sebinho que um dia tivera uma infecção anal advinda de uma ameba instalada em seu intestino.

Mas cirurgia estava fora de cogitação. Ele podia ser o Pelé do reto, que Elias não ia concordar. Trataria-se com compressas quentes. Mas numa relação com sua noiva, lá bem na hora de gozar, as desgraçadas dilataram-se de tal maneira que ele simplesmente brochou.

- O que foi querido?

- As desgraçadas das hemorróidas. Agora toda vez que estou para explodir, são elas que explodem e acontece o que você acabou de presenciar.

- Então esta foi a razão de na última vez...

- E na penúltima também. Estas desgraçadas estão fazendo da minha vida um verdadeiro inferno. E agora este doutor que meu pai indicou e o Sebinho garantiu que é o Pelé das hemorróidas quer castrar meu cu.

- Mas se não há outro jeito, querido...

- Tem que existir.

- Espero, porque na quarta brochada você pode se acostumar e virar cacoete. Você me entende, não benzinho.

- Se você acha que com compressas quentes e ervinhas familiares a sua situação vai melhorar, tire o seu cavalinho da chuva, Elias. Vai ter um dia que você não terá nem condições de evacuar.

- E trepar, doutor?

- Um dia, quando estiver pronto para gozar, elas se avolumam e você brocha. Acredite no que eu estou lhe dizendo.

Ninguém precisava lhe provar o fato. O importante é que parecia que o Dr. Albuquerque sabia das coisas, pensou Elias que de desesperançoso passou ao estágio de desesperado. Se ele parasse de cagar, para a onde a merda iria ir? Para o cérebro, como seu pai sempre lhe dizia ser o mesmo formado? E de gozar, para onde sua noiva lhe mandaria? Será que aquele homem que o virá nascer, ia desvirginar aquele anus que ele tratava com tanto carinho, sem papel, só no bidê? Faca ou Infra-Vermelho? Que dilema.

E o cu foi para o ar. Trinta minutos, três vezes por semana. Mas isto não foi nada. Depois de várias aplicações, para a tristeza de Elias ficou constatado que as malditas, não haviam coagulado e conseqüentemente não regrediram na proporção desejada pelo Dr. Albuquerque. Ao contrário, evoluíram e se proliferaram. Tratavam-se de hemorróidas galopantes, que cresciam numa progressão geométrica que nem inflação de país de terceiro mundo. E assim, mesmo a contragosto, e depois de brochar mais três vezes em uma única semana, o pobre do Elias teve que passar ao estágio seguinte, o das hediondas fitas elásticas. E isto foi simplesmente dilacerante. As bichas latejavam, supuraram mas não de modo algum regrediram um milímetro sequer. Cagar estava cada vez mais difícil. Gozar, impossível. Marlene já falava em férias em Mangaratiba.

E depois de semanas a fio de sofrimento o abominável veredicto do Dr. Albuquerque foi decretado de forma solene e piedosa.

- Isto é mesmo congênito como eu supunha, meu caro Elias. Nada mais posso fazer. Você  tem mesmo é que entrar na faca.

- Mas como? Se meu pai nunca teve hemorróidas, nem mesmo a minha mãe, como isto pode ser congênito?

- Ninguém assume ter hemorróidas. Tem gente que aceita ser diabético, outros serem portadores de câncer, mas ninguém tem coragem de confessar ter hemorróidas. Desculpe-me mas seu pai tinha duas putas hemorróidas e a coisa teve que também ser resolvida numa mesa cirúrgica.

- Mas ele nunca nos disse nada.

- Cu de coronel da policia Militar é segredo de estado. Questão de segurança nacional, acredite-me.
Mesa cirúrgica! Até seu pai passara por aquilo...

