Fazem
10 anos que o Brasil conquistou a sua última Copa do Mundo. Todo
brasileiro que se preze sabe exatamente o que fazia naquele 30 de junho
de 2002. Até eu que acompanhei, sozinho com minha mulher o jogo, em
nosso então apartamento, em lexington Kentucky. Outrossim, isto me fez
lembrar de um história, que agora aqui passo para vocês, acontecido com
um cara que ganhou uma viagem dos amigos aos Estados Unidos, pois, por
ser considerado pé frio, pelos mesmos, não teria então a chance de
assistir a final do brasil no Japão. Vamos a ela.
Orozimbo
estava de volta a São Paulo pronto para pegar seu avião que o levaria a
seu destino final; a cidade de Miami. Estava agora a espera em seu
telefone. Aquela musiquinha irritante parou e finalmente a atendente da
American Airlines deu o ar de sua graça. Se é que possa haver graça na
American e em suas atendentes...
“Obrigado por ter chamado a American Airlines. Aqui fala a atendente Marilyn. Em que posso servi-lo?”
“Senhorita
recebi um recado aqui no hotel que sua companhia estava precisando
falar comigo. Estava hospitalizado em Fortaleza...”
“É o senhor é?
“Orozimbo Malaquias Lafayette... Reliquias.
“Senhor Reliquias?”
“Ele mesmo, a seu inteiro dispor”. -
respondeu o próprio, ciente que não haver a menor possibilidade de
constar outro com o mesmo nome, na lista de passageiros daquele vôo. A
n’ao ser sua esposa.
Orozimbo,
não era um nome. Era um insulto, uma praga que trazia desde criança e
que o mantinha distinto de todos os demais seres humanos. Se bem que
depois do Eventivo e do Elêncio, ele não se sentia tão só em suas
agruras... Agora o pior era ser Reliquias...
“Nosso
voô do dia primeiro infelizmente foi cancelado e nós estamos tendo uma
certa dificuldade em realocar os passageiros devido ao grande número de
reservas”.
“Em outras palavras, vocês para variar estão overbook?”
“Não
necessariamente, mas poucas são as vagas que restam. Assim realocamos o
senhor e dona Cristina Antônia novamente para o dia 29...”
“Como a senhora disse?”
“Dia 29”.
“Dia 29? Sábado? Este sábado, a senhora quer dizer?
“Exatamente. Sua data inicial”.
“Mas
eu não quero ir dia 29. Por isto mudei com antecedência a data, paguei a
multa e a diferença de preço na passagem e creio aceitaram a mudança,
pois tenho até o código da nova reserva”.
“Entendemos e o terá creditado em seu cartão todas estas dispesas, anteriormente lhe cobradas...”
“Desculpe,
mas parece que é a senhorita que não está entendendo a situação. Eu náo
quero ir dia 29. Por isto mudei a data e me assujeitei a pagar esta
exorbitância que vocês me cobraram”.
“
Entendo. Se o senhor não quiser ir dia 29, eu creio que o senhor poderá
viajar depois do dia... deixe-me ver aqui... depois do dia oito de
Julho? Nós teríamos vagas...”
“Depois do dia 8? A senhora está delirando?”
“Infelizmente não. O senhor desejaria confirmar sua viagem para o
dia 29 de Junho nestes dois lugares, que são os últimos, ou prefere após
o dia oito?”
Era
incrível a apatia com o que aqueles autômatos de viações aéreas o
tratavam pelo telefone. Apatia e total desprezo pela natureza humana. A
verdade é que depois da vitória sobre a Turquia ele pessoalmente
remarcara seu bilhete pelo telefone. Haviam aceito e lhe deram até um
código de confirmação. E agora vinham com aquela conversa mole de cerca
pimenteira. Mas fora época que ele aceitaria passivamente aquela
mudança.
“A
senhora não está entendendo. O Brasil joga as sete horas da manhã do
dia 30. Eu não gostaria de estar dentro de um avião quando isto
acontecesse. É a final da Copa do Mundo! FINAL! Agora acredito que até a
senhora possa entender. Por isto remarquei minha viagem para o dia
primeiro. Depois do jogo. Depois da comemoração. A senhorita entende, ou
vou ter que desenhar?”.
“ Evidente que sim. Mas dia 29 era a sua data original”.
“Pois
é, foram uns amigos meus que me deram esta passagem. Eles temiam que eu
assistisse o jogo. Mas isto foi no tempo que se acreditava que eu era
pé frio. Resolvi adiar por dois dias e assistir o jogo aqui no Brasil”.
“Pé o que?”
“Pé frio. É um termo brasileiro. Azarado. Sem sorte”.
A mulher fingiu ter entendido.
“Se
este é o caso, a boa noticia é que o nosso voo aterrisa as 6:00 horas
da manhã no Aeroporto Internacional de Miami. O senhor terá ainda tempo
mais do que suficiente de assistir o jogo em algum local de Miami. Logo,
não haverá problema algum”.
Aquela
mulher estava realmente vivendo um conto de fadas, pensou Orozimbo
tentando manter-se calmo. Como ela poderia acreditar que hoje em dia
você consegue aterrissar na hora. E se este milagre acontece graças ao
bom Deus, tem ainda o privilégio de abandonar o aeroporto menos de duas
horas depois? Impossível com as medidas de segurança dos aeroportos
norte-americanos. Só se for o próprio Bush! Você tem que se despir, ser
ascultado por aquelas máquinas detectoras de metais, passar por
descargas de raio-x, entrar em filas quilométricas, sorrir e agir como
uma verdadeira ovelha a caminho do matadouro. Todo o passageiro é um
hoje um terrorista em potencial para as autoridades norte-americanas.
Mas ela não parecia ser a pessoa adequada a ele dirigir aquelas
observações de cunho estritamente pessoal. Logo, preferiu deixar de lado
os aspectos operacionais e ir direto ao âmago da questão.
“Primeiramente
eu gostaria de lhe dizer que eu gostaria de assistir o jogo no Brasil, e
não me consta que Miami esteja dentro de nossos limites. Aliás, aonde a
senhorita me sugere que eu deva assistir a este jogo, chegando em
Miami? Na casa de sua avó? Ou quem sabe a senhorita tenha outra
sugestão, tipo na embaixada do Iraque?”
