sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

NÃO ME DEIXE MAL, Ô PHILOMENA

Sentiu em resposta a seu convite, um olhar cítrico. Como podia alguém encarar um outro ser humano como se suas pupilas fossem limões? Ficou estupefato.

Desta vez com o fato de alguém, como ele, ainda ser capaz de usar o termo estupefato. Controlou sua vontade de rir. Ela poderia encarar como um deboche ante a sua negativa. Estupefato... Talvez fosse esta a razão que aquela menina não fosse com ele para a cama. Pertenciam a séculos distintos. Quem sabe a raças distintas. Pouco se importou. Estava bêbado e aos bêbados tudo é válido. Até mijar em suas próprias calças.

Instintivamente desceu seus olhos em direção a brarriguilha de sua bermuda. A coitadinha fez o mesmo, talvez imaginando ser ele um tarado. Seu membro continua lá, quieto, encolhido que nem uma couve-flor, embora minutos antes tivesse tido efêmeros instintos de tomar-se de uma barroca excitação. Tão logo, aquela colombina suburbana sentara-se a seu lado naquele balcão do bar.

Seria a fantasia dela de colombina? De deusa do mares do sul? Ou quem sabe o último pássaro do paraíso? Não saberia como definir. Isto também pouco o importava. Ela chegara, ele se excitara. Ela pedira uma vodka, ele se oferecera, imediatamente, para pagar-lhe o drinque. Ela sem agradecer recusou, ele a convidou para irem para a cama. Ela soltou aquele olhar cítrico, ele conferira o estado em que se encontrava sua bermuda. Felizmente não se mijara, como de outras oportunidades.

Era diabético e uma das coisas que atacam os diabéticos é aquela vontade eterna de mijar. Quando menos se espera vem aquela dor fininha e se um banheiro não estiver em seu raio visual de ação, o membro pinga, pinga, pinga até que jorra sem que você o possa controlar. Uma merda. Logo, ele um cara tão cônscio de sua aparência, tão vaidoso com as roupas que comprava.

- Eu me encanto, com o canto, deste recanto e por isto canto... – rima barata, mas fora o que melhor lhe veio a cabeça.

Levantou seus olhos e notou que ninguém lhe dera bola. Isaías enxugava um copo. Era o que todo barman fazia, quando nada tinha a fazer. A menina engolia de uma só vez o liquido transparente de seu copo. Era uma profissa. Só profissionais bebiam daquela forma. Se não o fosse, acabara de ser traída. Mulher quando se sente traída faz coisas muito estranhas. Adalgisa se masturbava. Carmem trancava-se no banheiro e chorava até não haverem mais lágrimas a escorrer. Gildinha emudecia. Norma agia qual uma pedra: mantinha-se imóvel e dura. Eleonora procurava o primeiro homem para dar. Gertrude cantava uma ária de Aída. Eneida lia a Iliada. Mas aquela parecia se contentar em beber. Talvez fosse apenas um alcoólatra. Uma profissa alcoólatra que acabara de voltar de algum baile de carnaval de mãos vazias. Perdera a noite.

- Isaias, coloca mais um para mim. Mas exagera...

Porque todo homem que trabalhava atrás de um balcão de bar tinha nome de profeta? No final da rua, no Mal Cheiro, o rapaz se chamava Moisés. Teria sido Moisés um profeta? Não tinha certeza. Sabia apenas que recebera os mandamentos em condições até hoje não muito bem explicadas. Matou seu patrão, abandonou o Egito levando com ele a sua tribo, abriu um rio, em condições igualmente não muito bem explicadas e morreu sem chegar a terra prometida. Uma terra prometida, mas sem petróleo. Pobre promessa. Viveu 120 anos e nunca conseguiu chegar a Israel. Não devia ter muito senso direcional. Ou bebia que nem ele.

- Me dê uma outra vodka - ordenou a menina, com uma voz rouca de tenor de ópera bufa.

Tinha decisão em seu pedido. Isaías obedeceu. Esta era a sua função, obedecer. Tinha que aturar bêbados, escutar suas histórias e no final lhes dar a conta. E depois de tudo, pegar um ônibus para o Méier. Não era um profeta. Era um santo.

Olhei para a suburbana. Ela tinha cara de suburbana, jeito de suburbana e bebia qual uma suburbana. Tinha vastos peitos, braços fortes e cílios postiços. Fumava e bebia e estes não pareciam ser seus únicos vícios. Suas mãos e seus pés eram maiores que a média. Perdera uma sandália e sua meia, que mais parecia uma rede de pescar, tinha dois furos aparentes. Suas unhas estavam pintadas de um vermelho quase escarlate. Algumas descascadas. Mas ela parecia não se importar. Agia qual Cleópatra. Só lhe faltava o Egito.

Não sabia o que o atraíra. Talvez a indiferença. Quem sabe aquela sua cor brasileira, café com leite. Mas para café, do que propriamente para leite. Talvez se sóbrio estivesse, não houvesse havido uma atração sequer. Ereção nem pensar. Mas num domingo de carnaval no Rio de Janeiro, duas coisas tinham que ficar claras: primeiro é impossível se estar sóbrio e segundo, todo peixe que caía na rede parecia apetitoso, principalmente a aquela hora da manhã.

- Me faça uma caricia, não tenha malicia, me deixa entrar...

Consultou seu relógio. Eram oito e quinze da manhã. A aquela hora da manhã ninguém o deixaria entrar. Não dormira. A zinha com certeza que também não e o Isaías muito menos. Na atual crise, os bares ali daquela área da zona sul se mantinham abertos, tentando faturar cada centavo que lhe caísse sobre o balcão. O Jóia não podia ser exceção. Ele era o ponto de concentração do bloco Suvaco de Cristo. Na verdade colocara a rua Faro no mapa. Uma rua pequenininha que ligava nada a porra nenhuma.  Que nem viaduto em cidade pequena do nordeste. Será que a menina estava a espera do desfile? Era cedo. No mínimo quatro horas para os primeiros foliões começassem a chegar. Foliões... será que alguém ainda usava aquele termo? Soava como estupefato. Antediluviano. Tudo produto de sua terminologia pré-histórica. Tinha pouco mais de quarenta, agia como tivesse sessenta e em aspecto parecia ter oitenta. Pelo menos naquela madrugada, em que fora colocado para fora de casa.

Está certo que a casa não era sua. Era de Adalgisa, que devia estar se masturbando. Mas quem mandou voltar de sua viagem antes da hora? Fora para a Bahia. Durante semanas lhe mostrara acintosamente os tickets aéreos e a reserva de hotel. E em menos de 48 horas, ficou atacada pela saudade e voltou. Voltou e deu com a Carmem de quatro sendo por ele possuída, na cama de sua avó. A cama e a avó eram de Adalgisa. E o pior vexou-se com a resposta que dera. Mas o que ela poderia esperar? Ele estava tendo com Carmem uma relação anal e ela lhe perguntara ao escancarar a porta o que estava eu fazendo. O que poderia responder: comendo o cu da Carmem!

Foi um Deus nos acuda. Carmem correu para o banheiro para debulhar-se em lágrimas, ciente agora que aquele não era o seu apartamento e sim da mulher que lhe sustentava. Adalgisa lhe sentou a frasqueira nos cornos e ele com as poucas peças que pode recolher desceu as escadas do prédio nu, em fuga desabalada. Imaginem uma mulher que ainda usava frasqueira se indignar com um coito anal. Há de se convir que o anus não era dela, mas a cama, o apartamento e o amante o eram. Talvez esta fosse a razão de sua ira.

Na rua, em um final de noite onde todos pareciam se divertir ele refugiou-se naquele bar. Não tinha um puto sequer no bolso, mas o Isaías, como todo homem com nome de profeta, era generoso. O conhecia e o serviria fiado. Mais tarde, com os ânimos apaziguados, ele faria as pazes com a Adalgisa, reaveria seus pertences e saldaria a divida. Se assim não o fosse, existia a Gildinha, que já devia ter lhe perdoado de sua traição com a prima mineira, a Eleonora. Quem sabe a Norma que aceitava qualquer desaforo. E gertrude, que de há muito não encenava uma ária...

Que culpa tinha ele, se as mulheres se encantavam com sua forma de ser. Mamãe passou açúcar em mim... Como não trabalhava tinha tempo de as cortejar... Será que existia gente que usava a palavra cortejar? Meu Deus. Ele estava parado no tempo e no espaço!

- Vou voltar, sei que ainda vou voltar, para o meu lugar... – será que a Adalgisa seria da mesma opinião? Dificilmente nas próximas 24 horas.

- Mais um Waldercy?

Ele olhou para o doce e impávido profeta.

- Se meu crédito ainda estiver bom.

Isaías serviu mais uma dose de whisky. Desta vez caprichada. O liquido dourado foi até o gogó daquele copo, que fazia parte de sua vida naquelas últimas oito horas. Com certeza os dois casais de paulistas sentado a mesa do fundo pagariam pela diferença. Foi isto que sentiu com a piscada de olho do velho companheiro de noites mal dormidas.

- Como alguém pode se chamar Waldercy?