Elias se desesperou. Seu cu seria dissecado por mãos alheias. Mãos inescrupulosas e muita das vezes, não convenientemente limpas. O que seria de seu anus? Passaria ser de domínio público? E sua reputação de macho?  E quando aquilo caísse na boca do Sebinho? As gatinhas iriam debandar. E a Marlene? Eles haviam acabado de ficar noivos. Mas não houve jeito, uma consulta veio a ser marcada.

Pequenas bagas úmidas de suor correram-lhe pelas laterais e de seu rosto, apreensivo em face da espera. No consultório do Dr. Bago ele contou os segundos. O tempo simplesmente não passava. Com aflita pontualidade ele havia comparecido naquele que seria o cirurgião responsável pela extirpação das horrendas. Após minutos que pareciam dias, finalmente a terrível constatação; o Dr. Albuquerque tinha razão. A cirurgia era necessária.

O tempo o fez resignar-se. Marcou a data, despediu-se de Marlene como se estivesse a caminho do Iraque e na hora marcada compareceu cabisbaixo para o seu sacrifício anal. Porém, para a sua grande surpresa, lá chegando foi notificado que o Dr. Albuquerque e não o Dr. Bagô, exigia a sua presença no consultório, não mais na sala de cirurgia.

Aleluia! O que havia acontecido? Mudança de planos? Por segundos o rosto de Elias se iluminou. Talvez, aquela sabedoria anal ambulante, tivesse achado uma outra solução. Quem sabe o Dr. Albuquerque descobrira uma pílula milagrosa capaz de resolver o seu problema. Deus era realmente grande. Brigadinho!

- Elias estive estudando o seu caso, após a biopsia que fizemos e cheguei a uma conclusão. Simplesmente retirar cirurgicamente suas hemorróidas irá apenas resolver o seu problema temporariamente. Pois, como já lhe disse anteriormente, seu problema é congênito.

- E daí?

- Que não resolverá o seu problema definitivamente.

- O senhor poderia ser mais especifico?

- Uma cirurgia não resolveria o seu problema de forma definitiva. Apenas temporária.

- Mas pelo que entendi, resolveram a de meu pai.

- Com certeza que sim, mas o caso dele não era tão alarmante qual o seu. O computador e a motocicleta aceleraram o seu processo degenerativo. Desculpe-me, mas não acredito que haja outro jeito.

- Se as tiro, elas voltam. Creio que isto é o que o senhor está querendo me dizer?- como a sumidade anal concordasse com a cabeça, ele voltou a perguntar aflito – E quando elas estariam de volta?

- Impossível de predizer. Um mês, um ano, ninguém lhe poderá garantir com certeza. Mas que voltarão, voltarão!

- E o que fazer, se não há solução?

- Na realidade existe uma solução. Para que você entenda o âmago da questão, trata-se de algo que nunca antes veio a ser tentado...

- Há solução? E qual seria ela? - perguntou eufórico com a nova possibilidade.
O Doutor era mesmo gênio! Seu cu tinha solução.

 - Estas hemorróidas são originárias, devido a formação das paredes de seu ânus. Se simplesmente as extirpamos, elas irão voltar com o tempo...

- Isto o senhor já me disse. Tenho hemorróidas crônicas? Por favor vamos direto ao ponto. Que solução é esta que nunca veio a ser testada antes? - interrompeu ele irritado com todo aquele tro-lo-ló.
- Algo semelhante a uma mudança...

- E o que faço então, Dr.? Lacro o cu? Paro de comer?

- Não de seu hábitos, trata-se de uma nova técnica..

- Nova técnica? E qual seria ela? - interrompeu mais uma vez Elias, mas desta feita eufórico com a possibilidade de não ter que entrar na faca.

Ele odiava aquelas desgraçadas hemorróidas, mas pensando bem, elas eram parte de seu corpo e ser mutilado não estava em seus planos imediatos. Quem sabe um antibiótico ou mesmo uma massagem...

- Um transplante de anus.

Elias franziu o cenho. O chão simplesmente abandonara seus pés. O tal do Albuquerque era mesmo uma besta!