Ela se manteve calada.
“Eu
quero assistir este jogo aqui! Meu voô foi remarcado para o dia
primeiro. Paguei por isto, o que me pediram. Vocês naquela oportunidade
disseram que haviam vagas e selamos a mudança. Creio que deveriam honrar
o contrato que fizeram comigo. Ou estou enganado?”
“Infelizmente não é nossa culpa…”
“E
de quem é? Minha? Do Saddam Husseim? Do Osama Bin Laden? Minha senhora
vamos falar sério. Algo aconteceu para que me colocassem de volta no dia
29. Vamos e venhamos. Pela primeira vez na vida seja sincera.”
“O senhor não precisa perder a calma”.
“Muito
pelo contrário. Eu não estou perdendo a calma. Estou apenas perdendo a
oportunidade de ver o Brasil de ser Pentacampeão do mundo. E é senhorita
é que está criando esta possibilidade. Pode entender a diferença?”
”Absolutamente. Estamos tentando resolver o seu problema...
“Meu
problema? Eu não tenho problema algum. Tenho um ticket para o dia
primeiro e vou embarcar. Se há um problema, este problema é da American.
E a senhora está tentando resolver o problema de sua empresa, não de
minha vida”.
“Com certeza, mas estamos com problema em uma das aeronaves e assim tivemos que suprir um de nossos vôos”.
“Não simplesmente um de seus voôs. Mais especificamente apenas o meu voô. Estarei correto?”
“Pode se dizer que sim...”
“Porque
não o voô do dia 29? Porque logo o meu? Será que aí na American ainda
acreditam que eu seja pé frio? Vocês não viram a bola desviar no bico da
chuteira do belga?”
“Senhor Reliquias..”.
“E a encaçapada que o Ronaldinho deu no ângulo do goleiro inglês?
“Senhor Reliquias...”
“E
o gol de bico do Ronaldinho contra a Turquia? Vocês acham que foi obra
apenas obra da imaginação fértil dos meninos? Vocês acreditam que eu não
tenha vindo nada a ter com estas mudanças?”
O cara tinha desvairos mentais, pensou a atendente.
“Senhor Reliquias. Por favor. Como lhe disse, podemos marcá-lo para depois do dia oito se assim o senhor desejar.”
Ela parecia ter a objetividade e a rapidez de uma centopéia manca.
“Dia
oito? E os compromissos que tenho ai no seu país, como farei? As
reservas de hotel os tickets da Disneyworld? E a semana que terei que
passar em um hotel daqui de São Paulo? Quem os paga? Quem? Quem?”
Cristina
assumiu o comando telefônico pois sentiu que dali para frente o papo
tenderia a escorrer pelo ralo e depois de muito disse, não disse, topou
mesmo ir no dia 29. Não havia outro jeito. Era ir ou não ir. Agora era
torcer para o avião não atrasar, a alfândega não estar repleta e não
acharem o Orozimbo com cara de terrorista. O que, com a sorte dele, não
era uma possibilidade impossível de ocorrer.
“Você falou, falou e acabou fazendo exatamente o que a mulher da American queria.”
“Lógico.
Tudo culpa sua. Eles deixaram recado aqui terça-feira de manhã. Eu lhe
avisei e você só ligou agora na quarta depois do almoço. Se tivéssemos
falado com eles na terça, talvez estivéssemos no avião do dia primeiro.
Mas você não fez caso e agora seremos obrigados a ir dia 29. Como sempre
é você que faz a cagada, Oró”.
Depois
de 25 anos de casado Orozimbo aprendera que nunca tinha razão. Mesmo
agora que fazia com que as coisas acontecessem em uma Copa do Mundo nos
conchinchins do final do mundo, sua mulher não acreditava nele. Até o
Ronaldinho dando bico, e sua reputação continuava a mesma. A American
Airlines, uma companhia falida, possuía mais credibilidade que ele
próprio. E assim sendo, recolheu-se a sua insignificância matrimonial.
Não seria a primeira e com certeza não seria a última também.
II
No
dia 29, o voô saiu com um atraso de quase uma hora e completamente
lotado. Gente saíndo pelo ladrão. Todos, ou asiáticos, norte-americanos e
argentinos. Poucos brasileiros. E não se poderia esperar ser de outra
forma, afinal qual brasileiro iria viajar numa noite como aquelas com
chances de perder a transmissão do jogo final da Copa na manhã seguinte?
Apenas um idiota como o Orozimbo e mais três dúzias de argentinos, que
estavam loucos para esquecer que eram os brasileiros e não eles, que
entrariam em poucas horas em campo para enfrentar a Alemanha em
Yokohama.
A
comida para variar estava péssima, o atendimento superficial e o avião
jogou mais que prato de gelatina na mão de bêbado. Mas além das malas
não chegarem com a rapidez que se esperava, Orozimbo teve que entrar
naquela fila dos pobres coitados que tem que tirar o sapato, as meias e
praticamente se despir à frente de uma gorda escalafobetica sedenta para
achar qualquer metalzinho que pudesse incriminá-lo. Enfim, o calvário
de se passar por um aeroporto norte-americano e não ser nascido no
Texas. E quando tudo parecia estar resolvido, eis que um dos
funcionários do serviço de segurança do aeroporto de Miami resolveu
encrencar com sua peteca.
“What is this?” (O que é isto)
“Peteca.” -
respondeu prontamente Orozimbo, como se aquela terminologia fosse de
fácil compreensão por parte daquela autoridade nascida em Oregon e
criada em Iowa, onde uma peteca parecia mais um objeto terrorista do que
propriamente a peça de um jogo idiota muito utilizada pela colônia
mineira.
Mas a pobre da peteca tamborilava entre as mãos dos dois policiais. Olhavam-na por todos os seus ângulos.
“Pitica?”
“More or less. Peteca. To play. Play. Did you understand?” (Mais ou menos. Peteca. Para jogar. Jogar. Você entendeu?)
“To play? How you can play that thing?” (Para jogar? Como você pode jogar com esta coisa?)