A voz rouca lhe fez sentir quem fora a mentora daquele comentário.

Sentou-se melhor no banco e conseguiu ter uma melhor visão daquela que agora lhe dirigia a palavra. A profissa alcoólatra. Não valeria a pena perder tempo em explicar para aquela desmiolada que quando sua mãe de chama Dercy e seu pai Waldemar, é melhor se chamar Waldercy do que Dercywal.

- Porque Daniela? Você não gostou?

Os olhos da víbora tornaram-se incandescentes como os de Norma, quando tomou conhecimento que ele estourara com seu cheque especial.

- Quem lhe disse que me chamo Daniela?

Tratava-se de uma profissa, alcoólatra e completamente destituída de massa cefálica. Perfeita para a ocasião.

- Ninguém, para dizer a verdade. Porém, eu diria que toda suburbana metida a besta tem nome cafona. Nome de miss. Daniela, Monique, Adalgisa.

Ela o encarou no fundo dos olhos. O álcool já lhe tomara os sentidos. Porejava em sua testa e uma fina baba de saliva lhe escorria nas laterais de seus lábios, que agora pareciam dois borrões de um antigo vermelho. Ela não era feia. Não chegava a ser bonita. Resumindo, servia para o gasto. Mas era dona de trejeitos estranhos. Seu peito arfava, suas mandíbulas tremiam e seu nariz parecia iniciar aquele processo de expelir fogo. Talvez fosse um dragão.

- Suburbana é a vaca da tua mãe.

Era afiada na língua, só esperava que o fosse também na cama. Era degluti-la e colocá-la em um taxi.

- Por incrível que pareça, você acertou. Minha mãe era uma ruminante que morava em Ramos. Logo, suburbana que nem você. Tu é do ramal da Central ou da Leopoldina, ô Monique?

- Monique é o scambal, seu velho nojento. Moro aqui na Gávea. E tenho nome de pedra preciosa.

Devia fazer ponto na porta do Flamengo ou das Sendas e chamar-se Esmeralda.

- O papo está muito bom, mas tenho o que fazer. Entendi, que uma trepada nos próximos minutos está totalmente fora de cogitação?

Enfureceu-se. De pé, Daniela, Monique ou o nome pela qual atendesse parecia ser bem maior do que sentada e sua mão espalmada em direção a seu rosto, tinha a mesma forma e circunferência de uma raquete de frescobol. Como Bush, ele conseguiu se desviar daquela tabefe e esperou pelo segundo sapato. A suburba se equilibrou novamente, e agora mais perto tentou acertá-lo, desta feita, com a mão cerrada.

Quarenta anos de zona sul do Rio de Janeiro, equivalem a 150 anos de zona norte. Com um passo atrás baixando a cabeça, apoiando sua mão esquerda no banco que antes sentara, ele lançou sua perna rasa em um movimento rápido. Com um leve toque, fez a menina ir ao chão. Era o famoso rabo de arraia que tantas vezes o salvara no desfile do cordão do bola preta e o fizera famoso nas rodas de capoeira.

O baque foi firme e surdo. Qual uma melancia que rolara da mesa onde estava postada. Caída seus olhos se tornaram mais arregalados. Parecia não estar acreditando o que o destino lhe reservara. Estava bêbada, abandonada e no chão. Derrubada por um bêbado de bermuda descamisado, que mais parecia um pedinte na estação da central do Brasil.

Ela tentou se levantar, mas o índice etílico a impossibilitou de levar avante seu desejo. Sua expressão se tornou turva. Como se estivesse acabado de ter um choque anafilático.

Isaías, como todo bom samaritano, veio em seu auxílio. Ele conhecia a noite e os freqüentadores de seu bar. Existiam gente de bom caráter. Gente de mal caráter e o Waldercy, que não era dotado de caráter algum. Waldercy, era gente boa, mas quando bebia se excedia. Mas a menina não facilitara as coisas e ainda por cima era pesada. O pobre do Isaías franzino do jeito que desajeitado deste pequenininho, bem que tentou. Mas foi impossível. A mulher era forte e estava encharcada de álcool. E desta forma, ele foi ao chão. Dois corpos no assoalho frio e viscoso.

Os dois casais paulistas se levantaram. Não estavam acostumados a aquelas cenas de pugilato, bem tipo de cariocas. De fininho deixaram o recinto, sem antes jogar sobre a mesa algumas cédulas surradas. Recinto, nunca conseguira se afastar do seu linguajar de delegacia. Com certeza os indivíduos estavam a caminho de suas respectivas viaturas. Coisa de delega. Riu ao lembrar da cara do delegado Nicanor, quando o expulsou da corporação depois de tomar conhecimento que sua filha virgem e freqüentadora do Sacre Coeur de Marie, estava dele grávida.

Duas pessoas que passavam pela rua, diminuíram o ritmo de suas passadas para entender o que estava acontecendo naquele bar. Um mulher grande e um homem pequenos deitados no piso, um sobre o outro. Não conseguiam a chegar a um ponto comum. Coisa de carnaval, devem ter pensado, pois, seguiram, logo a seguir, o seu caminho.

Este é o grande retrato da zona sul do Rio de Janeiro. Eu tô na minha. Tu fica na tua. E assim estamos na nossa!

- Não me deixe mal ô Philomena, pois isto não vale nunca a pena, deixa de lado esta sua cena e ...

A suburba havia desmaiado e o pobre do Isaías não a conseguia içar. Por segundos, teve a nítida impressão de estar assistindo ao capitão Ahab tentando fazer o mesmo com Moby Dick.

Parou de cantarolar mas não voltou a se sentar. Muita água ainda haveria de rolar. Pegou o copo, olhou para aquele whisky que lhe deixava ver através. Nada viu. Bem que tentou. Fechou então os mesmos e engoliu o liquido de um só vez. Ele desceu mais morno que os anteriores e sua garganta agradeceu o gesto. Colocou o copo sobre a mesa e foi dar na rua.

- Não me deixe mal ô Esmeralda, pois isto pode derrubar a calda, e com isto molhar a sua fralda ...
Espreguiçou-se. Aquele seria um longo carnaval.

Renato Gameiro

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

BELINHA A FRATULENTA

Pirilo e Belinha eram casados há pouco tempo. Para ser preciso, há sete meses, quatro dias e pouco mais de 12 horas, levando em consideração a hora exata em que o Pirilo deu o sim. Belinha mantinha este números em sua cabeça e os update todos os dias. Quem diria! O velho Pirilo, finalmente, sossegando o facho…

Belinha Castenheda era magrinha, quase raquítica, abstinha-se de carnes, gorduras, carboidratos, qualquer coisa que tivesse sódio e salgados. Vegetariana por convicção tinha ainda verdadeira obsessão pela higiene bucal. Todos os dias ela escovava a língua após as refeições e a esterilizava pelo menos uma vez por mês. Trocava de escovas de dentes, de 15 em 15 dias, tal o uso que fazia delas e gastava 2,3% de seu salário em fios dentais e líquidos coloridos para gargarejo e matança de possíveis bactérias que escapassem ao poder da escova e ao criterioso crivo do fio dental.

“A boca é o maior foco de infecções” - dizia ela a suas amigas.

Belinha era tão Caxias, que quando ainda noivos, em mais de uma oportunidade esquecera de levar as camisinhas para o fim de semana na praia. Pirilo sofrera. Mas em compensação, nunca deixara para trás a escova de dentes, o fio dental, os três tipos de dentifrícios e o desodorante bucal. Nos restaurantes, entre a entrada e o prato principal, ela ia ao banheiro para escovar os dentes e antes da sobremesa, voltava para dar uma nova passada de fio dental. Detalhe e organização eram pontos fortes em sua personalidade. Tratava a vida como um teclado que tinha que ser minuciosamente dedilhado devido a sua rígida formação musical.

Pianista que começou os estudos no instrumento em sua cidade natal, Recife, com Waldemar de Almeida, ela já havia representado o Brasil no Concurso Internacional Frédéric Chopin e, por isso, recebera uma bolsa de estudos em Varsóvia, para completar sua formação. Foi, exatamente ali, que se tornou vegetariana, mais pelo alto custo dos alimentos e por causa das filas às portas dos açougues existentes na era comunista, do que, propriamente, pela necessidade de limpeza do organismo. De volta ao Brasil, dois anos depois, no entanto,  essa passou a ser sua meta. Tornou-se vegetariana.

O Pirilo, menino bonito da Tijuca, mantinha uma razoável higiene bucal, embora seu apreço por esse item não fosse tão espartano quanto o de sua jovem esposa. Em contrapartida, embora não aderisse ao vegetarianismo, cuidava demais da dieta e do corpo. Malhava de três a quatro horas por dia, após o trabalho, e corria cinco quilômetros muito cedo pela manhã, antes mesmo de pegar no batente. Era conhecido na Praça Saens Pena como, o maratonista. Não fumava, nunca colocara uma gota sequer de álcool na boca e era avesso a frituras. Gostava de vez em quando de uma carninha, mas tinha que ser na grelha sem óleo, com batatinha sequinha, quase esturricada. Bem ao gosto da Belinha. Um atleta em potencial.