- O senhor pode repetir?

- Isto mesmo o que você ouviu, Elias. Um transplante.

- Transplante, de cu doutor? – na pronta concordância médica ele desabafou – No cu, negão !

- Eu usaria o temo anal...

- Anal é o seu cu!

Ia ser um pouco mais difícil, pensou o médico. Era hora de descer de seu pedestal e procurar falar a mesma lingua.

- É transplante no cu mesmo e não há outra solução. É pegar ou viver eternamente com o problema. Que lhe asseguro que vai aumentar. E isto irá afetar seu estado sexual.

Aumentar? Sentar por si só era um sacrifico. Cagar, um inferno. Só de bolinha. Gozar, jamais. Logo como poderia sua situação ainda piorar? Mas ao mesmo tempo, nunca em momento algum, ouvira semelhante estória. Parecia estar vivendo um pesadelo. Em sua surfadas constantes pela Internet, não chegara a tomar conhecimento de um caso sequer, de cu transplantado.

- Mas eu nunca li algo a respeito...

A fera, acalmara-se.

- Como lhe disse, será o primeiro.

As meninas dos olhos de Elias deram duas voltas em suas órbitas. Além de tudo ele seria a cobaia!

- Decida.

O Albuquerque estava realmente falando sério e queria ainda uma resposta rápida. O pior é que sondara e tinha agora a mais convicta certeza que aquele médico era a autoridade máxima em questões anais. Sem relutância aceitou o seu desígnio. Ele teria o seu cu transplantado e resolvido de uma vez por todas aquele problema que tanto o atormentava. A Madalena iria gostar, pois ele teria de volta a sua virilidade. Seu pai, igualmente haveria de aceitar o fato. Sabia que não seria fácil, mas afinal quem vê cu não vê alma! E ademais cu é cu. Só merda por ali passa!

Mas, ao mesmo tempo, um turbilhão de pensamentos afluíram a seu aturdido cérebro. Seria ele mesmo o primeiro caso? Não haveriam sido feitos outros transplantes sem sucesso e por isto encobertos publicamente? E se fosse ele realmente o primeiro, entraria para a estória clínica como o pioneiro recebedor do cu alheio?

E quem seria o doador? De que defunto seria arrancado aquele cu? Seria um cu largo, estreito e de que cor? Moral da estória brochou. Nem mais ereções conseguia. De uma passara ao estágio do não consumar ao de simplesmente nem iniciar. Marlene foi a primeira a pular fora. A ela se seguiram a Margot, A Elizabeth e até a Suzy que sempre fora vidrada nele. E de Ilha Grande passou a ser chamado ali no final de Copacabana, de Ilha da Bananeira. Era demais.

Assim decidiu. Era o cu ou a pica. Optou pela pica em detrimento do cu. E na faca entrou, tão logo um doador veio a ser achado.

O transplante foi um sucesso. Toda a imprensa foi congregada para que o feito inédito da medicina brasileira, tornasse público. E todos, sem exceção exigiam que o cu de Elias viesse a ser fotografado.
Propostas da revista Playboy e Men, apareceram sobre a mesa, mas Elias estava irredutível. Nenhum milhão o faria mudar de idéia. O cu era seu e não queria que de maneira alguma, o dito se tornasse de domínio popular, principalmente pelo fato do doador ter sido um pessoa de coloração negra que morrera atropelada num dos cruzamentos da Cinelândia. Havia muito contraste entre seu novo e recém implantado cu e o resto de seu corpo e isto deixava Elias sem jeito. E querendo ou não, como dizia seu pai; Meu filho, cu é peça sagrada de seu corpo. Não é para se tornar página do meio da revista Playboy.