“Exactly what you are doing now”. (Exatamente o que vocês dois estão fazendo neste momento).
A
discussão se tornou ainda maior quando uma crioula do estado de New
Jersey se aproximou. Ela conhecia bastante bem aquele artefato, pois
havia trabalhado seus últimos cinco anos no serviço de segurança do
aeroporto Kennedy. E uma turma clandestina de uma tal de Governador
Valadares, sempre trazia aqueles artefatos com eles.
“Are you from Governador Valadares?” (Vocês são de Governador Valadares?) - perguntou
na lata com aquela delicadeza própria da autoridade norte-americana de
funcionários de segurança, que acredita estar a frente de mais um
clandestino latino.
“No, Governador Valadares. Me from Rio de Janeiro. She from Recife. This is to play. Did you understand?”
Eles
pareceram ter mais fé em Cristina. Mas se recusaram a liberar a peteca.
Era a peteca ou a final da Copa. Quando já pareciam liberadas a
goiabada e o queijo catupiry foram descobertos...
Felizmente só estes três ítens vieram a ser apreendidos.
"Decidi. Vamos perder nossa conexão para Orlando. Vamos pernoitar aqui em Miami".
“Só você Orozimbo, para trazer uma peteca para Miami. Com quem você pensa que iria jogar? Como o Mickey Mouse?”
Orozimbo se manteve calado. Cristina estava possessa. Viajar com o Orozimbo, era pior do que com duas crianças.
“Não vamos entregar nossas malas. Vamos sair com elas. Temos que achar alguém. Já deve estar rolando o primeiro tempo. Olha aquele crioulo ali”
- comentou Orozimbo, já no hall do aeroporto, com um carro cheio de
malas à sua frente, apontando para um negro uniformizado, magro e alto,
com a cabeça coberta de trancinhas.
“Pergunta a ele Cristina, se ele sabe quanto está o jogo”.
“Porque sempre sou eu?” - perguntou ela levando as mãos as cadeiras.“
“Porque um cristão tem que ser a vitima para carregar suas pesadas malas. E quem sabe ele esteja acompanhando o jôgo”.
Cristina o olhou de esguelha. Aquele era o primeiro aviso.
“E
como você sabe se aquele cara tem alguma idéia de quanto está o jogo?
Para mim ele parece estar mais ligado a um reggae do que em futebol”.
“Pelo
menos é crioulo. Existe alguma chance. Branco nem pensar. Vão imaginar
que estamos falando de Hokey no gelo. Pergunte a ele. Vai ser dificil se
achar um outro carregador para estas SUAS malas”.
Cristina se aproximou do cara meio a contragosto, porém sorridente como sempre, perguntou em inglês.
”O senhor sabe quanto está o jogo?”
O cara olhou para a Cristina como se ela estivesse aportado de Marte e com um sotaque jamaicano retrucou em forma de pergunta.
“Que jogo?”
”O da Copa do Mundo” - tentou pacientemente Cristina mais uma vez.
”Que Copa do Mundo?”
Agora
ela tinha plena convicção que eles realmente haviam chegado aos Estados
Unidos. O país virado para dentro. Uma Copa do Mundo estava sendo
disputada e aquele bucéfalo não tinha a menor noção. Aliás, por sua
expressão, Cristina diria que sua próxima pergunta poderia ser. “Que mundo?”
“Não importa. Mas rrecisamos de seus serviços”.
Achou melhor ir ao encontro de seu marido. Ciente do ocorrido, Orozimbo tomou a decisão das decisões.
“Vamos arrumar um taxi e correr para algum hotel aqui perto”.
“Porque não vamos ao Delano? Afinal seus amigos estão pagando”.
“Porque o Delano fica longe para burro. Me disseram que está localizado em frente a praia. South Beach”
“Mas pelo menos deve ser animado”.
“Não, se chegarmos depois que o jogo acabar”.
“Não
exagere. Não tenho culpa se você trocou a passagem e resolveu trazer
sem meu conhecimento peteca, goiabada e queijo catupity. Vamos ao Delano
e está resolvido. Táxi!”
Se
há uma coisa que você não deve fazer quando está correndo contra o
tempo é discordar de sua esposa. Esposas tem aquele sexto sentido. “Vamos pela escada” Aí você opta pelo elevador e se estrepa. “Não tome Coca-Cola”. Você desobedece e se estabaca da escada. “Ligue para American” Aí você não liga e as reservas terminam.
Enfim, contrariar esposa é o mesmo que pisar no calo de um bruxo. Você acaba pagando muito caro.
III
“Hotel Delano, please!”
“Brasileiro?” - perguntou o chofer de táxi de forma instantânea.
“Deu para sacar que eu era brasileiro, só pelo please?” - perguntou Orozimbo atônito com tamanho senso de observação.
“Não. Pelo número e o peso das malas”.
Para
uma pergunta idiota nada melhor que uma resposta não menos idiota. Mas
pelo menos ele deveria saber alguma coisa sobre o placar. E isto é o que
mais o interessava no momento. Afinal era brasileiro.
“Você sabe quanto está o jogo?”
“Não
sei e não quero nem saber. Sou daqueles que quando estou em casa, ligo a
televisão e vou para o outro quarto. Quando o cucaracho da Univision,
grita gol, corro para ver. Não tenho mais coração para assistir jogos da
seleção brasileira em Copas do Mundo. Sou do tempo do Garrincha e do
Pelé. Do tempo em que a gente ia para o estádio dando gargalhada, já
imaginando de quanto seria o placar. Agora com Zagalo, Parreira, Felipão
e companhia, prefiro dar uma de morto”.
“Eu não aguentaria. Passei também anos sem ver os jogos da seleção”.
“Coração?”
“Não, pé frio mesmo”.
O
velho o olhou pelo espelho retrovisor. Coração era coisa que poderia se
tratar. Pé frio não. Mas pelo sim e pelo não, alertou ao passageiro.
“Posso apenas lhe garantir que o Brasil ainda não fez nenhum
gol. Se fizer, minha patroa me chama imediatamente no celular. Logo, ou
estamos perdendo ou empatando em zero a zero”.
Aquilo era reconfortante de saber. Orozimbo consultou o relógio.