Pirilo, ao contrário de Belinha, não era um erudito. Preferia o chope ao Chopin. A única mania que cultivava era o desenvolvimento do corpo e por isso mesmo, trabalhava como assessor da gerência de vendas em uma grande multinacional. Sua empresa vendia vitaminas que atrofiavam o cérebro e os testículos, mas que faziam os músculos masculinos saltarem das pernas e dos braços e tornavam os corpos femininos, masculinos. Entretanto, a diversidade de formação e gostos de maneira alguma tornara-se um impasse para que aquela relação prosperasse e se tornasse sólida. Nos fins de semana, os dois passeavam de mãos dadas, iam à praia, ao cinema, tomavam refrescos no mesmo canudinho  e dificilmente discutiam. Pareciam almas feitas uma para a outra, como Adão e Eva antes da maçã, ou mesmo a outra Eva e Juan Domingo Peron antes da primeira discussão a respeito de uma futura partilha de bens. Não havia ninguém em seu círculo de amizades que pudesse supor, que um dia eles, iriam se separar. E, o pior de tudo, num divórcio litigioso e mau cheiroso.

“O Pirilo? Meu Deus, parece cego pela Belinha. Chega até a ter nojo de mulher. Só fala da Belinha. É Belinha para aqui, é Belinha para acolá. Se tornou um verdadeiro babaca! Tem urticária só de pensar sacanagem!” - comentava indignado o Afrânio, seu antigo colega de farras nas noites cariocas e hoje seu superior imediato na empresa em que trabalhavam no centro da cidade.

“A Belinha mudou também da água para o vinho. Antes parecia até lésbica. Não se interessava por homem algum, só tinha partituras na cabeça e, sempre que era cortejada por alguém, tremia e pulava fora apavorada. Tinha medo de pênis como o diabo da cruz. Agora não fica duas horas sem trepar com o Pirilo. Parece uma gata ninfomaníaca. Olha como eles não conseguem ficar sem roçar um segundo sequer um no outro” - reclamou Miriam com dor de cotovelo.

Ela dava mais do que chuchu na serra, mas ainda mantinha-se solteira, enquanto aquela desenxabida de sua amiga arrumara um cara lindo e disputado como o Pirilo. Logo o Pirilo, que ela sempre desejou e nunca a possuiu.

“Eu acho que amor é pele. Esses dois têm o chamado da pele. Do cheiro, do sabor, do tato. Veja como não conseguem largar as mãos. Chega a ser doentio. Quando se beijam, juntam as amídalas. Elas dão um nó! Observe como ele está a toda hora levantando aquela franjinha que cai na cara dela. Que escrotidão. Logo o Pirilo, que era conhecido por bater em mulher. E ela não pára de cheirar o cangote dele. Que atração!” - esse foi o comentário do Arruda que, no verão, como a árvore homônima, ficava vermelho com listras escuras, principalmente quando era testemunha ocular das cenas românticas entre Belinha e Pirilo.

“Não sabia que você era epidemiologista” - contemporizou Rabelo tentando não demonstrar rancor. Logo o Rabelo, que tinha cabelo em todos os lugares e por isso nunca conseguira ir adiante em seus galanteios com a Belinha. Seu colóquio unilateral se transformou, numa incompatibilidade epidérmica.
Enfim, como qualquer relação perfeita e harmoniosa, tinha todos os amigos em volta torcendo contra. Era bom demais para se suportar. Chegava a dar caspa o simples fato de contemplar a felicidade daqueles dois.

“Perfeição demais, para mim, dá câncer” - sempre fora a teoria do Rabelo.

“Coisa tão certinha acaba em monotonia. Olha como ela está magrinha, alquebrada, melancólica como nas garras da tuberculose” - replicava Miriam.

“É tudo para inglês ver. Aposto como, na cama, é cada um para seu lado. Ela só pensa em asseio e ele em desenvolvimento muscular. Ela sonha com um piano, ele com um halteres. Não dou mais um mês para eles se separarem” - deixou claro o Arruda, com aquela certeza granítica de militar no poder.
“Cama? Ela não agüenta cinco minutos com o Pirilo. Ele a verga em duas” - voltou a opinar o Rabelo.

"Vocês disseram isto há mais de dois meses e eles ainda estão por aí inteirinhos e apaixonados”. - lembrou Miriam.

"Um halterofilista e uma pianista, como isso poderia dar certo?” - perguntou em voz alta, meneando a cabeça consternado, o Rabelo que de tão transtornado já estava falando sozinho.

“Existe tanta harmonia que, no dia em que esses dois resolverem brigar, vai ser uma só! E cada um para o seu lado” - vaticinou o Afrânio que tinha fama de ser um profeta, pois, um dia acertara o América contra o Flamengo em sua loteria esportiva.

Tanto a turma agourou que um dia a coisa aconteceu. Evidentemente, com um empurrãozinho do despeitado do Afrânio. Foi numa festa na casa do chefe do Pirilo, o Pereirinha, na Barra da Tijuca. Ou melhor, na mansão do Pereirinha, porque aquela casa era maior do que o estádio do Botafogo. Está bem que ser maior que o do Botafogo não era muita vantagem. Mas, com certeza, a mansão do Pereirinha regulava com as Laranjeiras. A princípio a Belinha não estava querendo ir. Torceu o narizinho afilado. Comer fora de casa era coisa que ela não gostava de fazer. Mas o Pirilo insistiu tanto que ela acabou cedendo. Afinal, não havia ainda aprendido a dizer não para o seu Fofó.

- Você sabe que sou vegetariana.

- Eu sei disso muito bem, meu bombom de coco-bingolê.

Ela adorava aquelas escorregadelas que o marido dava ao relembrar seus quitutes favoritos do tempo de férias de infância no Ceará. Porém a situação ainda lhe parecia nebulosa.

- Vou acabar não comendo nada e vão me chamar de antipática, de esnobe, até de desmancha-prazeres. Você sabe disso. É sempre assim. Lembra-se lá na casa do seu amigo Arruda?

- Esqueça o Arruda. Na casa do Dr. Pereira é diferente. O homem é podre de rico e a mulher dele também é magrinha. Deve haver umas chicórias, beterrabas e quem sabe até uma berinjela daquelas que você adora.

Os olhinhos de Belinha estavam dando voltas nas órbitas. Aquilo era tudo o que ela queria. Chicória, beterraba, berinjela, que maná! Tudo como em Varsóvia...

- Será que eles não têm pamonha, tapioca, humhumhumhum…

    Belinha vinha lá de cima do Brasil, já estava no Rio de Janeiro há mais de dez anos, mas nunca conseguira se afastar em forma definitiva dos hábitos alimentares de sua região. Quando via uma acerola, uma serigüela, um inhame-gudu ou um jerimum-paranapuçá, entrava em êxtase. Era melhor que sexo.

- Essas coisas eu não garanto, meu bombomzinho caramelado.

- Nãoimporta. Por você sou capaz de qualquer sacrifício, meu Fofó”.

- Obrigado, minha serigüela amazônica.

- Meu sorvete de gengibre.

- Minha baba-de-moça.

- Meu jerimum-paranapuçá.

E completaram a cena, juntando como sempre os narizes e se beijando qual esquimós. E assim foram, felizes e fagueiros para a Barra da Tijuca. A felicidade era tanta, que a sorte os seguia, e conseguiram passar pelo Vidigal, sem que uma bala perdida os encontrasse. Mas na festa, para o desespero da Belinha, não havia raízes, vegetais e muito menos produtos macrobióticos. A mulher do chefe do Pirilo podia até ter sido magra um dia. Hoje, porém, parecia mais um cubo. E as razões estavam sobre a mesa: carnes, frituras e molho para tudo que era lado. Belinha franziu o nariz, entortou os beiços e, olhando para seu jerimum que não parecia naquele momento tão paranapuçado, reclamou:

- Já senti que não vou ter o que comer.

- Desculpe, meu jasmim. Nunca poderia imaginar que, com uma mulher magra como a que tem o Pereira, não pudesse ter umas verduras na grelha ou um arrozinho integral.

- Você acha que ela é realmente magra, Fofó? Para mim, ela deve tomar remédios para emagrecer, pois a vi minutos atrás devorando uma costela de porco com uma caneca de chope. A mulher parece um cubo.

- Não é possível. Não posso crer. Era tão magrinha. Deve estar grávida.

O Pereirinha se aproximou do casal que se mantinha até aquele momento a um canto e, ao ver seu funcionário com a linda esposa, ambos de mãos abanando, ordenou de forma veemente:

- Vocês dois aí. Não vão me fazer cerimônia a esta altura do campeonato. Isso aqui é uma casa portuguesa com certeza e, como tal, não comer é um insulto imperdoável. Igual a xingar a mãe. Aqui estão dois pratos. Quero vê-los cheios. O Afrânio me garantiu que vocês dois comem de tudo!

Sempre o Afrânio! Aquele sem-vergonha, balofento, putrefato, fétido, pestilento do Afrânio, pensou a Belinha sem dizer nada, mas olhando para seu jerimum com a cara fechada.