Como tudo no Rio de Janeiro, depois de um arrastão aqui, uma briga de facções de favelas ali e mais uma derrota do Botafogo acolá, até o cu de Elias de Mattos deixou de ser notícia. Em seu período de convalescença, ele estava proibido de sequer tentar uma relação sexual e vivia de sopinha. Logo perdeu o viço, bem como seu estado atlético. Seus primeiros fios de cabelos brancos nasceram nas laterais.

O ti-ti-ti limitou-se ao Dr. Albuquerque, que com o feito alcançou notoriedade e uma imensa clientela. Não eram agora poucos, os homossexuais que o assediavam em seu consultório, para transplantar seus respectivos cus, por outros mais novos, rosáceos e apertadinhos.

Todavia, o transplante de cu havia igualmente transformado a vida de Elias. Primeiramente porque ele não voltaria a cometer o erro de outrora de ficar horas sentado a surfar na Internet. Seu novo cu necessitaria ser ventilado. Vendeu a moto e passou a surfar no mar ao em vez da Internet. Segundo, porque a simples sensação de defecar, agora era diferente. Depois de dois meses, Elias podia até tomar leite norte-americano que nenhum esforço era necessário para cumprir com suas funções fisiológicas. Até porque, aquele era um cu lubrificado e de muito maior porte. E terceiro porque aquele novo cu parecia estar mudando até sua maneira de ser.

Deixara de assediar as meninas, mas em compensação sentia-se mais alegre, com um muito melhor humor e acima de tudo com vontade de se exercitar e participar mais da vida. Deixou de ser aquele personagem apenas ligado ao sexo. Sentiu-se impelido a intelectualidade. Estabilizado, corado pelo sol e com os músculos finalmente aflorando de sua pele, Elias parecia ser um novo homem. Voltou a chover mulher na sua horta mas ele não parecia se interessar e muito menos fazer pazes com o pinto. Haviam coisas mais importantes no mundo do que simplesmente se preocupar em hastear suas bandeiras como outrora. Chegou até a esnobar a Marlene, que estava de volta rondando o seu quarteirão.

Mas seu pai, o Arquibaldo, sentiu que estas ótimas mudanças de comportamento eram acompanhadas por outras de atitudes que não lhe pareciam agradar a primeira vista. E dia a dia, as segundas pareciam maiores.

A voz de Elias se tornara mais esganiçada, seus gostos mais femininos, trocara a moto pelos livros, a noite pelo dia e até a sua forma de andar era outra. Elias agora rebolava e isto já era nitidamente notado não só por ele, como também pela Marlene que sentiu que o molejo de seus quadris fora ofuscado pelo jogo de cintura que seu ex-noivo. E deixou isto claro para o coronel. Foi ai que o coronel Arquibaldo resolveu procurar o Dr. Albuquerque.

 O velho médico a tudo ouviu atentamente e coçando o seu cavanhaque de bode, confessou.

- Meu caro Arquibaldo. Foi uma titânica luta para se conseguir um doador para o seu filho. Neste pais existe ainda um tabu para com a doação de órgãos, principalmente em se tratando de cu. Ninguém quer dar o seu cu a um desconhecido. Olhos, rins, bexigas, corações e estômagos, não existe problema. Todavia, cu, nunca. Coisas de brasileiros.

- E a quem pertencia o cu que agora meu filho está portando?

- Em nossa profissão, a ética não nos permite tornar público quem são os doadores.

- Não preciso de nomes, apenas aspectos gerais como idade, o que fazia, quais eram as suas características. Enfim, fatos gerais?

- Impossível coronel. Este cu, tem seus segredos e estes deverão ser mantidos para o bem da ciência.
- Não aceito! Eu exijo saber de quem era este cu! Meu filho não pode viver eternamente do cu alheio, sem saber sua origem!

O experiente cirurgião sentiu que devia haver algum problema no ar. O homem era coronel da ativa da Policia Militar. Tinha amizades no Palácio e perdia o humor com facilidade. Assim enveredou por um caminho paralelo.