Devia estar no meio do primeiro tempo. Se não houvesse trânsito,
chegariam ao Delano com cinco ou dez minutos da segunda etapa. Melhor do
que nada.
“O que o senhor acha?” - perguntou o taxista, puxando conversa.
“Sobre o que?””
“Do jogo, é lógico”.
“Acho
que dá Brasil. Mas creio que vai ser no final uma guerra entre
goleiros. De um lado o Muro de Berlim e de outro o São Marcos nos
salvando das bobeiras do Lúcio e das irresponsabilidades do Edmilson”.
Foi o Orozimbo acabar de falar e o telefone tocou. O motorista quase perde a direção. Quase a largou e gritou.
“Fizemos um, fizemos um”. - E apertando o botão de recebimento de seu aparelho o levou ao ouvido. - “Elvira, minha cocadinha branca foi de quem? Do Ronaldo ou do Rivaldo?”. - Sua fisionomia mudou nos segundos seguintes. - “Na
trave? Sei... E você sua pata choca me chama para dizer que o Kleberson
carimbou a trave da intermediária? Escute aqui Elvira, trave não é gol,
sua dromedaria! Quase bati com o carro por causa de uma bola no
travessão?. O que você quer, mulher? Me matar do coração? Receber o
seguro e quitar a casa?”
Por
segundos ele se manteve calado, mas espumava perdido no mais alto
estágio de sua indignação de ter dado vazão, as suas mais íntimas
alegrias, inutilmente. Mas como Orozimbo, o taxista tinha plena
consciência que discutir com esposa era sinônimo de uma noite mal
dormida no sofá.
“Ok…,
ok… desculpe meu bem. Sei que você está fazendo um favor. Ok... sei que
Portugal já foi desclassificado?... Sei de tudo. Mas dá pelo menos para
você me dizer quanto está o jogo?
Os
segundos se passaram e dentro daquele carro a carga de ansiedade se
tornou sufocante. O coração de Orozimbo ia de um lado ao outro do
peito.
“Zero
a Zero ainda. E o Ronaldinho já perdeu duas em frente ao goleiro? Meu
Deus, o que? Não desliga. Não desliga. Deixa eu escutar, pelo amor de
Cristo. Vai... Vai... Puta que Pariu!”
E
olhando para Orozimbo e Cristina que estávamos no banco de trás, loucos
para lhe arrancar aquele telefone do ouvido, comentou.
“Desculpe
o português, mas o Ronaldo chutou a queima roupa da marca do penalty e o
tal do Khan defendeu com os pés! O cara é um monstro. Uma muralha...
Não... Não estou falando com você. Estou falando com os passageiros meu
bem. Sei... sei... Querida vou desligar. Mas lembre-se só me chame se o
Brasil fizer gol. Não vale na trave ou antes de cobrar o penalty. Só
depois. Entendeu, meu amor?”
Pelo jeito ela tinha entendido, pois, ele desligou.
“Minha esposa é portuguesa...”
Devia ser a forma educada de dizer tratar/se de um toupeira, pensou Cristina
“Parece que estamos jogando bem. Pelo menos isto…” - comentou Orozimbo, tentando arrancar mais alguma informação que saciasse, pelo menos que momentaneamente, sua inquietude.
“Não
tenho a menor ideia. A Elvira não entende patavina de futebol, é mÍope
qual um chimpanzé e se recusa a usar óculos por pura vaidade. O senhor
sabe. Mulheres...”
Por
puras razões de segurança pessoal, Orozimbo preferiu não concordar com a
assertiva do chofer que apresentou-se a seguir, como já fosse um
conhecido de longa data.
“Icaray dos Santos, para o que der e vier?”
Orozimbo
achava que não iria dar. O cara não dirigia. Se arrastava. Parava em
todo o sinal de Stop e olhava para todos os lados com o trânsito vazio.
Ver o jogo, estava parecendo uma probabilidade cada vez mais remota.
“Mas se não levamos um gol ainda, temos chance. Quanto tempo você acha que precisamos mais, para chegar ao hotel?”
“De
doze a quinze minutos. Depende de quando chegarmos a South Miami Beach.
A esta hora creio que não haverá muito trânsito por lá. Mas nunca se
sabe”.
“Puxa vida, não dá para o senhor acelerar um pouquinho?”
Cristina encrespou-se.
“Deixa o homem dirigir. Estamos atrasados por única e exclusiva culpa sua. Quem mandou trazer peteca e goiabada?”
O
telefone voltou a tocar, e o carro quase se chocou com o da frente no
pedágio. O Icaray se esqueceu de frear, levou as mãos a cabeça e
consequentemente abandonou o volante e todos ficaram a centímetros do
parachoque da Mercedes à frente.
“Gol do Brasil, gol do Brasil”. Gritava ele apoplético, sem atender ao telefone. - “Meu Deus santíssimo, muito obrigado!”
“Porque você não atende para confirmar?” - perguntou Orozimbo, agora temente pela própria vida.
”Porque se for a Elvira me dizendo outra bobagem eu juro que estrangulo aquela vadia”.
E ficar na dúvida? Aquilo não pareceu uma boa idéia para o Orozimbo. Tão ansioso se encontrava, que não pensou duas vezes. Ao tilintar seguinte se apossou do celular do Icaray, sem o mesmo dar permissão para tal.
”Sim”. - respondeu ao chamado.
O motorista o olhou surpreso, mas agora tinha que achar as moedinhas. Mas surpresa estava a voz do outro lado ao perguntar.
“Quem é o senhor? Aonde está o Icaray?”
“Dona Elvira sou o passageiro. O senhor Icaray, está ocupando
pagando o pedágio e me pediu para atender e perguntar a senhora de quem
foi o gol?”
“Ninguém fez gol. Acabou o primeiro tempo. Me passa o Icaray”.
Elvira era evidentemente uma toupeira, pensou Orozimbo, passando as mãos do taxista o telefone.
“Não foi gol e ela quer falar com o senhor”.
Icaray
deu uma porrada com os dois punhos eu seu volante. Suas mandímbulas
tremelicavam de raiva. Como, aquela besta da Elvira o podia chamar sem
que houvesse sido gol? O que ela queria? Receber seu seguro mais cedo?