Aquilo não iria ficar assim. E o Pirilo tinha consciência, que cabeças iriam rolar. Mas se conteve. Ele sabia que o Afrânio adorava pregar aquelas peças e, de vez em quando, pegava pesado demais. Na verdade, irritar a Belinha era um de seus passatempos prediletos. Mas apelar para aquilo também já era demais. Principalmente à frente de seu chefe. Ele iria à forra, mais cedo ou mais tarde.

- Vamos até a mesa, embromamos e fingimos que comemos - cochichou ela tentando manter a calma. Pode deixar que o Afrânio me paga.

Ela voltou a sorrir. Nada como ter um marido que, além de apaixonado, era um companheiro e tanto. Capaz de ir contra o melhor amigo de infância, e agora seu superior imediato, em sua defesa. Era realmente uma mulher de muita sorte... Mas junto da mesa, seu estômago embolou.

- Não consigo ver nada que dê para, pelo menos, embromar. Só de imaginar estas coisas gordurosas no interior de meu corpo, já sinto náuseas. Se comer, é impaludismo na certa.

Pirilo concordou com a cabeça. Quem escolhera aquele menu tinha preferências escandalosas por uma morte breve e dolorosa. Naquela mesa havia mais gordura que na cintura da Wilza Carla, pensou o Pirilo que quando ainda muito jovem, teve uma queda pela vedete quando a mesma ainda era magra e fazia parte das certinhas do Stanislaw Ponte Preta. A posterior obesidade da citada, o havia traumatizado.

- Foi mamãe que bolou e preparou toda esta comida. - e dizendo, o Pereirinha se afastou para receber outros convidados.

- Ôche que sorte - comentou Belinha que ansiava que o anfitrião não tomasse conhecimento da embromação que ela iria aprontar.

Pensamentos escabrosos passaram a seguir pela mente de Belinha. Tais como, quem poderia ser a mãe do Pereirinha. Uma bruxa agourenta? O que aqueles venenos seriam capazes de fazer a seu estômago? Mas ela tinha que se controlar. Xô stress, xô stress...

Notando a preocupação estampada na face da esposa, Pirilo deu força:

- Güenta firme, meu quindim. Comida não dá febre amarela. Que tal uma batatinha?

- Aquela ali? Deus o livre! Está empaçocada em óleo. Olha que coisa pegajosa. Eca!
- E essas alfaces…?

- Ôche! Você sabe muito bem que eu não como alface fora de casa. Acha que as pessoas se preocupam em lavá-las como eu? Tenho um medo da gota que não as tenham lavado.

- E o ovo? Pelo menos está cozido.

- Vigê Maria! Você acha que eu sou mulher de comer ovo, Pirilo? Tá me desconhecendo?

Belinha o chamara pelo nome. Aquilo era um mau sintoma, pensou ele, engolindo em seco. Em que enrascada o Afrânio o colocara! Não custava nada ele ter dito para o Pereira que a Belinha era vegetariana e uma batata cozida e um arrozinho integral já estariam mais do que suficiente para saciar a fome daquela canarinha nordestina. Ela tinha o estomagozinho de uma cambaxirra. Qualquer verdurinha lhe satisfazia.

Aquela batatinha não estava sequinha como ele gostaria que estivesse, mas pelo menos tinha com cara boa, quase honesta e o Pirilo arriscou colocá-la no prato, pois, acreditava que poderia encará-la sem arrependimento futuro.

- Fofó, você me ama muito?

- Mais do que o céu e a terra, Quiquinha.

- Então não coma esta batatinha que está empaçocada de gordura. Imagine isso em seu estômago, Fofó.

- Eu tenho que comer algo, Quiquinha, senão o Pereira vai notar e perco ponto lá no trabalho. Ele é filho de português, lembra o que disse?

- Pega, então, umas folhas de alface que eu levo ao banheiro e lavo tudinho. Eu trouxe aqui na bolsa o meu limpador de legumes.

- Como você quiser, minha vida.

E desistindo de trazer para o prato as batatinhas que, para ele, não estavam tão paçoquentas quanto a Belinha achava, Pirilo substituiu-as pelas desinteressantes alfaces. Pensando bem, dentro dos aspectos culinários, o Pirilo não acreditava que pudesse existir algo que fosse mais desinteressante que uma folha de alface. Talvez o rabanete...

- Não posso acreditar. Dr. Pereira, olha aqui esses dois com cerimônias. Não estão comendo nada! Vão ficar apenas na alface! - era o Afrânio.

- Já estamos no segundo prato, Afrânio…

- Que mentira, Pirilo. Você é lá homem de comer alface. O rei da buchada de bode da Lapa.
Um piano caíra sobre a cabeça de Belinha.

- Buchada de bode? - perguntou quase em vômitos.

- Sim, buchada de bode. Ele comia duas de madrugada e raspava o prato com as migalhas do pão. Você vai agora me desmentir, Pirilo?

- Isto é coisa do passado…

- Quer dizer que você já comeu buchada de bode? - perguntou Belinha com uma cara de nojo. Não podia creditar. Era ultrajante. Repulsivo. Eca! Como poderia ter beijado aquela boca que um dia saboreou os restos de um bode? Não é à toa que em diversas oportunidades achara a saliva de seu marido um pouco salgada. Era a buchada. Só poderia ser aquela maldita buchada que ficara entranhada para sempre em suas gengivas. Talvez por isso ela tivera aquela infecção na boca há dois meses... Só podia ser a buchada...

- Buchada? Buchada é pouco. Esse cara era doido por língua de boi, orelha de porco e testículos de carneiro. Os testículos ele chupava-os como se fossem cerejas. Se lembra, ô meu? Na porta do Maracanã…

Orelha de porco, testículos de carneiro à porta do Maracanã? E esse era o homem que ela escolhera para compartilhar a vida, até os últimos dias de sua existência? Aquilo não era um homem. Aquilo era um depósito de lixo! Eca!

O Pereirinha se aproximou.

- E fazendo cerimônia aqui na minha casa, Pirilo? Me dêem seus pratos, que eu vou fazê-los para vocês. E quero vê-los vazios para a repetição. Vou ficar melindrado se encontrar restos de comida.
Belinha não podia acreditar. O tal do Pereirinha praticamente havia arrancado o prato de sua mão relutante e agora o enchia como se ela e seu Fofó fossem dois estivadores do cais do porto. E com todas aquelas coisas horrendas e pegajosas, que só uma mãe desnaturada podia ter preparado.

- Vamos ver. Essas costelinhas de porco, essas batatinhas que estão estalando, o quiabinho que é receita de minha avó, macarrão que é a especialidade da casa. Isso para começar. Porque, depois, os dois vão se esbaldar no carneiro que está sendo cozido na gordura dele próprio, ao estilo grego. Receita de minha mulher. Para você, Pirilo, vou mandar separar os testículos.

Ao receber o prato em suas mãos, Belinha não conseguiu conter o grunhido de asco:

- Eca!

- Se segura, Belinha. Por favor - ordenou consternado Pirilo entre dentes.

- Segura você, Pirilo. Ô chente! Ou você acha que eu vou comer esse macarrão nadando em óleo, esse quiabo que tem a baba grudenta e essas batatinhas que parecem uma paçoca? Nem morta, nem morta…

- Mas foi a mãe do Pereirinha que fez...


- Que fosse ele próprio. Nem morta!

O Afrânio tentou se chegar para ouvir melhor o que os dois pombinhos estavam discutindo em voz baixa. Mas o olhar reprovador de Pirilo o fez estancar.

- Arreda daqui demônio! – vociferou Belinha que estava possuída.


Afrânio obedeceu incontinente. Sua brincadeira fora longe demais. Os olhos da Belinha haviam deixado isto mais do que claro. Pirilo tentou contornar a situação.

- Pelo menos engana, minha gatinha.

- Como enganar? A não ser que eu tropece e deixe este lixo paçoquento cair no tapete desta grega porca.


Tinha que ser grega aquela falsa magrela, pensou Belinha completamente fora de si. E o cheiro? Aquela comida cheirava a restaurante de terceira categoria no centro da cidade. O odor do óleo e o aroma sebento da gordura estavam agora entranhados nas narinas de Belinha que mal conseguia respirar.

- Belinha! Cuidado que ela é mulher do Pereira…

- E só por isso deixa de ser porca? Carneiro assado na própria banha. Isso é fétido, Pirilo. Imagine o que deve ser o banheiro dessa porca? Um esgoto.

- E aí? - era o Pereirinha de volta, doido para saber a opinião de ambos  - Gostaram do quiabo? - voltou a perguntar ansioso.

- Uma delícia, especialmente o quiabo. - respondeu o Pirilo, enchendo a boca com aquela gosma verde.

- Receita de minha velha avó. Que Deus a tenha num bom lugar.

Provavelmente no inferno, pensou Belinha emburrada.

- Eu sabia que você iria gosta Pirilo. Homem que não gostar deste quiabo é porque não tem cérebro.