- Porque, você quer esta informação, ô Arquibaldo?

- Tenho minhas razões.

- Quer dizer que eu posso descortinar as minhas, mas você não as suas? Por acaso está havendo algum problema de rejeição?

- Não! Rejeição propriamente não...

-Então o que o aflige, homem de Deus?

 - Já disse. Mudança de comportamento.

- Do anus???

- Antes fosse. Do Elias é que estou me reportando!

A coisa estava começando a se desenhar bem mais complicada do que ele pudesse imaginar. O medico coçou a cabeça.

- E o coronel poderia me dizer que mudanças são estas?

- Meu filho está agindo qual uma mulher.

O Dr. Albuquerque gelou. Será? Em seus estudos nunca foi sequer aventada a possibilidade de mudança de comportamento. Haviam muitas discussões sobre a possibilidade de rejeições e até inadequabilidade operacional com o intestino. Mas mudança de comportamento...

Pensou um pouco. Talvez não fosse indiscrição de sua parte em segredar alguns detalhes do doador, para aquele pai que parecia preocupado com o cu de seu filho. O Dr. Albuquerque era também pai e por isso podia igualmente entender o teor de toda aquela preocupação. Cu de filho é que nem amor de mãe; coisa sagrada. Assim sendo, pegou o dossiê de Elias em seu arquivo e abrindo-o o estudou por segundos. Pelas barba do profeta! Ele, a pressa e a excitação foram tantas que ele não atentara a certos detalhes do doador. Afinal não era todo dia que se encontrava alguém afim de dar seu cu rapidinho. Pigarreou. Aquilo deveria ser dito com muito cuidado.

- Primeiramente eu queria lhe dizer que o doador em questão, na realidade não era um doador...

- Como Albuquerque? Quer dizer que tiraram o cu do cara na marra? Isto é inconstitucional...

- Não Arquibaldo, o doador em questão era na verdade uma doadora.

O coronel Arquibaldo Pederneiras de Matos. Sentiu seus joelhos fraquejarem. Empalideceu, mas o experiente doutor não lhe deu tréguas para explodir;

- Seu nome de batismo era Joana e ela era conhecida no centro da cidade como Mãe Joana.

- Mãe Joana?

- Sim. Mulher de muita saúde e beleza. Diziam até que em seus áureos tempos foi mulata no Oba Oba do Sargentelli...

Mas o coronel não queria ouvir mais nada. Que lhe interessava se ela fora boa para burro? Era uma mulher. A dona daquela cu, poderia ter sido até a ama de leite da rainha da Inglaterra, que nada iria diminuir a sua ira. Era uma mulher. Seu Elias tinha um cu de mulher. Inadmissível!

 - Caguei se ela era bonita ou não, ô Buca! Quer dizer que o Eliaszinho agora portava entre suas nádegas o cu da Mãe Joana? Isto é um ultraje. Um verdadeiro acinte a moral e aos costumes. Imaginem se a procedência do cu de meu filho for descoberta por algum jornalista? Como ficaria a moral do Elias? E de seu cu? Ou o cu da Mãe Joana? Recuso-me terminantemente a aceitar o fato. Meu filho é cabra macho, moleque conquistador e agora seja obrigado a portar o cu da mãe Joana.

- Agora não posso fazer absolutamente nada. O fato está consumado. E na hora em que o doador foi achado, você Arquibaldo ou mesmo o Elias, não fizeram nenhuma restrição a que tipo de cu seu filho iria portar.

- Mas nem me passou pela cabeça que pudesse ser o doador uma mulher...

- E porque o preconceito? Existem corações de mulheres pulsando dentro do peito de homens.

- Porra ô buca! Coração é coração. Cu é cu!

- Desculpe, mas eu lhe disse tratar de uma pessoa atropelada. O sexo nunca esteve em discussão.