Engoliu o fel do desrespeito à raça humana, principalmente a lusitana, e
olhando para trás, deixou claro o que sentia no fundo de seu peito
dilacerado.
“Eu mato esta mulher. Ela quer me matar do coração. E vai conseguir.” - respirando fundo ele levou o aparelho a seu ouvido e já mais calmo atendeu com clareza.
- “Sim Elvira... Não nada disso... De maneira alguma eu disse que a
mataria. Você ouviu mal... O que você quer querida? O que?... Repita...
Que traga pão? Você quase me mata do coração para pedir que eu não deixe
de passar na padaria?” - Se manteve calado por segundos. - “Escute
aqui, você enloqueceu mulher? Ou está querendo que eu empacote de uma
vez, para embolsar o seguro de vida? Desliga e só me liga de volta em
caso de gol”.
Mas o Icaray não conseguia se desvencilhar do telefone. A Elvira parecia ser realmente dose. Orozimbo olhou para a Cristina e antes que pudesse dizer alguma coisa ela deixou claro sua posição.
Mas o Icaray não conseguia se desvencilhar do telefone. A Elvira parecia ser realmente dose. Orozimbo olhou para a Cristina e antes que pudesse dizer alguma coisa ela deixou claro sua posição.
“Tudo
culpa sua. Se tivesse ligado para a American como eu lhe falei, isto
não estaria acontecendo. Tudo culpa sua. Peteca, goiabada, queijo
catupiry...O que você pensa que os Estados Unidos é? Pindamonhangaba?”
Discutir
era a última coisa que Orozimbo queria naquele momento. Ele ansiava por
uma televisão e queria chegar até uma delas antes que fosse tarde. O
pedágio vou vencido.
“Elvira
eu vou levar o pão. Pode deixar que não vou esquecer... ontem não é
hoje querida... Vou levar... Sim... Não se preocupe que não vou me
esquecer... mas por favor preste atenção. Está me ouvindo?” - por segundos esperou por uma resposta. - “Bom. Você gosta de sua casa, de nosso filho e de nossa vida, não?” - nova pausa. - “É melhor que aquela que você tinha em trás-os-Montes, não é?” - esperou mais alguns segundos diligentemente. - “Ótimo. Melhor também daquela que moramos em Bento Ribeiro, antes de nos mudarmos para aqui, você não acha? - os segundos de espera foram repetidos como da vez anterior. - “Pois
bem, se você preza tudo isto e também a sua vida, por favor, NÃO ME
LIGUE A NÃO SER QUE O BRASIL FAÇA UM GOL! BRAZIL, NÃO ALEMANHA OU BOLA
NA TRAVE. – e diminuindo o teor de ferocidade em sua voz, complementou de forma suave – “Entendido? Agora vá para a frente da televisão e assista ao jogo bonitinha. Ti amo”.
E
dizendo isto, desligou o aparelho jogando-o no assento ao lado. Era uma
maneira muito estranha de amar, pensou Cristina penalizada pela
situação de Elvira, uma mulher objeto. Todos os homens eram iguais, Não
valiam nada. Egoístas.
Era
a vez do Orozimbo respirar fundo. Ele tinha que me manter calmo para
não sobrar para ele. Afinal o dia estava lindo, Miami estava linda, mas
se não chegasse a tempo à frente de uma televisão poderia ter um troço, e
certamente a Elvira iria ficar viúva. Ele mesmo se encarregaria deste
detalhe.
IV
O
rapaz da recepção do Delano, uma flor na mais fidedigna expressão da
palavra, sentiu a aflição futebolística do Orozimbo e mesmo o achando um
vândalo de imprevisíveis proporções, apontou aonde havia uma televisão
ligada. Seu movimento de mão não deixou o menor resquício de dúvida,
qual era as sua opção sexual. E Orozimbo, embora tivesse dentro do sexo
que mais agradava a Pierre, não parecia estar enquadrado dentro de suas
perspectivas. Era velho, previsível e gostava de esportes brutos. Um
lixo!
Era
no bar, a poucos metros dali, que a televisão estava ligada. Orozimbo
deixou Cristina e as malas, garantindo a flor do recepcionista, que
voltaria após o termino do jogo, para cumprir com o restante das
formalidades do check in e pegar as chaves. Saiu qual um leopardo faminto a caça de sua presa, o televisor.
Cristina
não o seguiu, a principio, pois, estava preocupada com o destino de
suas malas. Afinal estavam em Miami, cuja diferença para o Rio é apenas o
idioma. Aqui se falava espanhol.
O jogo ainda estava zero a zero. Minutos depois Cristina chegou com cara de poucos amigos, para juntar-se a ele.
“Você me deixa lá plantada na recepção que nem um poste”.
“Benzinho, o jogo está comendo solto. Está ainda zero a zero..”.
“Logo, não perdemos nada”.
Aquele era o típico raciocínio de uma mulher.
“Você notou quanto deu de gorjeta para o tal do Icaray?”
“Notei, mas não quis esperar o troco. Vamos gastar uma fábula por
esta sua idéia de ficar aqui no Delano hoje a noite e você está ainda
preocupada com um troco de oito dolares que deixei para um pobre coitado
de Bento Ribeiro que é casado com uma anta miope e que escuta jogo de
final de Copa do mundo por telefone?”
“Ué, pelo que me consta, Bento Ribeiro é a terra do Ronaldo”.
“Mas o Ronaldo deu certo. O Icaray não!”
O
bar estava superlotado e vazando estrangeiros por todos os lados.
Todavia, a exceção de meia duzia de alemães e dois argentinos, todos os
demais pareciam estar torcendo pelo Brasil. A Alemanha é a Argentina da
Europa. Ninguém consegue suportar.
“Estamos dominando. Poderiamos já estar ganhando de três se não fosse este filho de uma moreia”. Comentou um moreninho ao ver o close dado no goleiro alemão.
O
rapazinho notara de cara que Orozimbo e Cristina deveriam ser
brasileiros. Talvez pela camisa do selecionado brasileiro que ele
teimara em usar durante a viagem, mesmo sendo Cristina terminantemente
contra.