Coma que tem muito mais. Fazemos aqui de latões. Dia um dia para o outro. E você, minha querida Lindinha, do que mais gostou?

- Belinha. O nome dela é Belinha, dr. Pereira. Belinha come muito devagar. Ela é do tipo macrobiótica. Mastiga bastante antes de engolir. - tentou atenuar Pirilo, pois, sabia que Belinha estava por explodir.

- Detesto coisas macrobióticas - deixou claro o Pereirinha.

- Nós também - concordou imediatamente o Pirilo.

- Mas entendi que sua esposa era macrobiótica...

- Foi. Há alguns anos. Hoje mantém apenas certos hábitos como mastigar quiabo bem devagar e coisas assim.

- Quero sua opinião. Volto já - e o Pereirinha se afastou com o indicador em pé, a girar de um lado para o outro, sem ouvir o colossal “Eca!” de Belinha.

- Opinião? Que presunçoso da gota! Não é a toa que a avó dele deve estar nos quintos dos infernos. Eu não vou comer essa merda, nem morta. Nem vou ficar aqui ouvindo você se desmanchar qual um tapete, para este seu chefe.

- Come um pouquinho, só um pouquinho, Quiquinha.

- Nem morta, Fofó. Só porque seu chefe cochichou todas essas baboseiras você acha que eu vou assumir um suicídio alimentar? Se ele ficar com abuso terá dois problemas. O de ficar e deixar de ficar! Isto se sobreviver a diarréia que terá amanhã pela manhã com todo este veneno.
- Faça isso por mim Quiquinha, por favor.

- Escuta aqui, ó Pirilo. Você comer buchada de bode e nunca ter me avisado já me deixou maluca.
Testículos de carneiro, orelha de porco, língua de boi… O que mais você comeu? Bosta de vaca, cérebros de macacos, olhos de serpentes, asas de morcegos? E beijando sua boca por todos esses meses?

- Não exagera, Belinha.

Belinha? Pirilo? Aqueles dois chamando-se pelos próprios nomes. Hum! Tinha caroço naquele angu. Eles estavam prontos para entornar o caldo era só dar uma mexidinha... Afrânio, sentiu que a briga era iminente. De onde estava deliciava-se com aquele inicio de discussão.

- Não exagera você, Pirilo! Não vou comer e pronto.

- Pois vai!

Belinha olhou com incredulidade. Era a primeira vez naqueles sete meses, quatro dias, 12 horas e alguns minutos que o seu Fofó aumentava o tom da voz e se dirigia a ela em tom imperativo. Teria sido a buchada que deixara seqüelas irreversíveis em seu cérebro?

- Você está comendo queijo escondido. Seu cérebro o
está traindo, ou por acaso você acredita que manda em mim, ou no que eu como ou deixo de comer?
- Você vai comer e pronto!

Aquilo era demais. O caldo acabara de ser entornado!

- Não vou -  respondeu ela batendo o pé, indignada.

- Vai, e vai comer agora, senão eu vou perder o emprego e, se isso acontecer, quem vai sustentar a sua esquizofrenia de fios dentais? Quem vai ter que sair de madrugada com chuva para comprar desodorantes bucais? Quem?

- Esquizofrenia de fios dentais? Por acaso ser asseada com a boca agora é pecado? Você sabe quantos germens ficam acumulados em uma boca após as refeições? Não, você não deve saber. Afinal, como você poderia saber se raspa o prato de buchada de bode na Lapa e chupa testículos de carneiro à porta do Maracanã, como se fossem cerejas? Você e esta aquela grega, são porcos.

- Vê como você fala comigo, Belinha. - ameaçou ele de dedo em riste, engolindo a seguir tudo o que estava no prato para deixá-la ainda mais irritada e mostrar quem mandava naquela relação.

- Baixe este dedo Pirilo!

- Venha baixar!

- Como estão os meus dois pombinhos? - perguntou o Afrânio sorrindo qual um vampiro, ao sentir o  suave aroma de sangue no ar.

- Vá à merda! - responderam ambos a uma só voz.

Afrânio se retirou, pois sentiu que sua presença não estava agradando os afilhados de casamento, mas o fez satisfeito, ciente de que conseguira o seu intento. Aqueles dois modelos de virtudes hoje iam se engalfinhar.

Pirilo respirou fundo e chegou a conclusão que perdera a calma e que a Belinha não merecia ser tratada daquela forma. Belinha estava arrependida, mas não seria ela a primeira a dar o braço a torcer.

- Quiquinha, desculpe-me. Exagerei. Mas por favor pense no seguinte. Se você não comer eu vou acabar perdendo o emprego. Faz esse sacrifício por seu Fofó. Uma vez só. Eu juro que não caio mais numa arapuca como essa.

- E você quer que me suicide para que você não perder seu empreguinho?

- Pense positivamente. Amanhã tudo estará no esgoto.

Belinha fez cara de nojo só de pensar naquilo que seu Fofó havia sugerido. Como alguém poderia ser tão frio ao analisar uma refeição daquela forma? Mas pensou por alguns segundos, e chegou a seguinte conclusão. Valeria a pena ela criar problema em uma relação que era perfeita, por causa daquela pasta subaquática? Daquele despeitado do Afrânio? Decidiu que não. Não seria um prato de quiabo ou de macarrão que terminaria o seu casamento, muito menos com o seu estômago. Mas a cabeça do Afrânio tinha que estar naquele acordo.

- Você jura que briga de uma vez por todas com o Afrânio?

- Ele já está fora de minha vida. Não quero ver mais este filho da puta nem pintado de ouro. Agora entendo o porquê de sua ojeriza por ele. Ele quer criar discórdia entre nós. Você tinha razão. Aliás, você está sempre com a razão, meu jenipapo silvestre.

- Você jura que esta será a primeira e a última vez?

- Juro, meu Toblerone.

- Você jura que nunca mais coloca na boca um testículo de carneiro, uma orelha de porco e todas aquelas coisas nojentas que um dia você comeu?

- Juro pela alma de minha mãe. Isto é passado.

- Pela alma de sua mãe não vale, porque você nunca gostou daquela víbora. Jure pela sua potência sexual.

Exigiu ela fazendo menção de que ia derrubar o prato no tapete persa da grega porca.

- Juro! Juro!

- Ok, mas lembre-se que esta é a última vez que você me faz passar por uma situação semelhante. Seu Fofó endiabrado!

- Sabia que poderia contar com você, minha quiquinha doidinha. Ti amo!

- E eu a você, meu jerimum-paranapuçá.

Seus narizes se encontraram num colóquio amoroso e logo a seguir ela engoliu um pouco do macarrão. Eca!

Afrânio do outro lado da sala estava inconsolável. Seu plano escorrera por água abaixo. Aqueles dois estavam de novo trocando caricias e juras de amor. Era pegajoso. A seu lado Rabelo esticou a mão cobrando a aposta. Aqueles realmente não iriam mais brigar.

Horas depois, Belinha e Pirilo, ou Quiquinha e Fofó, já haviam se esquecido daquele entrevero. Uma rusga sem importância. Belinha havia engolido parte da comida horrenda, sem deixar que nada tocasse em sua língua e, logo a seguir, correra para o banheiro onde escovara os dentes e passara quilômetros de fio dental. Sua estada naquele banheiro fez com que uma fila se formasse à porta, o que, além de causar transtorno, já que o chope rolava solto, trouxe certa apreensão ao anfitrião da festa.

- Alguma coisa errada com a Terezinha? - perguntou o chefe apreensivo.

- Belinha. Ela se chama Belinha, dr. Pereira.

- Sim, Belinha...

- Não, apenas uma leve indisposição. Está grávida. Adorou o quiabo. Aliás, quer a receita.

- Essa é de família. Não posso ceder. Mas, sempre que fizermos, juro que chamo vocês dois. Parabéns, sempre é bom ser pai.


Pirilo perdera uma boa oportunidade de ficar calado. Belinha saiu a seguir.
- Como foi lá no banheiro? - perguntou ele, preocupado.

- Desinfetei tudo. Só espero que amanhã esteja ainda viva. Tudo culpa sua.

- Eu sei. Você quer dançar?.

- Nada me agradaria mais do que isto.

Dançando no salão principal da mansão, eles haviam deixado para trás os problemas e estavam acabando de provar para o Afrânio que não havia seqüelas. Aquela união era para sempre.

- Por essa não esperava. Esse casamento é indissolúvel. Desisto. - comentou Afrânio com Miriam que estava de mau humor, pois já não dava para ninguém há mais de uma semana.

- Não há indissolubilidade que se mantenha após um peido como estes - comentou a mal comida.

- Como assim? -  assustou-se Afrânio, que resfriado como estava, não notara o odor, mas que agora parecia estar realmente interessado.

- Você não sentiu?

- Não...

Era verdade. Um estranho odor estava agora presente naquela sala e vinha de Belinha. Ela sorria, mas sua face perdera aquela castidade alva e se mostrava um tanto esverdeada. Só podia ser o quiabo fazendo efeito, pensou o Afrânio.