- Evidente. Quem poderia supor que você meu amigo de mais de quarenta anos fosse implantar o cu da mãe Joana em meu filho. Quem? Quem? Logo a você que há vinte anos atrás entreguei o meu cu sem restrições.

Dona Lygia, virgem, sexagenária e filha de Maria, que acabara de entrar no consultório particular do doutor Albuquerque a quem auxiliava nas horas vagas, ao ouvir aquela última e revelante confissão, achou melhor fingir que esquecera um dos documentos em sua sala e fechou a porta atrás de si.

- Como resolveremos este problema?

- Que problema?

- Ah! Você acha que ser portador do cu da mãe Joana não é problema, porque então não transplanta o seu e usa o do Madame Satã daqui para frente?

- Esqueça-se, por um momento desta pequena anomalia. E me responda. Seu filho defeca bem?

- Muito bem e mais rápido.

-Ótimo. Seu filho não se sente mais jovial e mais ativo?
- Confesso que sim. Perdoe-me, mas este não é o âmago da questão. Tenho muito apreço por você Buca. Você solucionou definitivamente o problema de minhas hemorróidas e sou-lhe grato por este fato também. Mas o que fizeram com o cu do meu Elias, foi uma tremenda barbeiragem.

- Você está exagerando.

- Porque o cu não é teu e não sabe quanto dói a mim um pai de família!

Dona Lygia, que estava de volta, desistiu de uma vez por todas a participar daquela libertinagem. Voltou a sua sala lívida. Tomou imediatamente uma decisão. Pela manhã o Dr. Albuquerque teria em sua mesa, sua carta incondicional de demissão.

- Você precisa quebrar preconceitos... mas não se preocupe Arquibaldo. Mãe Joana era uma mulher sadia, sem doenças e que possuía uma vitalidade inigualável. Ao envelhecer, vendia cocadas na baixa do sapateiro e desfilava na ala das baianas de Mangueira. Foi pega por um ônibus, e como seu filho precisava urgentemente de um cu, foi o dela do que nos utilizamos. Não se preocupe. Não há problema algum. Trata-se de um bom cu. Sadio e correto.

- Fácil para você achar que não há problema algum quando não é propriamente o seu filho que carrega consigo o cu da Mãe Joana.

E dizendo isto o coronel se retirou daquele consultório indignado, marchando como um oficial de alta patente ferido em sua honra o devia fazer.
E eu que o achava o coronel e o doutor, homens distintos, pensou com seus botões dona Lygia, fingindo não notar a sua saída.

O coronel Arquibaldo estava pelas tampas. Estava naquele momento pensando seriamente em consultar um advogado sobre aquele caso. E tão logo abandonou o consultório do ex-amigo, procurou a outro que lhe devia muitos favores.

O Doutor Agildo Parreiras era um advogado especialista na área de problemas médicos. Agia como consultor de vários órgãos de saúde e hospitais dentro do território brasileiro, mas mesmo ele com toda a sua vasta experiência, nunca havia ouvido falar de um caso tão cabeludo como o do cu de Elias... ou melhor da mãe Joana.

- Vou ter que examinar.

- O cu de meu filho ninguém examina!

- Sossega, Arquibaldo. Ninguém quer colocar a mão no cu da mãe Joana... desculpe-me do Elias. Vou examinar o caso, mas de cara lhe asseguro que não vejo muitas saídas.

- Como não há saída?

 - Para o bem da verdade, pelo que sei não existem problemas de rejeição ou mal funcionamento – o coronel assentiu com a cabeça, embora aquele assunto lhe enojasse – Pelo o que também entendi o citado cu , além de cagar maravilhosamente bem, não coça e ainda por cima apresenta estatisticamente um fluxo bem maior – o coronel voltou a concordar – Possibilitando, segundo seu próprio depoimento, que Elias não ficasse mais horas a fio como antes, no único vaso sanitário existente naquele apartamento de dois quartos que vocês dois dividem na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, ali perto da Real Constant – parando um pouco para tomar fôlego, continuou com os olhos pregados no processo – Segundo você, em uma oportunidade, o Elias quando ainda menino lera 2/3 do romance Guerra e Paz numa tentativa de evacuação. Logo, não é por ai que poderíamos responsabilizar o Dr. Albuquerque. Temos que buscar outro ângulo.