“Meu medo é, quem não faz leva!” - respondeu de forma polida Orozimbo.
“Vira esta boca para lá! Quer dar uma de pé frio?” - comentou o guri fazendo o sinal da cruz, por três vezes consecutivas.
Aí
o tal do Jeremias, um mal encarado jogador da Alemanha. que parecia ter
escapado de Dachau, deu um peixinho que o Edimilson salvou
milagrosamente com os pés. Aquela bola tinha endereço certo. Orozimbo
cobriu seu rosto com as mãos e por um minuto invejou o Icaray. Mas pode
ouvir, o comentário desairoso do baiano para sua companheira
desenxavida.
“Depois que este cara chegou, as coisas começaram a desandar. Tá com pinta de pé frio!”
Cristina que também não deixara de escutar, imediatamente ordenou.
“Acho melhor irmos para o quarto”.
“Eu já disse a você que estou totalmente curado”.
“Mas pode ter tido uma recaída com a pressurização do avião. Vamos subir. Eu já tenho as chaves”.
Orozimbo
fingiu não ter escutado. Dali ninguém o iria tirar. Mas onde estavam
aquelas vozes, que anteriormente lhe haviam alertado o que iria
acontecer? Consultou seu celular. Estava ligado. E tinha recepção. Logo,
a voz poderia ser ouvida a qualquer momento.
O
coração de todos veio a boca logo a seguir. A meia dúzia de gatos
pingados alemães pularam de suas cadeiras. Falta na entrada da área
brasileira. O anão do número sete corre para a bola e chuta. A bola
passa pela barreira, Marcos a espalma com a mão esquerda e ela beija o
poste. Os alemães foram a loucura. São Marcos! São Marcos, o Brasil todo
deve ter gritado, pensou o Orozimbo tendo na cabeça a consciência que
algo teria que ser feito antes que fosse tarde.
“Eu acho melhor subirmos” . - comentou Cristina em voz baixa. Era o segundo aviso.
“Eu também acho”. - completou o petulante guri demonstrando que havia ouvido.
“Cale a boca seu filhotre de babaçu!” - se tornou incisiva, Cristina.
Afinal, o Orozimbo podia ser pé frio, mas o problema era dela. De mais ninguém.
A televisão deu um close no Ronaldinho que suava aos borbotões. O italiano a frente comentou.
“Ronaldo ha fatto un gol alla Romario di quelli che fa lui di solito”.
Ele
deveria estar se referindo ao gol de bico de chuteira contra a Turquia,
que o Ronaldo havia feito, dentro do feitio Romário, na partida
anterior. Aquela que classificara o Brasil para a final que agora
jogava. O chamado gol do contrapé do goleiro. Pedido sobre medida pelo
Orozimbo e aceito de bom grado pela voz, a que tinha pai e parecia até
ali a mais comportada das duas. Mas o que isto tinha a ver com aquele
jogo? Será que tínhamos aqui uma versão calabresa da Elvira do Icaray? O
bico fora na verdade o detalhe da sacana da voz, que não queria apenas
que o Brasil ganhasse naquela oportunidade. Ele queria que os otomanos
nunca se esquecessem das cruzadas. Queria que a derrota viesse em um
lance desmoralizante. Por alguma razão aquela voz queria provar algo aos
turcos. E na verdade conseguira seu intento, como o fisera contra os
gregos e os britânicos.
Os
minutos passavam e o jogo se mostrava truncado. A Alemanha querendo
levar a partida visivelmente para a prorrogação e consequentemente para
os penaltys e o Brasil ansiando por uma vitoria no tempo normal, mas não
se abrindo, de forma conveniente, para conquista-la. Só um lance de
gênio poderia mudar o cenário daquela partida. Um lance de gênio ou uma
intervenção de uma delas. Mas as ditas cujas mantinham-se mudas.
Porque?
V
O
compositor Tim Maia disse uma vez em linguagem douta com bastante
propriedade, que o Brasil não dá certo porque aqui prostituta se
apaixona, cafetão tem ciúme e traficante se vicia. E isto era uma
verdade. E no caso presente até voz se silenciava na hora H. Todavia, o
criador ter uma preferência ecológica em detrimento de uma
antropológica, como era pregado na piada; “Vocês vão ver o povinho que vou colocar lá”. Para Orozimbo, um exagero. Para Cristina uma realidade.
E
a prova disto é que em qualquer mundial, sempre haverá um sopro divino
favorecendo o selecionado brasileiro. Este é o inequívoco destino desta
nação futebolística, fadada a inflação, a desordem, a violência urbana e
as sucessivas más administrações. Uma nação obscurantista em termos
políticos, genocída em termos sociais e de uma ambivalência impossível
de ser descrita. Mas na hora H, aquela que realmente decide, alguém lá
de cima, sempre salva a pátria em se tratando de futebol, usando o jogo
de cintura naquele jeitinho bem brasileiro de consertar situações que
para outros não tem o mínimo conserto. É a inspiração divina que desce e
mostra o caminho. E assim o seria, na concepção de Orozimbo que
tornara-se um otimista e o foi.
“Se prepara que eu estou de volta”.
Era a voz. Soara nítida a seus ouvidos.
Orozimbo
chegou a tomar um susto. Ela estava de volta. Ele a poude ouvir
nitidamente. Cristina sentiu que algo aconteceu e arregalou seus olhos.
Seria a tal voz?
“Onde estava você? O jogo já está quase no seu final”. ‘ perguntou Orozimbo abrindo seu celular para disfarçar, que estivesse falando com alguém, que não aquela misteriosa voz.
“Tinha
umas tarefas para cumprir Ou você acha que não tenho obrigações, Não
sou filho do homem?... Ups daisys... Comigo, não há bem bom. Mas vamos
lá, chegou a hora de darmos um empurrãozinho. Está preparado? Como você
quer?”.
“Não importa como. O mais rápido possível, pois se a Alemanha faz um, se fecham em copas e vai tudo para a cucuia”.
O baianinho olhou de esguelha desconfiado. Com que aquela taquara estava conversando? Mas Orozimbo não estava preocupado com ele.
“Escolha a forma. Você não quer deixar de ser chamado de pé frio?