Pirilo se mostrava tão feliz que não notara o que estava acontecendo. Como bebera chope, o que estava fora de seus padrões habituais, simplesmente ria à toa. O peido para ele cheirava como Bulgari e o barulho, como uma sonata de Beethoven. Pouco a pouco, no entanto, a situação foi se agravando. O quiabo estava se engalfinhando com a costela, para deleite do macarrão, e a bateria antiaérea comeu solta. Um torpedo após o outro.

Existem três tipos de peidos na classificação dos chamados sonoros. O Peidinho, o Traque e o Rojão. Belinha, furtivamente, escalou aquela contenção hierárquica. Depois de dois ou três peidinhos, que cheiravam mais do que zumbiam, ela veio com o seu primeiro Traque. Foi rápido, seco e curto. Qual uma bomba de São João! Porém, capaz de criar um espaço em torno de si, com o afastamento dos casais mais próximos. Alguns outros presentes notaram, riram, mas relevaram. Afinal, a moça estava grávida, pois o Pereirinha tinha tratado de espalhar a boa notícia pelos quatro cantos da casa. Todavia, devido aos movimentos que fazia dançando, Belinha não tardou muito a soltar seu primeiro Rojão. E Rojão ninguém agüenta. Aliás, ninguém pode sair impunemente depois de ter brindado a todos com um rojão sonoro e fedorento como aquele. Parecia que a Belinha havia engolido um porco inteiro e este acabara de explodir.

Imediatamente, um espaço se formou entre ela e o resto da festa. Houve uma debandada geral e o pobre do Pirilo, que o álcool parecia ter ensurdecido e privado do resto do olfato, perguntou inocentemente, com a idiotice própria dos bêbados apaixonados:


- O que houve?
E o Afrânio não livrou a cara. Estava ai a chance de sua vingança. Partiu direto para a consumação.

- Tua mulher peidou!

- Infâmia. Eu? - exclamou Belinha piscando os inocentes olhos azuis e provando que havia realmente perdido por completo o controle sobre suas paredes glúteas. E soltou outro ainda pior, de ampla sonoridade.

- Você agora ouviu? -  desafiou o Afrânio, cujo suor gotejava na fronte.

Desta feita nem o grau etílico em que se encontrava o Pirilo fora capaz de deixar passar a desapercebido a flatulência de sua amada. A ele nem aos outros convidados que restaram na sala ao lado. O estampido soou qual um torpedo ao atingir seu objetivo e o cheiro a seguir, fez as moscas saírem em debandada. Algumas caíram sufocadas.

- Fofó, foi apenas uma flatulência...

- Quiquinha, desculpe-me, mas isto foi um peido. Ou melhor isto foi mais do qual um peido. Isto foi um rojão!

- Mas Fofo, só pode ter sido o quiabo.

Pereirinha que achegara-se, não pode conter-se.

- Como você é capaz de falar mal do quiabo de minha avó dona Rosinha.

Belinha, que não agüentava mais o Pirilo, o quiabo e muito menos a degenerada da avó do Pereira, deitou a boca no mundo:

- Rosinha é a puta que te pariu, seu porco! Meu nome é Belinha!
 
Fofó entrou com um pedido de divórcio litigioso. Pirilo nunca aceitou o fato de ter passado por aquela vergonha logo na casa de seu chefe e, posteriormente, ter perdido o emprego. Inserido no mesmo havia um pedido de indenização por perdas e danos contra a ex-mulher. O Pereirinha podia aceitar tudo, menos que o quiabo de sua avó fosse o acusado de toda aquela baixaria. Sua família tinha um nome a zelar, assim, não só despediu o Pirilo, como também o Afrânio. O Afrânio, que depois teve descoberta sua enrustida preferência homossexual e seu amor nunca confessado pelo amigo de infância, o Pirilo, não foi sequer aceito como testemunha ocular, auditiva e olfativa no divórcio. Passou o resto de sua vida carregando estandartes em passeatas gays. Belinha, embora vexada, tomou uma decisão. Não iria mais viver mesmo com um ser que a obrigara a se envenenar e que, além disso, era capaz de comer buchada de bode,  saborear orelha de porco, deliciar-se com língua de boi e ainda por cima, chupar testículos de carneiro. Entrou com uma ação contra seu ex-marido, por tentativa de envenenamento e por transmissão de infecções bucais.

E todos viveram tristes para sempre.

Renato Gameiro

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

UM NOVO ANO, UMA NOVA MANHÃ, MAS TUDO MOFA...

     Mais um ano se passara. Mais uma coisa não se modifica: tudo mofa. O pão mofa, a carne mofa, a casa mofa, o cérebro mofa. Você mofa! Para alguns existe pelo menos a chance de recuperação ou mesmo de adiamento se houver manutenção contínua. Mas no geral tudo mofa. Fato irreversível na existência. Lei da vida.


      Velho mofa. Por maior que tenha sido a sua manutenção um dia ele mofa. E quando isto acontece tudo dói, tudo o irrita, tudo o faz se sentir com vontade de acabar com qualquer coisa em volta de si.


      O desprazer de saber que num dia foi capaz de fazer aquilo, mas hoje seja por conta de sua mente ou de seu corpo seja impossível concretizá-lo, torna-o cada dia mais inseguro. A dependência o humilha, o desumaniza. Você regride à situação do cão de estimação, velhinho, que dá mais trabalho do que alegria a aqueles que tomam conta. Uma bosta!
Aristides assim pensava ao abrir seus olhos naquela manhã. O fez lentamente, sem pressa nenhuma, pois, a única coisa que velho tinha em excesso era tempo. Tempo para não fazer absolutamente nada. Mas sem saber porque, tinha um pressentimento que aquela manhã e aquele dia seriam distintos. Era um novo ano. Uma nova manhã que podia sentir que seria bela pelo aroma e pela luminosidade que adentravam pela janela semi-aberta de seu quarto. Uma desobediência que fazia todas as noites depois, que sua filha se retirava de seu quarto e se assegurava que ele estava deitado e dormindo. Onde já se viu o fato de se deixar uma janela aberta ser ocasionador de uma pneumonia. O problema era a idade do pulmão. Quando ele está nas últimas até banho frio dava pneumonia. Ademais, janela fechada trazia mofo. E o que ele menos queria era se sentir mofado.


      Acordava antes da filha, fechava a janela e assim a mantinha até que a desmiolada saísse para o trabalho, quando então voltava a abrir. A escancarava. Adorava o movimento das cortinas leves, agindo qual sílfides em seu esvoaçar sereno e descompromissado. Que movimento. Que leveza. Que suavidade no contacto com o ar...
Sentiu-se feliz que não havia mijado em sua própria cama. A disfunção lhe dera uma trégua. Bom sinal. Fez o sinal da cruz, tomou forças e lentamente soerguer seu tronco, conseguindo sentar sem a dor habitual que sentia em sua coluna. Outro excelente sinal. Tudo seria diferente naquele dia. Era um novo ano. Uma nova manhã. Uma nova fralda intacta... Sentia isto no interior de si próprio. Podia respirar o fato. Tocá-lo até. Tocou-o. Estava seco. Fora o sonho. Agora tinha a irrevogável certeza que o sonho que tivera naquela madrugada poderia cristalizar-se em realidade. E haviam um idiotas que dizia que velho não sonhava. Velho sonha. Sonha, vegeta e mofa! Três verdades que o acompanham.


      Estar sentado, era mais uma vitória e lentamente ele com os pés alcançou seus chinelos. Sentiu inicialmente o frio do piso, mas logo a seguir a suavidade da pelúcia que envolvia aquele seu velho companheiro de todas as manhãs. Era a segurança que sempre sentia antes de chegar ao banheiro. Decidiu dar continuidade a seu destino. Era um novo ano. Uma nova manhã. Mas o velho chinelo... Sorriu e seguiu lentamente, mas ciente que aquela caminhada o levaria a um estágio distinto em sua existência. Afinal, era um novo ano. Uma nova manhã. Um novo mijo...


      O ato de urinar por controle próprio o fez sentir-se novamente dono de si. Balançou lentamente seu membro. Fazia tempo que não o mirava. Como o chinelo, sempre estava lá quando precisava. Sentiu prazer até o último pingo, que não foi o da cueca, pois não a usará naquela noite, nem o fraldão que sua filha teimava que lhe seria útil. Este estava seco. Não dormira nu, da forma que chegara ao mundo e gostaria um dia, se despedir do mesmo. Mas estar nu, agora mesmo dentro de um banheiro que nem janelas tinha, era ao ver de sua filha outra forma de se contrair pneumonia. Ela parecia ter neuroses com pneumonias. Mas não com mofo. Já que era virgem e beata, aos 57 anos de idade. Logo, estava mofada dos cabelos aos pés. Só falava do padre, da igreja, do sermão, das atividades beneficentes, do que a congregação comentara a respeito dos últimos crimes apresentados no Jornal Nacional. Um bando de inúteis, mofados em toda suas mediocridades, que nada faziam, produziam ou geravam. Apenas discutiam coisas que não os levariam a lugar algum. Não haviam acordado para o fato que era um novo ano. Uma nova manhã...