- Outro ângulo Paranhos. Implantam no meu filho o cu de uma crioula, que nem sabe atravessar uma rua e você acredita que nós ainda precisemos buscar um ângulo? Paranhos, preste atenção. Existem três agravantes. Elias está agora com trejeitos femininos. Segundo acredito que qualquer ser humano, independentemente de cor, sexo ou religião, jamais em sã consciência, sonharia em ter seu cu relacionado como o da Mãe Joana. E terceiro sou coronel da Policia Militar. O que a turma da minha corporação vai fazer quando souber disto? Como fica a minha moral? – Paranhos demonstrou consternação - Assim, o Dr. Albuquerque é culpado e tem que dar uma solução ao caso. E que o ângulo que você procura vá para a puta que lhe pariu!

A situação estava se tornando melindrosa e Paranhos macaco velho do tempo que a Lapa era antro de vagabundos, não ia colocar sua mão naquela cumbuca. Ele tinha que achar uma solução que acalmasse o amigo, mas que ao mesmo tempo solucionasse o problema do filho do mesmo. Pois, caso contrário, iria sobrar para ele próprio.

- Com todos o respeito que o cu de seu filho merece, mas gostaria de lembrá-lo que tem muita gente que muda de trejeitos com a idade sem transplante algum. Simplesmente porque vira a mesa. Sei que não é o caso de seu filho. Garoto macho como o pai, desde menininho. Evidente que para ele houve um agravante, logo só vejo uma solução. Vamos tentar um acordo e obrigar ao Albuquerque a fazer um novo transplante, livre de qualquer despesa, e com um doador reconhecidamente macho.

- É isto aí! Macho com M maiúsculo!

A batalha judicial perdurou quase um ano, mas finalmente o Dr. Albuquerque cedeu aos caprichos do coronel e de seu advogado. O cu de Elias teria que ser novamente transplantado. O problema é que agora, Elias havia se apegado a aquele cu. O tratava com carinho, respeito e o dito cujo em troca o estava servindo bem. Não haviam mais hemorróidas, prisões de ventre ou sangramentos de nenhuma forma. Era um grande cu, largo, em tamanho e eficiência. O problema era que pertencera a Mãe Joana e se um dia mais pessoas tomassem conhecimento deste fato, efetivamente seu pai tinha razão. Sua vida se tornaria um inferno.

A indecisão de Elias se desfez, quando ao sair rebolando um dia do tribunal foi assediado por um mulatinho magrelo, servente da corte, que lhe sapecou uma proposta indecorosa. Indignado, Elias respondeu nas fuças do mulato.

- O que você pensa que meu cu, é?

E a resposta foi imediata, o fez cair na real.

- Da Mãe Joana.

A nova cirurgia transcorreu como a primeira. Perfeita. O doador era branco, macho, nordestino e pai de três filhos. Morrera do coração mas segundo sua esposa, quando vivo, cagava que era uma beleza. Seu cu era perfeito, praticamente imaculado. Um cu macho! Porque nordestino pode ser tudo, menos baitola!

Feliz com o seu novo cu, que pelo menos cromaticamente não contrastava com sua pele, Elias voltou a ter seu andar regularizado e sua voz masculinizada.  Não rebolava mais, perdera os trejeitos e além de demonstrar virilidade em suas atitudes, passou até a ter uma certa rispidez em seu relacionamento com outras pessoas. O coronel estava exultante com o novo cu de seu filho. Aquilo sim era um cu. Um cu ríspido que não levava abuso para casa. Um cu retado! Um cu de macho!