“Ok. Se o senhor me dá este direito. Faz este goleiro largar uma bola fácil.
“Você sempre escolhe pelo lado mais difícil...Olhe bem e deixe o seu celular ligado”.
Orozimbo trouxe de volta seus olhos para a televisão. Algo estaria por acontecer. Hora de se concentrar.
“Orozimbo o que o diábo desta voz lhe disse?”
Orozimbo não teve tempo de sequer responder.
“Diga a sua esposa que apreciamos o reconhecimento”.
Orozimbo gelou. Será? E olhando para o baianinho, vosciferou.
“Agora você vai ver quem é pé frio seu descamisado do pelourinho”.
Ronaldo
foi desarmado e caiu na entrada da área alemã. O mais normal seria ele
fingir que havia sido cutucado no tornozê-lo para forçar uma falta. Mas
aquela mesma voz vinda do além, bramiu de forma autoritária.
“Levanta Fenomeno que a bola é tua!”
O
Orozimbo ouviu e o Ronaldinho também. Não era a primeira vez. Mas
parecia que ninguém mais! O Fenômeno apoiou-se em suas mãos, e babando
sangue, de um pulo se pôs de pé. Partiu dali qual um chita esfomeada e
atropelou o desajeitado alemão que estava com a posse total do balão.
Desarmando-lhe, como só o Nilton Santos o saberia fazer, num toque sutil
e curto fez a bola chegar aos pés de Rivaldo. E este, com aquelas suas
pernas de garça real, equilibrou-se e com a ginga própria de seu corpo,
conseguiu se colocar em posição de chutar. Chutar ou tentar ir a diante?
Naquela fração de segundos, foi aquela mesma voz que decidiu por ele.
“Chuta no meio do gol que o polaco aceita!”
Orozimbo
novamente ouviu, O Ronaldo também e o Rivaldo que já ouvira em outra
oportunidade ainda assim exitou por alguns segundos. Chutar dali contra
uma muralha como era o Khan era desperdicio na certa!
- CHUTA !
Mas
o bom cabra da peste não pestanejou, ao segundo comando daquela
estranha voz, chutou. Da outra vez, contra a Bélgica, ouvira também,
obedecera e dera certo, com ajuda bico de chuteira adversária. E o fez.
Fora da área, sem muita base e no meio do gol, aonde o muro de Berlim se
encontrava. Khan sorriu, com aquela superioridade dos algozes. Ele
tinha certeza que aquela bola era sua e que morreria como tantas outras,
suavemente em seus braços. Ele nunca a poderia largar. Estava escrito
desde o tempo dos kaisers. Não daquela distância e não com aquela
ínfima potência. Sorriu com desprezo próprio dos crápulas, recalcando
no interior de seu peito largo, toda a tristeza de ser um ariano sem
graça com cara de chofer de caminhão.
Ai o Orozimbo ouviu pela terceira vez aquela mesma voz conclamando nosso fenômeno.
“Vai Ronaldo, que o choucrute vai largar”.
Orozimbo
ouviu, o Ronaldo ouviu, o Rivaldo também, pois, sorria desbragadamente,
antes da bola chegar a seu destino. Mas aquilo era impossível. Todos
poderiam largar aquela bola, menos o Ghegis Khan de Munique. Mas, o
Ronaldo obedeceu incontinente. Saiu correndo que nem um desvairado, com a
mesma velocidade que a bola e por um segundo, ambos, ele e a bola
pareciam estar ultrapassando a velocidade da luz. A bola aumentou
gradativamente sua velocidade e batendo no peito do Khan, fugiu do
controle de suas pegajosas mãos e foi dar nas chuteiras prateadas de
nosso Fenômeno. O alemão sai de gatinho, voa qual um Boeing 747, mas não
consegue chegar a tempo. Ripa na xulipa! Era o gol do Penta!
Orozimbo pulou e se abraçou com Cristina e em seu ouvido só conseguia dizer.
“Foi ELA. Foi o ELA. Eu ouvi. O Ronaldo e o Rivaldo também. Eles também ouviram. Que maravilha!”
“Mas quem é ela?”
“Confie em mim, foi ELA.
O
delirio foi geral. O Icaray, que Orozimbo descobriu no dia seguinte
lendo os jornais, que batera em uma árvore ao ouvir seu telefone tocar,
estava em êxtase hospitalar. O Romario pulou de alegria, na igreja onde
fora fazer uma promessa em caso de completar os mil goals. Só o Maradona
se manteve impassível em meio as seus baseados...
VI
O italiano a frente, uivava ao ver a imagem de Ronaldinho comemorando o gol.
“Porca miseria. Una gioia incontenible!”
- E quando a imagem da televisão mostrou Khan caído, vencido e
desconsolado olhando para os céus, exclamou, mirando os desolados
alemães presentes. - “Deficiente!”
Aquele pajaro de guantes, que o locutor da Univision
não cansava de enaltecer até aquele minuto do jogo, tinha finalmente
levado o peteleco do Rivaldo e a seguir com o sutil toque do Ronaldo. E o
muro ruiu, como o de Berlim. A malícia, a perspicácia e a malandragem
brasileiras, acabavam de escrever outra história épica para a lenda
futebolística mundial. Ronaldo ria, qual um menino que acabara de
tornar realidade o seu sonho.
“Mama mia come sono larghi I dentoni di Ronaldo”.
E
o Fenômeno ria com aquele seu dedinho da mão direita balançando ,
correu em direção do banco onde o Felipão o esperava para abraçá-lo.
Aqueles longos quatro anos de convulsões, contusões e recuperações
forçadas haviam finalmente abandonado a mente daquele moleque de Bento
Ribeiro, de dentes longos e joelhos operados. O fantasma estava vencido,
morto e definitivamente enterrado a sete palmos. O menino de ouro de
Bento Ribeiro estava de volta. Feliz, como nos seus tempos de pelada nos
terrenos baldios dos subúrbios cariocas. Do campo do São Cristóvão. Do
tempo que era respeitado como Ronaldo fenômeno. E este não era apenas
mais um gol. Era o seu sétimo gol em sua sétima partida. E o gol que
faria a Alemanha se abrir, ou se contentar com a medalha de prata. Nosso
menino do Rio, com aquele seu penteado ameaçador que estava fazendo as
mães brasileiras entrarem em apoplética loucura, jogara para o alto a
frieza Belga, destronara o o cinismo inglês, abafara o barbarismo turco e
agora estava enervando, os até então nervos de aço germânicos. Ronaldo
não tinha a facilidade verbal de Goethe, mas seus gols eram mais
poéticos que as linhas do grande pensador.