      De volta ao quarto, arriscou-se a chegar a janela nu como estava e pretendia permanecer. O fez lentamente, como tantos outros prazeres sentira desta mesma forma. A brisa que soprava branda e constante não tardou a encontrar o seu corpo e a sensação tenra de uma vida afora o fez sentir-se mais novo. Ela o pegou em cheio. O atingira no rosto e no peito cada vez mais franzino e destituído de músculos. Era uma brisa nova. Produto de um novo ano. De uma nova manhã. Seria ela capaz de lhe trazer a tão temida por sua filha pneumonia? Acreditava que não. Livrar-lo-ía sim, do mofo que estava tentando tomar conta de si devido aquela reclusão imposta por aquela virgem recalcada ao quarto que conhecia de cor e salteado, mas que não mais conseguia suportar. Odiava-o.


Ser velho era uma merda. Ser tratado como tal pior ainda. Mas aquele dia tudo seria diferente. Era um novo ano. Uma nova manhã e ele tivera o sonho. Não um sonho. Ele tivera o sonho. A revelação. Fora um aviso divino. A luz que necessitava para achar o final de seu túnel. Ou melhor daquele quarto que odiava, daquela cama que era sua maior inimiga... Ou melhor sua segunda maior inimiga.


Filha... nem mesmo de seu sangue ela o era. Desdemona era filha de sua mulher, produto de um primeiro casamento curto, e de um viuvez longa. Não tinha a sutileza, nem a beleza, nem mesmo o destemor da heroína de Shakespeare. Sempre fora uma tonta, temente a Deus e a pneumonia. Nunca notara o mofo que a recobria.


Conhecera-a com 14 anos quando já era uma pateta e nada se podia fazer para retroceder seu processo de imbecilidade mental. Tornara-se sua enteada depois de dois anos de namoro com Iara, e Iara valia todo e qualquer sacrifício. Mesmo o de ter sob seu próprio teto aquela parva. Primeira colocada no ginásio, no cientifico, no vestibular e na faculdade. E tudo isto para que? Para ser uma funcionaria de um banco mofado, a duas quadras de sua própria casa e ter sua carreira limitada a uma mesa com uma flor e dois porta-retratos. Todos igualmente mofados. E era virgem. Logo igualmente mofada.


Mofo... como odiava o mofo...


Desdemona não namorara, não casara, não constituíra família e agora se achava no direito de culpá-lo pelo fato. Achava que a doença que levou sua mãe à morte ainda muito cedo e aquela outra que os médicos não sabiam diagnosticar, mas que fazia ele permanecer na cama a maior parte do tempo, eram os responsáveis por ela nunca ter tido tempo de procurar por um companheiro. Leda mentira. Ela era feia, chata, magra que nem um vara pau e mofada. Lia apenas a Bíblia e gostava tão somente de igrejas e orações. Da casa para o trabalho. Do trabalho para a igreja. Da igreja para o supermercado. Do supermercado para a casa. Quem poderia se interessar por uma coisa como esta? Talvez o padre. Mas este tinha seus votos a cumprir.


Era o primeiro dia do ano. O único dia que Desdemona se dignava a deixá-lo em paz. Não vinha checá-lo pela manhã. Mas o telefonava para saber se tudo estava bem. Entrava cedo no banco para aquelas enfadonhas reuniões de discussão de diretrizes. Ou melhor de como os bancos iriam ganhar mais dinheiro naquele ano, daqueles que conseguiam seu ganha pão honestamente com o suor de seu próprio trabalho. Bancos: uns sangue sugas. Uns parasitas. Uns mofados.


Ela ligaria em minutos. E eles não respeitavam sequer o que deveria ser um feriado. Contra senso infernal! O que lhe dava o direito de achar que um velho mofado como ele não poderia passar mal ou mesmo morrer no primeiro dia de um novo ano. De uma nova manhã. Seu ótimo relacionamento com o Senhor? Quem lhe dava o direito de determinar quando ele poderia ou não passar mal ou morrer? O simples fato dela ter aquelas reuniões e estar bem com as ordens do paraíso? Pois, que ela tomasse conhecimento que velhos morrem de Domingo a Domingo. Qualquer dia era dia e o primeiro dia de um novo ano não era exceção. E ele pedia todos os dias a Deus, que se um dia tivesse que ser levado a seus braços, o fosse no primeiro dia de um novo ano, só para aquela santa de pau oco, ter remorso e tomar ciência que toda aquela sua preocupação nos outros 364 dias, onde não haviam as reuniões de diretrizes, fora inútil. Mas para aquele aprendiz de santa, ele teria que estar bem no primeiro dia no primeiro dia de um novo ano, já ela tinha aquelas inoperantes e mofadas reuniões, antes da abertura das portas do banco. Que na verdade não seriam abertas ao público. Mas sim para ele...


Olhou para o pulso. Estava fino e sem o seu relógio. O havia deixado na mesinha de cabeceira junto ao copo da dentadura. Olhou para aquela peça fictícia que tentava passar por real, mas que pelo menos o fazia ainda conseguir mastigar alimentos mais leves. Ela se mantinha impávida e mergulhada na água que assumia uma cor estranha. Era degradante, mas pelo menos submersa, não mofaria. Ele já tinha partes suficientes em seu corpo mofadas para ter outra em sua boca.


Baixou as vistas e mirou a mais mofada de todas. Seu órgão genital. Afinal foi assim que sua mãe o ensinou a se dirigir a seu membro. Que eufemismo. Pica soava mais real, menos pomposo e mais efetivo. Talvez ela tivesse mofado entre as suas pernas, por ter sido sempre tratado ridiculamente de órgão genital. Ou quem sabe por seu excessivo uso, afinal tivera uma saudável mocidade e Iara nunca negara fogo. Até mesmo pouco antes de fenecer.


Lentamente caminhou em direção de volta à sua cama. Apossou-se de seu  relógio, assumiu sua dentadura, botou as calças e calçou suas antigas botas. Foi quando teve aquela dúvida. Não seria mais fácil se calçar as calças e se botar as botas? A língua portuguesa era mesmo deveras complicada. Nunca a entendera. Por isto estava repleta de acentos e definitivamente mofava. Como tudo naquele pais de merda que não tratava condignamente aposentados, como ele. Mesmo no alvorecer de um novo ano, de uma nova manhã...


Trabalhara, defendera com bravura sua bandeira em terras italianas, fora condecorado mas nunca recebera uma pensão condizente com o suor que deixara, na escola, nos campos de batalha e mesmo depois na chefatura de policia. Ganhara aquele relógio de ouro, com uma gravação a fogo que todo dia tocava sua pele, escrita por seus subalternos por ter sido, segundo eles próprios, sempre um exemplo de integridade, honestidade e destemor. E o que isto lhe trouxera? O que aquela honorabilidade o levara? Ao mofo.

Ninguém se lembrava mais dele, ninguém o visitava. Enquanto isto, aqueles que conhecera tão bem, que nunca foram brindados com relógios de ouro, mas roubaram muitos dos mesmos durante as suas pouco honestas vigências profissionais, hoje gozavam um final melhor, com muito dinheiro e a garantia que o mofo nunca os iria atingir. Mofo não atinge rico. 

Caminhou lentamente, quase que se arrastando até o armário onde não teve dúvidas de pegar aquela camisa que Iara lhe presenteara, no dia de sua aposentadoria. Dois meses antes de fenecer. Que para ele era de muito maior valor do que o relógio de ouro que cada dia se fazia se sentir mais pesado em seu pulso. Colocou a gravata. Não tinha certeza se ainda saberia como dar o nó na mesma. Ficou feliz que sua ecmnésia não o havia feito esquecer. Existiam realmente coisas que seu pai lhe dissera que um homem nunca esquece. Andar de bicicleta e dar um nó em uma gravata eram duas delas. A terceira não tinha tanta certeza: o de ter sempre orgulho de si próprio. Talvez seu pai assim o pensasse por ter morrido cedo, em um desastre aéreo, antes de ter sido atacado pelo mofo. 

Após colocar o velho paletó de tantas fainas, abaixou-se lentamente e com muito cuidado para não quebrar ao meio. Naquela caixa de sapato que mantinha escondida abaixo de outros sapatos que não mais usava, apossou-se de sua velha amiga: a Ritinha. A velha quarenta e cinco que como Iara nunca falhara, era uma das únicas coisas que possuía que não estava mofada. Trabalhara muito, como seu órgão genital, mas na realidade fora mais bem cuidada por ele. Nunca tivera uma gonorréia. O órgão, várias. Por isto mofou. 

Voltou a encarar Ritinha. Bela. Sentiu prazer em empunhá-la. Ela mandara vários de volta para o lugar de onde nunca deveriam ter nascido. Orgulhava-se do fato. Não se deu ao luxo de colocar sua cartucheira. Ela era também uma velha amiga e entenderia o desconforto que aquilo causaria em seu ombro. Apenas deixou Ritinha assentar-se no fundo do bolso de seu paletó. Para manter o mesmo simétrismo em seu corpo, colocou o não mais usado cinzeiro, - presente de Iara - no outro bolso. O peso de ambos era quase idêntico. Trabalho perfeito. Ele ainda não esquecera de seus macetes.