Mas as coisas foram mudando e o coronel apavorou-se com o que via, dia após dia em seu apartamento. Até que num final de tarde, voltando mais cedo do que o normal, flagrou seu filho com as calças arriadas e a bunda para fora da janela. Sua reação de indignação não pode ser contida.

- Elias, filho meu, o que você está fazendo com sua bunda ao relento, para toda a vizinhança ver?
Elias de um pulo se recompôs e levantando o zíper de sua bermuda tratou de se explicar.

- Juro que não sei o que foi, papai. Acabei de ouvir na televisão que vai haver um tempestade. Vai chover o grande caralho e seremos assolados por um vento de foder. Instintivamente me senti impelido de colocar a bunda para fora da janela. Foi algo mais forte que a minha própria vontade. Será que estou sendo dominado pelo cu?

Aquilo estava cheirando mal. O coronel foi atacado pelas primeiras suspeitas. Será que aquele nordestino, macho, pai de três filhos e cônscio de seus deveres de chefe de familia, na verdade sentava numa boneca? A partir daquele momento ele passou a seguir os passos de seu filho mais de perto e foi então que descobriu que a emenda era pior do que o próprio soneto. Ao ver a banda de Ipanema passar, Elias com as mãos nas cadeiras e aquela atitude máscula de Lampião, o rei do cangaço, simplesmente se transformou ao ouvir um crioulo pernóstico ordenar a chefe de sua bateria.

- Orga, não vamos dar forga! Pau no samba!

O Elias se empinou, olhou para um lado e para o outro e saiu rebolando a cantar qual uma Carmem Miranda arrependida de ter abandonado o Brasil.

 - Eu sou o samba, sou natural aqui do Rio de Janeiro...

Que saudades das hemorróidas e do cu da Mãe Joana foram os últimos pensamentos do nefando coronel segundos antes de ter o enfarte que ceifou a sua vida, ali mesmo na Avenida Vieira Souto, na véspera do carnaval de 2002

5 comentários:

  1. Renato,

    Rolando de rir com o seu conto ! Fantástisco !
    Vou enviar para alguns amigos motociclista, que com certeza, irão me matar !
    E que linda a sua MUSA ! Parabéns !

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  2. caracaaa... kkkkk... muito bom..coitado do Elias, se fosse inteligente teria ficado com o primeiro...mesmo doente..ou com o da mãe Joana..
    kkkk kkkkk
    morri de rir, valeu mesmo

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  3. Hilário...muito divertido o seu conto...os detalhes, o pai coronel, enfim...muito engraçado...antes tivesse ficado com o primeiro...rssss
    Adorei!!!

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  4. A crônica narra a história de um jovem saudável e bonito que é surprendido pela doença.Todos os que se dedicam à arte, seja na escrita ou em outra área, sabem o quanto é difícil fazer rir; é muito mais fácil fazer chorar. Escrever sobre coisas corriqueiras, como perda de um amor, problemas de saúde são suficientes para levar muitas pessoas às lágrimas. Nesse aspecto, mais uma vez parabenizo o talentoso escritor, Renato, que com seu talento de comediante conseguiu arrancar risos do público, em uma narrativa agradável que prende a atenção do leitor até o final. Parabéns.

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  5. Renato, parabéns!!
    Voce é demais!!Amei os termos que usou, tipo:neca de pitibiriba, cavalinho da chuva e assim por diante......Senti uma sensação muito gotosa e familiar,
    assim como qdo ouço meus pais contarem as historias engraçadas com personagens do seu tempo.Sou paulista mas criada no interior de Sao Paulo e aqui na minha cidade ainda muita gente usa esses termos saudosos....
    Seu conto é delicioso, prende a atenção pq é autentico e engraçado....parece que estamos vendo a cena......muito bom mesmo!!!Vou divulga-lo com certeza!
    Sucesso!!
    beijos

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