O
telefone celular de Orozimbo tocou. Quem seria? Era a outra voz, que
agora se utilizava do satélite para comunicar-se diretamente com o
estupefato Orozimbo. Mas antes que o mesmo pudesse dizer alguma coisa,
Orozimbo tratou de se desfazer em mesuras e agradecimentos.
“Ok. Quem quer que você seja. Você é grande. Eu ouvi”.
“Pois é, mas não fui eu”.
“Então você é outra voz?”
Cristina
a que tudo ouvia e temia que fosse a cafeína da Coca Cola destruíndo os
neurônios de seu marido, fez o sinal da cruz. era verdade. O Orozimbo
ouvia vozes.
“Agradeça a sua esposa pelo reconhecimento”.
Orozimbo iniciou uma exsécie de tremedeira. Será que ele estava falando com ELE?
“Pois se prepare, que vai ter mais. Mas desta vez sem subterfugios. Não aceito mais interferência dele”.
“Dele quem?”.
“Você sabe exatamente a quem estou me referindo”.
Um barulho estranho foi ouvido no telefone.
“Alô...alô...” - E voltando-se para a esposa, comentou. - “Desligou, mas garantiu que vamos fazer mais um”.
Cristina estava mesmo se tornando desconfiada a seu lado e lhe puxava issistentemente o braço.
“Oró, quem é esta voz? Uma vez vem do além, a outra via telefone. De a pouco irá mandar fax e e-mails...”
“Não
interesse quem seja. Sei apenas que esta tem pai e a outra não. Se está
dando certo, é o que interessa. Não me preocupo em saber de quem,
afinal até eu deixei até de ser pé frio. Tenho minhas suspeitas de quem
sejam, mas você não iria acreditar...”
“Tente”.
“A sem pai deve ser o capeta e acho que a outra é ELE”.
E Orozimbo apontou para o céu. E olhando para o baianinho que acabara de largar a magrela que estava a seu lado, exclamou. - “Quem é pé frio, seu baiano de merda? Espere mais alguns segundos e verá, o segundo?”
VII
Voeller,
o treinador choucrute, com aquele seu mesmo terno de cor de vômito,
trocou o polaco Klose pelo experiente mais claudicante Bierhoff e o
fugitivo de Dachau Jeremies, por um crioulo que mais parecia um touro e
que tinha até nome, Asamoah. Tudo isto na tentativa de tornar a Alemanha
mais ofensiva. O negão Asamoah entrou rangendo os dentes, qual um chefe
africano, mas a defesa brasileira permanecia firme qual um rocha e São
Marcos lá atrás, tinha hoje o seu dia de Oliver Khan.
“Quantos minutos faltam?” - perguntou Cristina sem prestar a atenção na tela da televisào.
“Uma eternidade”. - respondeu Orozimbo instintivamente, pois, era aquilo que parecia realmente para ele.
Ai
Kleberson pegou uma bola na direita, correu de cabeça erguida e divisou
a Rivaldo. Ouve uma quase imperceptível troca de olhares. Kleberson
lançou para Rivaldo e a voz foi ouvida.
“Deixa passar”.
Mas como deixar passar?
A
voz estava mais rouca, séria e completa destituída de humor. E não lhe
avisara nada, simplesmente ordenara com a superioridade daqueles que
nunca são contrariados.
Passar?
Como deixar passar pensou o Rivaldo com a àrea escancarada à sua
frente. O Tony Tornado recém entrado estava batido. Era só necessário
uma ginga de corpo. Mas em sua clarividencia de craque, não desobedeceu,
apesar ter notado também a diferença no timbre da voz. Levou o defensor
consigo e permitiu que a bola passasse por entre as suas pernas numa
deixada bíblica. Uma caneta. E a bola veio a dar nas chuteiras prateadas
do Ronaldinho, como um ima a estivesse atraindo. Nesta hora até o
poderoso Khan gemeu. Pressentiu o cheiro de cagada no ar. Ele já não
tinha mais aquela empáfia própria dos conquistadores hunos. Seus olhos
tremiam e suas mãos não se sentiam mais firmes. Khan agora tinha plena
convicção, que se os suíços eram exímios construtores de relógios, os
ingleses de impérios, os alemães de carros, os norte-americanos de
cachorro quentes e os japoneses de transistores, os brasileiros eram os
reis da bola.
“Chuta que ele aceita”.
E
o fenômeno não pestanejou. O balaço de Ronaldo foi certeiro e mortal,
sem chance para ele. Era o golpe de misericórdia na combalida Alemanha.
Era um gol de raiva. Um gol de placa! Nem Stalin teria feito melhor para
destruí-los. Um gol de quem havia lido e não gostado nada das últimas
duas manchetes do jornaleco espanhol Olé.
“Brasil a dois dias do fracasso”. E o do dia seguinte. “Vamos, Brasil! Como em 98!'”
Aquela
era a resposta de Rivaldo, de Ronaldo, de Orozimbo e das vozes, à
imprensa européia. Um gol de malícia, classe e muito dendê. E o menino
do Rio voltou a correr com aquele seu dedinho em pé que balançava. Que
agora dizia aos quase 70,000 expectadores presentes à aquele estádio. Eu não disse, eu não disse.
As
moscas pararam de voar. Os alemães iniciaram a sua retirada do bar. O
baianinho deu um nó na amígdala da magricela e o Brasil inteiro
acreditou que tudo é possível. Até a volta do Collor ou na honestidade
politica do Lula.
“Brasil Penta Campeão”. Gritou o locutor mexicano.
E num brado huno, Orozimbo acreditou que deixara de ser pé frio, e a todos ali no bar do Delano, bradou quem realmente era.
SOU PENTACAMPEÃO!
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