Iara nunca mofara, pois era eternamente viva e jovem em espírito. Lhe presenteara com aquele cinzeiro, mesmo sendo contra seu vicio, que hoje fazia apenas um de seus pulmões funcionarem. Quis o destino que ela fosse antes, com um câncer no pulmão, sendo abstêmia, vegetariana e sem nunca ter tido vontade sequer de colocar um cigarro em seus lábios. Crueldades daquele que sua parva filha tanto respeitava e idolatrava. Muitos anos haviam se passado e iara nunca mais teve o ensejo de viver um novo ano, uma nova manhã. 

Olhou-se no espelho. Não reconheceu-se. De há muito deixara de lado o hábito de olhar-se. Estava realmente mofado. Não era apenas impressão, ou coisa de velho bobo que não tinha nada para fazer, como a parva costumava dizer. Uma mofada bíblica...


Consultou o de ouro. As portas do banco estariam fechadas, mas em vinte minutos que ele calculava ser o tempo necessário que levaria para vencer aquelas duas quadras, ele estaria lá. Acenaria para sua filha e já imaginava o torpor de sua expressão em imaginar como ele saíra da cama. Imediatamente faria o guarda o deixar entrar. Afinal mesmo em um novo ano em uma nova manhã, a rua era uma geradora de pneumonias. O sonho fora perfeito.

Não saía fazia muito tempo. Muito tempo era maneira de dizer. Eram anos. Quase uma década. Outrossim, distâncias não mudam nem mofam... Outrossim, o que está a sua volta, sim... 

Como a si próprio, o velho Antônio da portaria não o reconheceu. Melhor assim. Seria uma inchação no saco escrotal ficar dando explicações de coisas que não tinham a menor explicação. Ele tinha uma vida a viver e Antônio, como toda aquela portaria de cara nova, estava mofado. E quase cego.


Afora, sentiu o calor que tanto sentia falta. Como era bom suar. Evitava o mofo. Olhou a seu redor, lentamente. Não conseguiu reconhecer aquela rua que fora durante quase toda a sua existência, parte de seu dia a dia. Havia uma nova farmácia na esquina e tinham acabado com a sorveteria do Lopes. Porque aquela parva não lhe avisara? Não lhe trazia sorvetes porque dizia que lhe poderiam causar pneumonia, diarréia e outras invenções de sua pervertida mente bíblica. Se tivesse dito que a sorveteria do Lopes fechara, ele não teria sofrido tantos anos com a ânsia de poder saboreá-los. Pérfida criatura. O mofo já lhe atingira realmente o cérebro.


Lembrou-se de quantas vezes de mãos dadas por ali passeou com Iara. Sentiu seus olhos úmidos. Em pouco se encheriam de lágrimas. Conteve-se. Estava mofado mas não derretido. Empertigou-se e seguiu a direção que achava ser a do seu banco. Caminhou lentamente, desviando-se das bostas dos cachorros, dos buracos no pavimento e dos pára-choques dos carros estacionados indevidamente na calçada. O Rio de Janeiro, realmente não mudara absolutamente nada em certos detalhes. Neste ponto não mofara.


Conseguiu atravessar a primeira rua. Teve o cuidado de dar alguns segundos para si, depois que o sinal abriu. Apenas por garantia. Estava certo. Duas viaturas haviam avançado o sinal. Um taxi e um esporte conversível que não conseguira reconhecer o modelo ou sequer a marca. Devia ser importado. Rico sempre adorou avançar o sinal. Nas ruas e em seus negócios. Rico era a única coisa que não mofava no Brasil. Estavam ilesos ao mofo e as leis. As desrespeitavam, pois, a eles não se aplicavam, mesmo em um novo ano e em uma nova manhã.


No segundo quarteirão descobriu que a casa Mattos havia sido também extirpada em sua existência. Talvez tivesse mofado, afinal estava cheia de livros e papéis. Coisas que perecem com extrema facilidade. Quando então, quase foi alcançado por dois meninos em alta velocidade. Voavam sobre pranchas de rodas. Nunca as tinha visto. Não eram os velhos patins. Eram pranchas de jacaré minimizadas e com rodas. Talvez os patins tivessem igualmente mofado.


Novas lojas apareceram à sua frente. Não as reconhecia. Todo o velho comércio de Ipanema desaparecera. Era outro mundo. Outra Ipanema. Outra vida. Onde estariam seus antigos donos? Provavelmente mofados em seus quartos a espera de partir desta para uma vida melhor. Doce ilusão...


Lembrou-se de Iara. Ela sempre quis um apartamento de frente. Se a tivesse ouvido, teria acompanhado da janela a evolução pelo menos de sua rua. De seu único contato com o mundo afora, via apenas as áreas de serviço dos apartamentos de um prédio vizinho. Conhecia todas as empregadas. Elas riam ao vê-lo passear nu pelo quarto.


Divisou a entrada do banco. Mudara. Era agora de vidro e mais moderna. Tinha até um individuo uniformizado e armado por trás dos mesmos. Segurança. Sabia que a cidade ficara ainda mais violenta. Via televisão de vez em quando. Adorava saber das desgraças. Elas o faziam sentir-se menos infeliz. Onde se mantinha cativo, tinha segurança. Mofava mas sobrevivia.


Fez um sinal para o guarda contatar-se com sua filha. O mesmo tinha as mesmas características de um símio. Físicas e mentais. Custou a entender. Mas um pouco e ele teria realmente sido atacado pela pneumonia. Mas sem o auxilio de uma banana ele finalmente entendeu. Sua filha teve a parte inferior de suas mandíbulas insustentáveis. Deixo-as pendentes. Mas pelo menos teve o reflexo de ordenar o guarda que o deixasse entrar.


Penetrou no recinto. Recinto... viatura... individuo... Meu Deus, sentia-se como em seus tempos na décima terceira da Nossa Senhora de Copacabana. Que deveria estar igualmente mofada, ou demolida.


Quando entrou a geringonça apitou. Haviam criado detectores de metal para as entradas dos bancos. Que modernidade. O guarda se aproximou dele. Tinha a mesma expressão de sua filha: parva.


- O senhor trás algum metal? Chaves? Moedas?


Evidente que sim, senão aquela porra não teria apitado.


- Um revólver – respondeu cinicamente.


O individuo arregalou os olhos. Faltavam-lhe vários dentes em ambas as arcadas e um considerável volume de massa cefálica entre suas orelhas. Não tinha mais dúvidas. Era o par perfeito para sua filha. Dois mofados. Um macaco e uma banana! Mofados não, pútridos. Talvez fornicassem no final do expediente. Fez uma cara de velho bobo e sapecou:


- Estou brincando. São meus joelhos. Restaurados em metal. Não dá para retirá-los, o senhor há de convir...


Ele como todo bom parvo acreditou. Afinal o que um velho murcho e mofado estaria fazendo armado? Sorriu e o convidou a entrar. Pobre idiota. Era mais que um símio. Era um símio retardado.


Reconheceu sua filha em uma das salas de vidro da esquerda. Tinha dois elementos de origem árabes à sua frente. Provavelmente estava extorquindo os últimos centavos de ambos, com os juros indecentes que aquele banco cheio de frescura deveria cobrar. Ela rezava a noite e extorquia durante o dia.


Todos os funcionários ali presentes eram mais jovens do que ele e tranquilamente o poderiam render. Mas a vida lhe ensinara que todos os poderes foram obtidos pela força. A fraqueza e a covardia, incitam a opressão e o despotismo. Ninguém deu bola para ele. Porque haveriam de dar? Era um velho mofado? Só os coveiros lucravam com pessoas como ele. Todos mais pareciam interessados em seus tarefas, suas máquinas que usavam sem o menor constrangimento. Seria mais fácil do que no sonho. E afinal era um novo ano, uma nova manhã...


Sentiu que o guarda deu as costas para ele. Sua filha levantou-se. Ambos nunca iriam pressentir qualquer perigo. Era um parvo, com cérebro de mico retardado e que nunca deveria ter tido a oportunidade de empunhar uma arma consigo. E uma banana podre que só pensava na Bíblia.


Em um movimento ágil apossou-se da arma do vigilante e deu um tiro para cima. Com a outra, trouxe Ritinha para fora do bolso de seu paletó. Todos os olharam. Inclusive sua filha que não parecia acreditar no que seus olhos lhe diziam. Agora é que aquela sua mandíbula inferior não voltaria mais para o seu lugar.


- Bom dia macacada!


Sem exceção todos os ali presentes o olharam com estupor, mesmo sendo um novo dia, de um novo ano, de uma nova manhã.


- Todos no chão. De bruços. Isto é uma assalto seus mofados!


Obediência geral e irrestrita.


A única que desobedeceu a principio foi sua própria filha. Ela estava branca qual cera. Mas logo deitou-se igualmente ao solo, pois, tinha convicção que nenhum homem esquece de como portar uma arma de fogo. Seu pai muito menos. E ele agora tinha duas em suas mãos.
Renato Gameiro